FORMAÇÕES E DEFORMAÇÕES DE UMA ARTISTA-ORIENTADORA
FORMAÇÕES E DEFORMAÇÕES DE UMA ARTISTA-ORIENTADORA
LUIZA SOUSA ROMÃO
“O objetivo deste trabalho é o
estudo de um processo de criação. (...) Estudo ao mesmo tempo descritivo e
crítico, mas que, antes de tudo, procura captar o movimento e a transitoriedade
de uma obra em gestação. Os fluxos e refluxos de um processo sempre inconcluso,
incerto, tateante (...) interessa a trajetória de sua construção, os problemas
de percurso, as cartografias sempre provisórias e mutantes, os erros de trilha,
o desejo de atalhos, mais do que o seu ponto de chegada. Busca-se uma
arqueologia da criação.” (Antônio Araújo)
Por ser meu primeiro ano como
artista-orientadora, a multiplicidade de contextos e questões do Projeto me
atravessaram constantemente, influenciando diversas vezes o fazer estético.
Elas percorrem desde a relação com a instituição do CEU até o próprio
entendimento do que é um “processo artístico e emancipatório”. Assim, escolho
como recorte desse ensaio, o processo de formação do artista-orientador ao
longo do projeto.
A epígrafe de Antônio Araújo me
interessa na medida em que revela o intuito do meu escrito, e aponta para o
caráter artístico do Vocacional. Mais do que pedagógico é na esfera do
estético, que a troca com os vocacionados se dá. Isso implica outra postura na
sala de ensaio: não se trata de formá-los tecnicamente (como atores, diretores,
dramaturgos) – até mesmo porque um encontro de 3 horas por semana seria muito
pouco para tal – e muito menos de transmitir conteúdos educacionais. O que
seria então nossa função?
Antes de mais nada, balizei os
encontros pela criação de experiências, a fim de despertar a sensibilidade para
o que há de mais concreto, e ao mesmo tempo, poético na realidade. Através de
práticas de deriva (as quais envolviam o tato, olfato, escuta, toque), fomos
dilatando os corpos e a observação. Desnaturalizar o andar e atentar para
imagens que nos atravessam na rua, para placas que impõe caminhos, para sons
que se apagam no turbilhão de ruídos, se mostrou um campo vivo, nos quais os vocacionados
eram convocados o tempo todo a pensar sua sensibilidade cotidiana e
extra-cotidiana. Deflagramos mecanismos de controle e anestesiamento que passam
despercebidos, no dia-a-dia, e nos condicionam. Essa percepção se deu tanto na
esfera da rua quanto do próprio corpo. Por exemplo, uma massagem se tornou um
desafio que amedronta e atrai, na medida em que requer intimidade, em que mobiliza
o afeto e detona couraças emocionais. Várias e várias vezes o riso emergia
enquanto resposta imediata. Aos poucos, os vocacionados foram se apropriando do
toque, identificando os entraves sociais que impedia essa proximidade física.
Ao mesmo tempo, uma percepção mais aguçada do corpo, através do mapeamento de ossos
e musculaturas, reverberou na forma de se colocar e se movimentar no espaço.
Todo esse processo de propriocepção
e de escuta do real não são propriamente teatrais (apontam mais pra
pré-expressividade), o que me instigou a pensar como traduzi-lo em cena, ou
seja, criar um campo de experiência para aquele que faz e aquele que flui; afinal,
se trata do Projeto de Teatro (linguagem que necessita de uma síntese cênica).
Quando os vocacionados eram instigados a criar células/imagens, as formas
emergentes ainda era muito restrita, reproduzindo padrões melodramáticos e
configurações espaciais tradicionais. Alterei então minha condução,
estimulando-os com outros materiais. Nesse momento, explodimos o processo e
criamos juntos intervenções no espaço do CEU, com cenas de teatro-invisível e
instalações.
É interessante notar o caráter
movediço do processo: como artista-orientadora, me via a todo momento, tentando
mapear os desejos e interesses, identificar o que era dissensual e o que era
cômodo, e principalmente, quando a vivência se tornava experiência; observava
como determinado procedimento reverberava (ou não) no coletivo, qual afetava os
vocacionados e os deslocava para um olhar poético, e qual ficava na superfície;
equilibrava os tempos necessários para acessar a sensibilidade, quando pausar e
discutir, quando ir para imersão na prática; enfim, orientar é um exercício de
afinação constante, que demanda apreender a realidade, codificá-la e intervir
nela, criando novas formas de provocação. É tentativa e erro, reinvenção e
síntese. Acima de tudo, diálogo. Dos procedimentos e materiais que carrego,
tive que degluti-los e transformá-los, conforme os acontecimentos e ondulações de
cada dia.
Nesse sentido, gostaria de ressaltar
a importância do coordenador de equipe: a presença do Paulo se mostrou
essencial para a afinação da minha prática. Seu olhar externo diagnosticava
onde ela emperrava, onde poderia ir além. Com apontamentos precisos e sugestões
simples, fez os processos darem saltos qualitativos que eu sozinha não
conseguiria. Pensando que o artista-orientador também está em formação, a
posição ocupada pelo coordenador é essencial, pois é através das análises
construídas com ele (e com os outros AOs da equipe) que entendemos e
transformamos nosso processo.
Outro ponto nevrálgico foi o da
técnica. Trazer algum treinamento ou procedimento, logo de cara, não fez muito
sentido, já que os vocacionados não se apropriavam dela e nem a significavam
pra si. A maior parte estava tendo seu primeiro contato com o teatro, ou seja,
tinham questões anteriores para serem desenvolvidas (tais como, estar no
espaço, se relacionar através do olhar, entrar em contato). Portanto, as
experiências sensoriais se mostraram mais condizentes. Em dado momento, porém,
as necessidades apontavam para uma síntese e daí a técnica se mostrou
necessária, tanto pra mim quanto para eles. Através de conversas, surgiu a
importância de criar uma regularidade de exercícios que despertassem a concentração,
a escuta e a presença, discutimos a repetição como dispositivo inerente ao
teatro. Com uma das turmas (devido ao menor número de vocacionado, entre 15 e
20), conseguimos uma profundidade maior: ritualizamos e desenvolvemos alguns
treinamentos energéticos, que hoje são essenciais para iniciar o encontro. É
interessante perceber como “levar para o corpo” modifica o diálogo, e a
percepção de si mesmo.
Com a outra turma, enfrentei uma
realidade controversa: a rotatividade de vocacionados. Lidar com isso foi um
desafio, pois de um lado, cada encontro deveria ser uma célula mobilizadora por
si só (ter potência para afetar aquele adolescente que aparece uma ou duas
vezes e vai embora); por outro lado, deveria dar conta de um processo maior,
continuado, no qual há expectativa de uma síntese. Nesse fino equilíbrio, criei
dinâmicas que dessem conta dessa dualidade, uma delas, por exemplo, era a
constante revisão coletiva do trajeto: historicizávamos o porquê de determinado
tema ou a origem de certa cena, de forma que eles compreendessem os caminhos,
desvios e atalhos até ali. Nessa reta final, retomamos e desenvolvemos alguns
exercícios e imagens que eles haviam apresentado em momentos diversos. Esse
retorno ao já conhecido foi muito interessante, pois o atualizar o fez novo, já
que agora carregava as marcas da experiência vivida.
O mesmo aconteceu com as temáticas.
Balizadas ora por uma dramaturgia, um livro ou uma música, elas se fizeram e se
refizeram, várias vezes, ao longo do processo. De forma não linear, algumas
reverberavam meses depois: por exemplo, uma charge do Angeli que apresentei no
segundo encontro influenciou uma discussão do último mês. Isso mostra como o
tempo é um elemento essencial do Projeto, e como as conexões se estabelecem,
sem que pra isso, precisemos categorizá-las didaticamente. Uma vez que o corpo
serve de mediador, as experiências são convocadas conforme o tempo de
decantação da cada um.
Foi impossível, para mim, criar uma
unidade final que abarcasse a totalidade de experimentos vividos (e tenho
minhas dúvidas se isso seria o mais apropriado), o que conseguimos fazer foi
sistematizar um pequeno exercício cênico. Ele não representa a pluralidade do
processo, mas foi importante como mecanismo de afirmação. Para o ano seguinte,
me proporei a focar na síntese. Se o atual processo foi regido por
contaminações e derivas, por associações rizomáticas e meio caóticas, creio que
um bom contraponto será trabalhar com eles, em seguida, uma estrutura mais
fechada, na qual a descoberta do novo se dê pela repetição do velho. Esse
deslocamento, obviamente, só será possível agora que atravessamos uma
experiência e percebemos suas lacunas, seus fluxos e suas potencialidades. Como
AO me sinto realizada pelo aprendizado, por me defrontar com o não-saber, e por
recuperar o “pasmo essencial que tem uma criança ao nascer” (como diria Alberto
Caeiro).
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