quarta-feira, 19 de novembro de 2014

FORMAÇÕES E DEFORMAÇÕES DE UMA ARTISTA-ORIENTADORA

FORMAÇÕES E DEFORMAÇÕES DE UMA ARTISTA-ORIENTADORA

LUIZA SOUSA ROMÃO


 

“O objetivo deste trabalho é o estudo de um processo de criação. (...) Estudo ao mesmo tempo descritivo e crítico, mas que, antes de tudo, procura captar o movimento e a transitoriedade de uma obra em gestação. Os fluxos e refluxos de um processo sempre inconcluso, incerto, tateante (...) interessa a trajetória de sua construção, os problemas de percurso, as cartografias sempre provisórias e mutantes, os erros de trilha, o desejo de atalhos, mais do que o seu ponto de chegada. Busca-se uma arqueologia da criação.” (Antônio Araújo)

            Por ser meu primeiro ano como artista-orientadora, a multiplicidade de contextos e questões do Projeto me atravessaram constantemente, influenciando diversas vezes o fazer estético. Elas percorrem desde a relação com a instituição do CEU até o próprio entendimento do que é um “processo artístico e emancipatório”. Assim, escolho como recorte desse ensaio, o processo de formação do artista-orientador ao longo do projeto.
            A epígrafe de Antônio Araújo me interessa na medida em que revela o intuito do meu escrito, e aponta para o caráter artístico do Vocacional. Mais do que pedagógico é na esfera do estético, que a troca com os vocacionados se dá. Isso implica outra postura na sala de ensaio: não se trata de formá-los tecnicamente (como atores, diretores, dramaturgos) – até mesmo porque um encontro de 3 horas por semana seria muito pouco para tal – e muito menos de transmitir conteúdos educacionais. O que seria então nossa função?
            Antes de mais nada, balizei os encontros pela criação de experiências, a fim de despertar a sensibilidade para o que há de mais concreto, e ao mesmo tempo, poético na realidade. Através de práticas de deriva (as quais envolviam o tato, olfato, escuta, toque), fomos dilatando os corpos e a observação. Desnaturalizar o andar e atentar para imagens que nos atravessam na rua, para placas que impõe caminhos, para sons que se apagam no turbilhão de ruídos, se mostrou um campo vivo, nos quais os vocacionados eram convocados o tempo todo a pensar sua sensibilidade cotidiana e extra-cotidiana. Deflagramos mecanismos de controle e anestesiamento que passam despercebidos, no dia-a-dia, e nos condicionam. Essa percepção se deu tanto na esfera da rua quanto do próprio corpo. Por exemplo, uma massagem se tornou um desafio que amedronta e atrai, na medida em que requer intimidade, em que mobiliza o afeto e detona couraças emocionais. Várias e várias vezes o riso emergia enquanto resposta imediata. Aos poucos, os vocacionados foram se apropriando do toque, identificando os entraves sociais que impedia essa proximidade física. Ao mesmo tempo, uma percepção mais aguçada do corpo, através do mapeamento de ossos e musculaturas, reverberou na forma de se colocar e se movimentar no espaço.
            Todo esse processo de propriocepção e de escuta do real não são propriamente teatrais (apontam mais pra pré-expressividade), o que me instigou a pensar como traduzi-lo em cena, ou seja, criar um campo de experiência para aquele que faz e aquele que flui; afinal, se trata do Projeto de Teatro (linguagem que necessita de uma síntese cênica). Quando os vocacionados eram instigados a criar células/imagens, as formas emergentes ainda era muito restrita, reproduzindo padrões melodramáticos e configurações espaciais tradicionais. Alterei então minha condução, estimulando-os com outros materiais. Nesse momento, explodimos o processo e criamos juntos intervenções no espaço do CEU, com cenas de teatro-invisível e instalações.
            É interessante notar o caráter movediço do processo: como artista-orientadora, me via a todo momento, tentando mapear os desejos e interesses, identificar o que era dissensual e o que era cômodo, e principalmente, quando a vivência se tornava experiência; observava como determinado procedimento reverberava (ou não) no coletivo, qual afetava os vocacionados e os deslocava para um olhar poético, e qual ficava na superfície; equilibrava os tempos necessários para acessar a sensibilidade, quando pausar e discutir, quando ir para imersão na prática; enfim, orientar é um exercício de afinação constante, que demanda apreender a realidade, codificá-la e intervir nela, criando novas formas de provocação. É tentativa e erro, reinvenção e síntese. Acima de tudo, diálogo. Dos procedimentos e materiais que carrego, tive que degluti-los e transformá-los, conforme os acontecimentos e ondulações de cada dia.
            Nesse sentido, gostaria de ressaltar a importância do coordenador de equipe: a presença do Paulo se mostrou essencial para a afinação da minha prática. Seu olhar externo diagnosticava onde ela emperrava, onde poderia ir além. Com apontamentos precisos e sugestões simples, fez os processos darem saltos qualitativos que eu sozinha não conseguiria. Pensando que o artista-orientador também está em formação, a posição ocupada pelo coordenador é essencial, pois é através das análises construídas com ele (e com os outros AOs da equipe) que entendemos e transformamos nosso processo.
            Outro ponto nevrálgico foi o da técnica. Trazer algum treinamento ou procedimento, logo de cara, não fez muito sentido, já que os vocacionados não se apropriavam dela e nem a significavam pra si. A maior parte estava tendo seu primeiro contato com o teatro, ou seja, tinham questões anteriores para serem desenvolvidas (tais como, estar no espaço, se relacionar através do olhar, entrar em contato). Portanto, as experiências sensoriais se mostraram mais condizentes. Em dado momento, porém, as necessidades apontavam para uma síntese e daí a técnica se mostrou necessária, tanto pra mim quanto para eles. Através de conversas, surgiu a importância de criar uma regularidade de exercícios que despertassem a concentração, a escuta e a presença, discutimos a repetição como dispositivo inerente ao teatro. Com uma das turmas (devido ao menor número de vocacionado, entre 15 e 20), conseguimos uma profundidade maior: ritualizamos e desenvolvemos alguns treinamentos energéticos, que hoje são essenciais para iniciar o encontro. É interessante perceber como “levar para o corpo” modifica o diálogo, e a percepção de si mesmo.
            Com a outra turma, enfrentei uma realidade controversa: a rotatividade de vocacionados. Lidar com isso foi um desafio, pois de um lado, cada encontro deveria ser uma célula mobilizadora por si só (ter potência para afetar aquele adolescente que aparece uma ou duas vezes e vai embora); por outro lado, deveria dar conta de um processo maior, continuado, no qual há expectativa de uma síntese. Nesse fino equilíbrio, criei dinâmicas que dessem conta dessa dualidade, uma delas, por exemplo, era a constante revisão coletiva do trajeto: historicizávamos o porquê de determinado tema ou a origem de certa cena, de forma que eles compreendessem os caminhos, desvios e atalhos até ali. Nessa reta final, retomamos e desenvolvemos alguns exercícios e imagens que eles haviam apresentado em momentos diversos. Esse retorno ao já conhecido foi muito interessante, pois o atualizar o fez novo, já que agora carregava as marcas da experiência vivida.
            O mesmo aconteceu com as temáticas. Balizadas ora por uma dramaturgia, um livro ou uma música, elas se fizeram e se refizeram, várias vezes, ao longo do processo. De forma não linear, algumas reverberavam meses depois: por exemplo, uma charge do Angeli que apresentei no segundo encontro influenciou uma discussão do último mês. Isso mostra como o tempo é um elemento essencial do Projeto, e como as conexões se estabelecem, sem que pra isso, precisemos categorizá-las didaticamente. Uma vez que o corpo serve de mediador, as experiências são convocadas conforme o tempo de decantação da cada um.
            Foi impossível, para mim, criar uma unidade final que abarcasse a totalidade de experimentos vividos (e tenho minhas dúvidas se isso seria o mais apropriado), o que conseguimos fazer foi sistematizar um pequeno exercício cênico. Ele não representa a pluralidade do processo, mas foi importante como mecanismo de afirmação. Para o ano seguinte, me proporei a focar na síntese. Se o atual processo foi regido por contaminações e derivas, por associações rizomáticas e meio caóticas, creio que um bom contraponto será trabalhar com eles, em seguida, uma estrutura mais fechada, na qual a descoberta do novo se dê pela repetição do velho. Esse deslocamento, obviamente, só será possível agora que atravessamos uma experiência e percebemos suas lacunas, seus fluxos e suas potencialidades. Como AO me sinto realizada pelo aprendizado, por me defrontar com o não-saber, e por recuperar o “pasmo essencial que tem uma criança ao nascer” (como diria Alberto Caeiro).

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