terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Em busca do “Coração Denunciador” e a perspectiva emancipatória no Teatro Vocacional

São Paulo, 18 de dezembro de 2015.
Programa Vocacional Teatro – Equipe Centro Oeste – Coord. Gabriela Flores
Biblioteca infantojuvenil Monteiro Lobato
Artista Orientadora: LAÍS MARQUES 





O nosso processo de criação nasceu de um desejo lançado pelas próprias vocacionadas: “queremos explorar a obra de Edgar Alan Poe no Teatro”. Depois de algumas leituras, Coração denunciador foi o conto escolhido. Em apenas quatro laudas um enigmático narrador descreve meticulosamente os passos que o levaram a cometer o assassinato de um velho por causa do modo como esse lhe dirigia o olhar. Nesse intrigante universo, ficção e realidade se misturam continuamente, fazendo com que as palavras, imagens e sensações criadas por Poe fossem exploradas a partir do exercício radical de presença e de invenção, ou seja, num convite aberto às inúmeras possibilidades de criação da cena.





Algumas perguntas iniciais balizaram a investigação: como transformar a matéria-prima literária num experimento teatral? Quais as estratégias para transformar o leitor que se debruça ativamente sobre a leitura do livro, numa plateia co-autora do espetáculo?
Optamos, pois, pelas seis atrizes presentes em cena o tempo todo, numa alternância contínua entre personagens e coro, sendo que a narradora muitas vezes dirigia-se diretamente para a plateia. Assim, muitos dos nossos estudos anteriores sobre composição e coralidade puderam ser resgatados a fim de que uma terminologia comum pudesse compor, passo a passo, nosso repertório expressivo.
Uma intenção era materializar na cena a percepção sonora da narradora, que não se considerava louca, apenas alguém com a audição de fato aguçada. Por conseguir ouvir os batimentos cardíacos da velha já enterrada, a “paisagem sonora” que construímos extrapolava a ficção a ponto de utilizarmos tanto o espaço da sala e o próprio corpo, quanto as palavras em seus infinitos recursos. Inclusive na entrada do público pedimos que eles fechassem os olhos para que toda a introdução do experimento fosse feita a partir dos estímulos sonoros.
O nosso espaço de trabalho, vale pontuar, foi a sala Multiuso da Biblioteca Monteiro Lobato e sua poética, digamos, hiperreal: inúmeras cadeiras empilhadas, lousas, cortinas, grades nas imensas janelas antigas, uma porta barulhenta, o ventilador de coluna, mesas e demais objetos característicos de uma sala de reunião convencional, explorada por nós como uma espécie de site specif  ficcional.





A lição de casa realizada ao longo do processo, contar a história sempre em 1a pessoa a um vizinho ou mesmo a um estranho na rua, contribuiu para que aos poucos as vocacionadas pudessem se apropriar dos detalhes da narrativa com as suas próprias palavras, evitando um decoreba distante dos seus próprios imaginários. Não pretendíamos simplesmente memorizar as palavras exatas de Poe mas, antes disso, compreender suas intenções, sua matemática delicada, as oposições entre luzes e sombras que muitas vezes traziam uma leveza contrastante e muito bem vinda.
Assim, sete quadros foram pouco a pouco se desenhando: “Apresentação”, “A Velha”, “O Ritual”, “A 8a noite”, “O Corpo”, “Visita das Policiais”, “Desfecho”. Cada trecho contou com uma narradora e uma estratégia cênica diferente, surgida no jogo entre o espaço e  os corpos presentes.
Avesso à qualquer realismo cênico, os corpos se emolduravam a partir de alguns princípios básicos da composição, relacionados aos Espaço e ao Tempo e de acordo com as intenções que cada atriz-vocacionada-criadora mantinha com o coro. Lançando mão de ingredientes que se agrupavam anarquicamente, esse coro apoiava-se em procedimentos simples resgatados das orientações anteriores e que conectavam a cena em diferentes perspectivas.
Somado ao único sobretudo revezado entre todas, a base do figurino eram as próprias roupas das vocacionadas que friccionavam a ficção com suas identidades reais: um vestido florido, a camiseta do super herói favorito ou mesmo uma roupa leve e confortável que, no conjunto surpreende pela teatralidade daquilo que é o cotidiano da vida posto na cena.





Preferimos, desse modo, apostar na nossa imaginação, na nossa intuição coletiva, na percepção e na potência formada pelo grupo como os principais ingredientes do processo criativo. Desse processo, ressaltamos ainda os desdobramentos que surgem no embate com a(s) realidade (s) em si,  no estreito diálogo com a cidade, com o equipamento no qual estávamos e as variadas formas de inclusão das diferenças. Se fez presente, sobretudo, a necessidade  maior da indisciplina na arte, de fugir às regras e encontrar dentro do jogo as preciosas iscas de um teatro que faz o impossível tornar-se possível.





Pessoalmente para mim, a Artista-Orientadora desse experimento e vinculada ao programa há 3 anos foi importante perceber que a perspectiva emancipatória lançada nas diretrizes do Programa pode ser compreendida e aprofundada como algo que nasce radicalmente junto com o (aparentemente simples) desejo de se “fazer teatro”, e que esse processo de elaboração maturação é o exercício em si da alteridade. Ele só acontece, portanto, no infinito processo de exploração e reinvenção da própria linguagem artística.





A busca emancipatória, enfim, começa dentro de mim  mesma e a cada encontro com o Outro. Além disso, ela não se conclui na apresentação final do trabalho nem tampouco se esgota no término do nosso precário contrato de trabalho. Essa dimensão político-estética-artístisco-pegadógica de fato nos coloca em ação criadora contínua, integralmente engajada com o que somos, com o que desejamos ser ou, mais ainda, com aquilo que a gente faz com o que fizeram de nós.





0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial