quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Da construção de habitação, à construção da arte



Ensaio de Pesquisa­ ação realizada dentro do Programa Vocacional Dança 2015. 
Equipamento: CEU Tiquatira 
Coordenadora regional: Mara Helleno 
Coordenadora de equipe: Cláudia Palma

Artista Orientadora: Thaís dos Santos Silva 



        Um lugar é escolhido no espaço para a edificação. Espaço vazio, pleno de possibilidades de movimentos e diferentes ações. Como no texto de Yi Fu Tuan, este é o lugar de liberdade, onde tudo pode vir a ser; tudo ainda que existe é amplo, passageiro, fugaz.
        Assim estava o espaço ao redor do CEU Tiquatira: em suas possibilidades. Após uma violenta desocupação ocorrida em anos anteriores, os arredores do CEU se encontrava em um imenso vazio, destinado pelo Estado a um metrô e a uma CDHU que não se concretizaram por anos. Diante desse abandono do local, a população ocupou o espaço nesse início de ano e começou a construir uma comunidade. De espaço vazio, os arredores do Tiquatira tornou­-se lugar; uma rede de significações e afetos começou a ser construída onde antes só havia barro.
       
         “Era ele que erguia casas 
        Onde antes só havia chão. 
        Como um pássaro sem asas 
        Ele subia com as casas
        Que lhe brotavam da mão.
        Mas tudo desconhecia
        De sua grande missão:
        Não sabia, por exemplo
        Que a casa de um homem é um templo 
        Um templo sem religião
        Como tampouco sabia
        Que a casa que ele fazia
        Sendo a sua liberdade
        Era a sua escravidão.” (MORAES, 1959)


    As casas que brotavam do fazer criador das mãos de homens e mulheres da comunidade apresentavam sua resistência, “tijolo com tijolo num desenho mágico”, “tijolo com tijolo num desenho lógico” (BUARQUE, 1971), que substituíam os antigos barracões de madeira da ocupação anterior. Era uma atitude afirmativa. Com seus materiais e vozes, a comunidade dizia que vinha para ficar, e esta era sua liberdade. No entanto, sua escravidão chegou na forma de um mandato de desocupação enviado pelo Estado, destinado a janeiro de 2016. Ao invés de auxiliarem com infra­estrutura a comunidade que se colocou bem organizada no local, ela será expulsa dali. O que fazer? A luta está organizada e forte, mas o que vai acontecer? Pra onde ir quando não há terra a ser transformada? Pra onde ir quando não se tem bem pra onde?
        E percebemos assim que o único lugar propriamente seu, a casa pra onde sempre recorrer, o templo sem religião, é o próprio corpo. Como bem disse Hilda Hilst, “tu não te moves de ti” e em si é construída a sua casa, o seu espaço de significação, o seu alento, sua possibilidade de expressão e apreensão das relações que se estabelece com o mundo.
E é nesse ambiente que se encontra o Vocacional com Dança e Teatro: em um ambiente onde o corpo é o único lugar a que recorrer. Ainda que pessoas da comunidade não participaram ativamente do programa, naquele contexto havia uma latência do corpo que movimentava a todos que chegavam ali. O corpo vibrava, clamava e também se recolhia em sua intimidade. Ali havia a possibilidade de uma construção do corpo e da arte, individual e coletivamente.
        O grupo de vocacionados que permaneceu por mais tempo nas orientações de dança já haviam participado de edições anteriores do programa e era visível que possuíam uma construção, tijolo por tijolo, adquirida pela experiência com outros artistas orientadores que passaram por ali. O corpo trazia a memória do vivido e a abertura às novas experiências. E essa experiência que é aquilo “que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca” (BONDÍA, 2014, p.18), já se mostrava parte dos vocacionados que se colocavam como sujeitos da experiência, abrindo­-se ao desconhecido e às percepções de suas realidades para, através de seus sentidos, conhecer o mundo e afetar­-se por ele, conseguindo criar significações para ele de maneira expressiva. Assim, eles já conheciam aquilo que o operário em construção de Vinícius de Moraes não conhecia:

        “Mas ele desconhecia
        Esse fato extraordinário:
        Que o operário faz a coisa
        E a coisa faz o operário.

        De forma que, certo dia
        À mesa, ao cortar o pão
        O operário foi tomado
        De uma súbita emoção
        Ao constatar assombrado
        Que tudo naquela mesa
        Garrafa, prato, facão
        Era ele quem os fazia
        Ele, um humilde operário,
        Um operário em construção.
        Olhou em torno: gamela
        Banco, enxerga, caldeirão
        Vidro, parede, janela
        Casa, cidade, nação!
        Tudo, tudo o que existia
        Era ele quem o fazia
        Ele, um humilde operário
        Um operário que sabia
        Exercer a profissão.” (MORAES, 1959)


        E tendo um olhar para toda a situação da comunidade que estava próxima, os vocacionados se viram tão parte daquilo, como aquilo fazia parte deles, por co­-habitarem. Um fazia parte do outro. E se estabelecia uma relação empática. Percebendo a situação das pessoas da comunidade, os vocacionados se sensibilizaram e deixaram reverberar em seus corpos a compreensão que tinham do local, deram espaço em seu fazer para que expressões daquilo que percebiam e conviviam se manifestassem. Havia a sensação de pertencimento e a compreensão de que muito poderiam dizer sobre suas próprias percepções daquilo com que conviviam. Era uma relação do sensível: a percepção do outro e a reverberação desse outro em si.
        As Ações realizadas pela equipe e pelos vocacionados na comunidade também permitiam cada vez mais entrar em contato com o que estava ocorrendo no local, com as idéias e percepções das pessoas que viviam na comunidade, com o espaço modificado, com o barro, com as casas construídas, com as janelas e frestas, com as pessoas. E foi um crescimento entender que elas percebiam em seu fazer a sua própria expressão artística, assim como nos disse um homem de cima do telhado que estava construindo – “essa é a arte de vocês [se referindo ao cortejo que fizemos na comunidade] e esta é a minha!”.
        E toda essa percepção do entorno e do outro deu alimento ao processo criativo dos dois grupos (um de dança e o outro de dança e teatro conjuntamente), com teores e apreensões distintos entre eles, mas fomentando um fazer artístico e criativo que partia da expressão daquilo que o corpo estava emanando das percepções sentidas, criando no ato de dançar a significação das impressões vividas.


        “Ah, homens de pensamento 
        Não sabereis nunca o quanto 
        Aquele humilde operário 
        Soube naquele momento! 
        Naquela casa vazia
        Que ele mesmo levantara
        Um mundo novo nascia
        De que sequer suspeitava.
        O operário emocionado 
       Olhou sua própria mão
        Sua rude mão de operário
        De operário em construção
        E olhando bem para ela
        Teve um segundo a impressão 
        De que não havia no mundo 
        Coisa que fosse mais bela.

        Foi dentro da compreensão 
        Desse instante solitário 
        Que, tal sua construção         
        Cresceu também o operário. 
        Cresceu em alto e profundo 
        Em largo e no coração
        E como tudo que cresce 
        Ele não cresceu em vão 
        Pois além do que sabia ­ 
        Exercer a profissão ­ 
        O operário adquiriu 
        Uma nova dimensão:
        A dimensão da poesia.” (MORAES, 1959)


        E da mesma forma, percebendo a beleza de suas mãos e de seus corpos­-casas que agem, sentem, se expressam em dança, movimento e voz, os vocacionados construíram seu processo criativo que, a cada camada de tijolos, argamassa, reboco e pintura, foi se constituindo, se moldando, se refinando. Ali estava a poesia do fazer diário, do encontro, da permeabilidade ao outro e ao mundo, da descoberta da potência do corpo e do coletivo.
        Ao mostrarem­-se porosos aos acontecimentos de seu redor e se relacionarem com a realidade, subjetivando­-a, foi possível ver em suas criações as características e as reflexões que traziam enquanto indivíduos e como coletivo. Esse processo de se perceber no mundo e de ser e criar com ele também possibilita uma emancipação dos sujeitos presentes através da relação, reflexão e ações ocorridas junto com os demais vocacionados e com a equipe. A voz é criada, a expressão é liberada em dança, movimento refletido e discutido. Criando­-se o processo artístico a partir desses fazeres, os vocacionados também acabam se tornando cidadãos que se fazem presentes e atuantes em suas comunidades, podendo trazer possibilidades de novas construções e transformações sociais, devido a consciência da potência do fazer criador.


Bibliografia


BONDÍA, J. Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. In: Tremores: escritos sobre a experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

BUARQUE, Chico. Construção. Gravado pela Cara Nova Editora Musical Ltda, 1971.
HILST , Hilda. Tu não te moves de ti . Globo Editora, 1980. 
MORAES, Vinicius. Operário em Construção. Rio de Janeiro, 1959. 

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