Da construção de habitação, à construção da arte
Ensaio de Pesquisa ação realizada dentro do Programa Vocacional Dança 2015.
Equipamento: CEU Tiquatira
Coordenadora regional: Mara Helleno
Coordenadora de equipe: Cláudia Palma
Artista Orientadora: Thaís dos Santos Silva
Equipamento: CEU Tiquatira
Coordenadora regional: Mara Helleno
Coordenadora de equipe: Cláudia Palma
Artista Orientadora: Thaís dos Santos Silva
Um lugar é escolhido no espaço para a edificação. Espaço vazio, pleno de possibilidades de movimentos e diferentes ações. Como no texto de Yi Fu Tuan, este é o lugar de liberdade, onde tudo pode vir a ser; tudo ainda que existe é amplo, passageiro, fugaz.
Assim estava o espaço ao redor do CEU Tiquatira: em suas possibilidades. Após uma violenta desocupação ocorrida em anos anteriores, os arredores do CEU se encontrava em um imenso vazio, destinado pelo Estado a um metrô e a uma CDHU que não se concretizaram por anos. Diante desse abandono do local, a população ocupou o espaço nesse início de ano e começou a construir uma comunidade. De espaço vazio, os arredores do Tiquatira tornou-se lugar; uma rede de significações e afetos começou a ser construída onde antes só havia barro.
“Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.” (MORAES, 1959)
As casas que brotavam do fazer criador das mãos de homens e mulheres da comunidade apresentavam sua resistência, “tijolo com tijolo num desenho mágico”, “tijolo com tijolo num desenho lógico” (BUARQUE, 1971), que substituíam os antigos barracões de madeira da ocupação anterior. Era uma atitude afirmativa. Com seus materiais e vozes, a comunidade dizia que vinha para ficar, e esta era sua liberdade. No entanto, sua escravidão chegou na forma de um mandato de desocupação enviado pelo Estado, destinado a janeiro de 2016. Ao invés de auxiliarem com infraestrutura a comunidade que se colocou bem organizada no local, ela será expulsa dali. O que fazer? A luta está organizada e forte, mas o que vai acontecer? Pra onde ir quando não há terra a ser transformada? Pra onde ir quando não se tem bem pra onde?
E percebemos assim que o único lugar propriamente seu, a casa pra onde sempre recorrer, o templo sem religião, é o próprio corpo. Como bem disse Hilda Hilst, “tu não te moves de ti” e em si é construída a sua casa, o seu espaço de significação, o seu alento, sua possibilidade de expressão e apreensão das relações que se estabelece com o mundo.
E é nesse ambiente que se encontra o Vocacional com Dança e Teatro: em um ambiente onde o corpo é o único lugar a que recorrer. Ainda que pessoas da comunidade não participaram ativamente do programa, naquele contexto havia uma latência do corpo que movimentava a todos que chegavam ali. O corpo vibrava, clamava e também se recolhia em sua intimidade. Ali havia a possibilidade de uma construção do corpo e da arte, individual e coletivamente.
O grupo de vocacionados que permaneceu por mais tempo nas orientações de dança já haviam participado de edições anteriores do programa e era visível que possuíam uma construção, tijolo por tijolo, adquirida pela experiência com outros artistas orientadores que passaram por ali. O corpo trazia a memória do vivido e a abertura às novas experiências. E essa experiência que é aquilo “que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca” (BONDÍA, 2014, p.18), já se mostrava parte dos vocacionados que se colocavam como sujeitos da experiência, abrindo-se ao desconhecido e às percepções de suas realidades para, através de seus sentidos, conhecer o mundo e afetar-se por ele, conseguindo criar significações para ele de maneira expressiva. Assim, eles já conheciam aquilo que o operário em construção de Vinícius de Moraes não conhecia:
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
Garrafa, prato, facão
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.” (MORAES, 1959)
E tendo um olhar para toda a situação da comunidade que estava próxima, os vocacionados se viram tão parte daquilo, como aquilo fazia parte deles, por co-habitarem. Um fazia parte do outro. E se estabelecia uma relação empática. Percebendo a situação das pessoas da comunidade, os vocacionados se sensibilizaram e deixaram reverberar em seus corpos a compreensão que tinham do local, deram espaço em seu fazer para que expressões daquilo que percebiam e conviviam se manifestassem. Havia a sensação de pertencimento e a compreensão de que muito poderiam dizer sobre suas próprias percepções daquilo com que conviviam. Era uma relação do sensível: a percepção do outro e a reverberação desse outro em si.
As Ações realizadas pela equipe e pelos vocacionados na comunidade também permitiam cada vez mais entrar em contato com o que estava ocorrendo no local, com as idéias e percepções das pessoas que viviam na comunidade, com o espaço modificado, com o barro, com as casas construídas, com as janelas e frestas, com as pessoas. E foi um crescimento entender que elas percebiam em seu fazer a sua própria expressão artística, assim como nos disse um homem de cima do telhado que estava construindo – “essa é a arte de vocês [se referindo ao cortejo que fizemos na comunidade] e esta é a minha!”.
E toda essa percepção do entorno e do outro deu alimento ao processo criativo dos dois grupos (um de dança e o outro de dança e teatro conjuntamente), com teores e apreensões distintos entre eles, mas fomentando um fazer artístico e criativo que partia da expressão daquilo que o corpo estava emanando das percepções sentidas, criando no ato de dançar a significação das impressões vividas.
“Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
Exercer a profissão
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.” (MORAES, 1959)
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
Exercer a profissão
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.” (MORAES, 1959)
E da mesma forma, percebendo a beleza de suas mãos e de seus corpos-casas que agem, sentem, se expressam em dança, movimento e voz, os vocacionados construíram seu processo criativo que, a cada camada de tijolos, argamassa, reboco e pintura, foi se constituindo, se moldando, se refinando. Ali estava a poesia do fazer diário, do encontro, da permeabilidade ao outro e ao mundo, da descoberta da potência do corpo e do coletivo.
Ao mostrarem-se porosos aos acontecimentos de seu redor e se relacionarem com a realidade, subjetivando-a, foi possível ver em suas criações as características e as reflexões que traziam enquanto indivíduos e como coletivo. Esse processo de se perceber no mundo e de ser e criar com ele também possibilita uma emancipação dos sujeitos presentes através da relação, reflexão e ações ocorridas junto com os demais vocacionados e com a equipe. A voz é criada, a expressão é liberada em dança, movimento refletido e discutido. Criando-se o processo artístico a partir desses fazeres, os vocacionados também acabam se tornando cidadãos que se fazem presentes e atuantes em suas comunidades, podendo trazer possibilidades de novas construções e transformações sociais, devido a consciência da potência do fazer criador.
Bibliografia
BONDÍA, J. Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. In: Tremores: escritos sobre a experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
BUARQUE, Chico. Construção. Gravado pela Cara Nova Editora Musical Ltda, 1971.
HILST , Hilda. Tu não te moves de ti . Globo Editora, 1980.
MORAES, Vinicius. Operário em Construção. Rio de Janeiro, 1959.
BONDÍA, J. Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. In: Tremores: escritos sobre a experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
BUARQUE, Chico. Construção. Gravado pela Cara Nova Editora Musical Ltda, 1971.
HILST , Hilda. Tu não te moves de ti . Globo Editora, 1980.
MORAES, Vinicius. Operário em Construção. Rio de Janeiro, 1959.
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