Sobre o vínculo, sobre o início do vínculo.
Ensaio/Ano2015 Programa Vocacional Sul-1.
Artista Orientador: Sérgio Pupo.
Sobre
o vínculo, sobre o início do vínculo.
Contexto: Teatro João Caetano, volta a receber o Programa
Vocacional depois de mais de três anos sem turmas ou grupos dentro deste Programa
da Prefeitura de São Paulo.
Faz-se necessário uma estratégia para agregar pessoas,
formar turmas e finalmente iniciar o trabalho de orientação artística.
O nosso inicio como AO é um lugar-comum bastante
conhecido a todos que trabalham com ações culturais de diversas modalidades –
ou seja: identificar-se e apresentar-se para os que já trabalham no equipamento
público (funcionários, gestores, que muitas vezes estão por lá há anos,
possivelmente décadas), ser recebido com mais ou também menos entusiasmo
(depende). Neste momento já temos a primeira oportunidade de estabelecer um
vínculo bastante pertinente ao trabalho. Pode ser que não seja bom o suficiente
logo no começo, ou talvez seja, mas piore depois (depende).
Divulgação feita, chega o momento do “criar vínculo”.
Deixemos claro, que é um tiro no escuro, uma aposta, a qual estará sempre em
xeque pois, a vida de uma turma, ou seja, seu percurso durante o processo
artítico-pedagógico estará sujeito ao atravessamento de complexidades que fogem
ao controle de qualquer orientador.
Estamos falando de um programa, que claramente se insere
no contexto da Ação Cultural (mesmo que muitas vezes, para todas as instancias
dentro da estrutura do Programa Vocacional, não haja consciência do que
exatamente isto significa). O conceito de ação cultural com o qual trabalhamos
neste breve ensaio, se baseia nas concepções desenvolvidas por Teixeiras Coelho
e Paulo Freire, consciente de que há outras concepções, não coincidentes, mas
em diálogo. A ação cultural é concebida como um processo que, embora tenha um
início claro, específico e contextualizado, não possui um fim estabelecido, nem
etapas a serem necessariamente cumpridas. Segundo esta compreensão, o agente
cultural gera um processo e não um objeto; ele estimula um processo cujo fim
ele não controla e nem pode prever, mas tem a liberdade de inventar. Na
conceituação de Teixeira Coelho (1989) a ação cultural deve apostar e investir
nas condições necessárias para que as pessoas inventem seus próprios fins e se
tornem, assim, sujeitos da cultura. É por isso que a ação cultural atua na
interconexão entre cultura, política e organização social. A correlação com
aspectos concernentes à educação, (numa dimensão de formação ampla do ser
humano) também é intrínseco ao processo de ação cultural, e qualquer tentativa
de emancipação dos elementos presentes nesta interconexão, é necessariamente,
falta de consciência da natureza da ação da qual estamos envolvidos.
Dentro deste pensamento, a criação do vínculo não é
meramente uma propriedade pessoal e aleatória, associada equivocadamente a um
tipo de comportamento afável e submisso; é sim uma estratégia de ação cultural, com medidas que se por um lado não são
possíveis de se estabelecer de antemão, por outro, exige sim uma postura-ação
consequente, fincada na percepção aguçada do momento presente, que se torna
ultrapassado e obsoleto a cada segundo. Enfim uma tarefa vã, porém não inútil,
certamente.
A criação do vínculo como estratégia de ação cultural, já
foi estudado e descrito, muito mais profundamente do que neste ensaio, por
Paulo Freire, que percebeu que qualquer conhecimento, seja ele matemático ou poético
(ou os dois juntos) depende da compreensão dos elementos culturais das pessoas
para quais estamos propondo a ação.
Estamos falando de uma percepção que demora um certo
tempo para se estabelecer como um fato palpável e consciente. Seria mentira
dizer que a percepção do vínculo se
faz no primeiro momento e que com poucos encontros com as turmas que estão se
formando (parece que a turma fica “eternamente” se formando, visto que a
circulação nos dois sentidos, em geral, não para de acontecer) isto já é
concreto – não é. Não precisa ser, pois se trata de um relacionamento, cujos
elementos são dinâmicos, e não uma relação, cujos elementos são estáticos. Por
exemplo, o meu vínculo com o vendedor de laranjas da feira, com o médico que
faço exames periódicos, com o funcionário do banco é uma relação. A minha interação e convivência com a namorada, familiares
próximos e com a turma do Programa Vocacional, tem que ser um relacionamento. Neste último, há
dinâmica, pois há (ou deveria haver) escuta, ação e reação, sempre em duas
vias. Apesar desta qualidade já ter que ser instaurada desde o primeiro
momento, ela demora um tempo para se estabelecer de forma consciente e
esteticamente consequente. Pois é disso que estamos falando, um processo
artístico, estético nos meios e nas consequências.
Este tempo requisitado e defendido neste ensaio, para que
se concretize o elemento de ligação do processo, chamado aqui de vínculo, por
vezes é vilipendiado e violado, por vários elementos estruturais do Programa
Vocacional e do próprio equipamento no qual estamos inseridos, que em geral,
por não ter pessoas preparadas para a tarefa da ação cultural, acabam levando
esta questão ao limite do possível. Ainda que no meu caso específico, no Teatro
João Caetano, tenha sido bastante favorável, esta, decididamente não é a regra.
A artista Vera Salla, escreveu em seu artigo para uma
revista do SESC (dez/2002): “Estou irritada e cansada do tempo que o
mercado cultural da cidade, através de seus fomentadores, impõe - este não é o
tempo real da arte, do processo de criação em arte. As coisas precisam ter uma
duração para que se estabeleça em nosso corpo, em nosso cérebro e entranhas. E
este tempo não tem tanto a ver se o trabalho (produto final) está pronto ou não
– é um tempo realmente cronológico, não relativo. Precisa de muitos meses para
que a profundidade que estamos evocando apareça. Chega de encomendas para daqui
três meses!”
Precisamos decidir enquanto Programa público, qual a
nossa postura em relação a este aspecto do processo, já que para formar o
vínculo, precisamos necessariamente gestar o tempo conforme as reais
necessidades do processo, exercitando a coragem de afastar as demandas
burocráticas e ansiedades institucionais, para fazer o que realmente importa:
ações culturais geradoras de vínculos, ações estéticas (toda estética é
política), pensamentos e sentimentos que nos façam repensar a nossa relação com
o mundo.
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