domingo, 13 de dezembro de 2015


ENSAIO
Patricia Osses
VOCACIONAL ARTES VISUAIS - ano 2015. CEU Vila Curuçá. Leste 2

O Cotidiano
Primeiro ano de Vocacional. 
Lugar e território desconhecidos. Pessoas novas, em sua maioria jovens (demais?). 
Fico pensando nos conteúdos a trabalhar com as pessoas que me procuram, esperando direções. E que não teriam porquê ser diferentes das que procuro para mim mesma. Senão, como torná-las verdadeiras?
Como não cair em metodologias ou técnicas e configurar pontos de encontro. 
Os temas possíveis:
o auto-retrato, para nos apresentarmos. o oratório de mim mesmo.
o auto-lugar. a pele das casas que vemos.
uma introdução à introdução da introdução aos lugares imaginários.
mostrar, expor, levar o trabalho até sua fisicalidade final. e ocupar um espaço que não o do CEU - lugar/edificio negativo, anti-mostra, árido, anti-formas.
Driblar a falta de recursos, que afinal faz parte permanente do modus vivendi do artista plástico brasileiro: sobreviver e produzir ao mesmo tempo. Trazer materiais doados, encontrados, coletados, carregar muita coisa. Encontrar, arqueologicamente, coisas feitas no ano anterior por mãos e pessoas invisíveis. Arrumar, organizar, dispor. 
Comprar, afinal, o que falte; levar as ferramentas próprias, mais peso; sempre trazer de volta, para que não desapareçam.

O território
Deslocar-se. De trem. O anti-fluxo. A paisagem narrada. Lugares para se descer no caminho. Algum dia em que o tempo não esteja justo. 
Sou detentora do privilégio inestimável do anti-fluxo.
Chaminés, varandas, ferros-velhos, ruazinhas, ruínas, percurso.
Ver o fim da cidade. Onde São Paulo termina. É logo ali. Um limite possível para uma cidade interminável.
“Qual a diferença entre o que sou agora e o que esta cidade irá fazer de mim?”
O desconhecido. O novo. O leste. A periferia - olhar perifericamente / caminhar perifericamente. O que é andar sobre essa linha imaginária? Outros códigos. Onde sou extrangeira, mas desde dentro. É ali que trabalho. Estranha situação. Estranha eu. Mas nem tanto.

Produzir, depois de
O que vai acontecer, depois de ser anti-fluxo, depois de ver a borda. Onde a cidade termina. É logo ali.
Voltar a desenhar, desvestirme de câmera. Para compreender a partir do registro. Mas registro que não seja foto. A câmera fotográfica é presente dermais como meio, agressiva e externa, espiã, privilegiada, e me separa de onde estou. Me coloca fora de.
Sem o peso do equipamento posso ficar mais leve para circular, carregando lápis e papel. Desenhar, em breve. Como há muito tempo atrás.

Vocacionados
ou não vocacionados.
As baixas de Guilherme, Bianca, Matheo. E sete ou oito meninas que deixaram seus nomes e não voltaram mais.
As insistências: João, Paulo Sergio e às vezes Caroline, porque ela ama o CEU.
Paulo, 13 anos, tudo explora, transforma, inventa. Para o teatro. Tudo se transforma em cênico. As artes visuais são um instrumento para o teatro. Posso fornecer alguns instrumentais, que é o que são as artes agora, para ele. É extremamente fértil e seu universo é transformável. Inventa Pollock, inventa Richter, sem conhecer nenhum dos dois, mas não se importa muito. Ele pode ser o que quiser. Preciso dizer isso a ele.
João, 41, o vocacionado ideal, é fotografo. Vem buscando, procurando, e tem sede de informações, provocações, alimento, e já sabia que a fotografia é meio, e não fim. Está buscando o que existe dele nas imagens que faz. E encontrando, muito intensamente. Produtivamente. Não param de surgir e crescer suas novas imagens. Agora elas podem inclusive ser escritas. Podem ser pintadas. Musicadas, ganham tempo. Viram filme. E são, mais do que nunca, dele.

Caroline, quintas.


Paulo Sergio, quintas de tarde.






   


João Carlos, quintas de manhã.

  







Reflexões sobre um lugar
só posso escrever desde o anti-fluxo
só sei me mover no anti-fluxo?
Parece insuportável um cotidiano desde dentro do fluxo. O vislumbrar dessa realidade já é massacrante. 
No entanto, tão comum. Um comum de dois milhões de pessoas que deixam de ser pessoas e passam a ser massa raivosa, pisoteadora e mansa, ao mesmo tempo. A tensão e o medo ao aproximar-me do Brás, na volta, depois das 17 hs. A massa ruge e quer entrar. Só eu quero e posso sair. 
Apenas tangencio o fluxo com meu anti-fluxo.
penso em flechas. Arrows, Gordon Matta-Clark:
a flecha do anti-fluxo - projeto para a flecha
com um estojo muito bonito, em madeira de lei. fundição em estanho. ela é cinza, opaca, densa e muito pesada.
ela é feita para circundar, será? não atingir?
A FLECHA que TANGENCIA.
desde onde não sou.
a unica possibilidade de se saber numa cidade como esta. desde seu limite.
penso: a cidade termina alí.
logo alí.
como saber que São Paulo, até mesmo São Paulo, tem um fim?

A periferia como lugar imaginário
o lugar imaginario periférico. a periferia imaginária. a borda. o limite. o além - limite.
até onde estender a cidade.
até onde empurrar o limite imaginado da cidade real.
mais real que a realidade. palpável, cheirável, pisável, comestível, visível, risível, chorável. 
que especie de recipiente é a cidade, quando contém histórias como essas?
“A cidade possui as histórias terríveis de seu passado”. 
Rhinoceros, video, 2014.
ficaram gravadas nas paredes como marcas da enchente. 
o rio quando sobe deixa uma marca em forma de linha. sobre essa linha posso escrever. pode-se escrever. 
Penso num trabalho que desenvolvi este ano, relacionado aos lugares literários: uma caminhada pelo centro de São Paulo, literária, atribuindo sentidos e textos ficcionais a edificios, ruas, túneis, viadutos. 


As pessoas caminham e duas leitoras-atrizes vão lendo trechos de lugares escritos por diversos autores, transformando o tunel do anhangabaú no inferno de Dante, a biblioteca em lugar infinito, a catedral da Sé em cenário lúgubre para um casamento à meia-noite... Penso em quais textos estes lugares do leste, da borda, poderiam conter. Tomo emprestados alguns textos do centro para a Leste recém-explorada, que lentamente passa a penetrar meu repertório. Penetro o território e penso em que repertório pode conter:
Cada cidade recebe a forma do deserto a que se opõe.
(Ítalo Calvino, As cidades invisíveis)
A vezes, o labirinto da cidade não está nas ruas nem nas confusões de tempo, mas no comportamento inesperado das pessoas que vivem alí.
(Tomas ELoy Martinez, El cantor de Tango)
Em toda grande cidade existe, como se sabe, uma dessas linhas de alta densidade, semelhante aos buracos negros do espaço, que altera a natureza dos que a atravessam.
(Tomas ELoy Martinez, El cantor de Tango)
Da alta balaustrada do palácio real, o Grande Khan observa o crescimento do império. Primeiro, as fronteiras haviam se dilatado englobando os territorios conquistados, mas o avanço dos regimentos encontrava regiões semidesertas, aguaçais em que o arroz crescia mal, populações magras, rios secos, miséria. “É hora de o meu império, crescido demais em direção ao exterior, começar a crescer para o interior”, e sonhava bosques de romãs maduras, zebus assados no espeto gotejando gordura, minas de pepitas cintilantes. 
(Ítalo Calvino, As cidades invisíveis)
Ó meu São Paulo!
Ó minha uiara de cabelo vermelho!
Ó cidade dos homens que acordam mais cedo no mundo! 
Há algumas casas, mesmo as mais simples, que são complexas por ganharem diversos sentidos para diferentes pessoas. Para alguns elas representam propriedade, para outros uma parte da infância, pequena e desbotada demais para suas grandes ambições. Para dois ou três que ali viveram longo tempo, ou que simplesmente sentiram uma afinidade à primeira vista, como um apaixonamento, uma casa especial pode invadir seu sistema circulatório, pode alterar suas vidas. 
(Howards End, E.M. Forster)
Eu moro na casa. Eu a atravesso. Eu a habito tanto por fora como no seu interior.
Às vezes eu a escuto respirar. O ar passa dentro de um fluxo que depende da orientação dada às laminas do vitrô, ele vem mais frequentemente do leste, ele deixa o calor suportável, ele seca a pele em um instante depois das duchas geladas do meio-dia abafado, ele perdeu sua força quando vem agitar a vela branca tendida acima do pátio.
(Bernard Collet, Ela, tão próxima do mar)
Depois de marchar por sete dias através das matas, quem vai a São Paulo não percebe que já chegou. As finas andas que se elevam do solo a grande distância uma da outra e que se perdem acima das nuvens sustentam a cidade. Sobe-se por escadas.
Os habitantes raramente são vistos em terra: têm todo o necessário lá em cima e preferem não descer. Nenhuma parte da cidade toca o solo exceto as longas pernas de flamingo nas quais ela se apoia, e, nos dias luminosos, uma sombra diáfana e angulosa que se reflete na folhagem.
(Italo Calvino, AS CIDADES E OS OLHOS 3, Bauci)



faltou desenhar.
para entender este lugar.
que tem um passado submerso, eu sei: o que é construir/existir a partir do segundo andar.
faltou alojar textos.
falto construir flechas.
ano que vem eu volto.


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