domingo, 13 de dezembro de 2015




Ensaio Vocacional Dança – 2015
“O elemento tempo como disparador de criação
em solos e grupos nos encontros de orientação de dança”
Tatiana Melitello
Esse ensaio visa apresentar algumas reflexões acerca dos encontros de
orientação de dança na Casa de Cultura Chico Science durante o programa
Vocacional 2015. Os encontros com pessoas de diferentes idades foram marcados
por experiências de criação, de estudos de movimento e de composição.
Todas essas ações artístico-pedagógicas partiram de um estudo coletivo e
singular sobre o tempo. Por exemplo, os vocacionados experimentaram diferentes
possibilidades temporais de movimento em relação ao outro utilizando elásticos, o
puxar o outro ou o deixar-se levar pelo outro de forma rápida ou lenta, indicava a
força empregada ao movimento construído por cada um e qual parte do corpo era
mobilizada para que todo seu corpo se envolvesse na ação. As composições desse
processo produziam uma grande teia na qual o movimento de um implicava
invariavelmente no do outro. Um outro exemplo de trabalho baseado nos estudos
acerca do tempo foi a experimentação de sequências coreográficas que além de
possibilitar movimentos que colaboram à reorganização do corpo também
promoveram à uma outra forma de abordarmos o tempo, utilizando sequencias
numéricas e a música.
Os dois exemplos citados acima nos demonstram duas diferentes formas de
percebermos o tempo em dança, um tempo linear e sucessivo marcado por
intervalos numéricos e outro tempo construído pela sensação presente do
movimento, pela memória e formação de imagens. Partimos do entendimento de
que Além do tempo linear, sucessivo e continuado determinado pelo relógio,
padronizado pela sociedade, que implica uma linha linear temporal dos
acontecimentos que mede o movimento pelos números e intervalos numéricos de
forma uniforme e retilínea, a construção de uma dança lida também com um
pensamento rizomático de significados do presente e do passado.
Entendemos que a construção de uma dança lida também com
temporalidades processadas por esquemas de imagens que partem das atividades
sensório-motoras do corpo (JOHNSON, 2007). Na construção de uma dança, essas
temporalidades se manifestam no instante e nas durações do movimento (LOUPPE,
2012). Tanto o instante, fragmento de experiência, quanto a duração, que envolve a
percepção dos momentos de nossas vidas (BERGSON, 1968), se inscrevem em
processos de atualizações e constantes incorporações (LEPECKI, 2011),
possibilitando uma dramaturgia singular de dança.
Compreendemos que esse tempo da realização de um movimento na
percepção do tempo presente implica em temporalidades, e que essa noção
temporal está correlacionada com a atenção, com a gravidade, com o espaço e
tônus do corpo (BARDET 2012). Nos encontros de orientação experienciamos essa
temporalidade da construção do tempo presente quando, por exemplo, uma pessoa
especializava seu corpo com a ajuda do elástico o outro tinha de lidar com seus
próprios espaços articulares, com a modulação de seu tônus e isso tudo apenas é
possível pela percepção do próprio corpo que é gerada pela gravidade.

Além dessa temporalidade da percepção do momento presente nas
construções do movimento abordada nos encontros de orientação, também
trabalhamos com a construção de solos, nesses cada um foi estimulado por meio do
improviso a produzirem movimentos por meio da memória. As situações
vivenciadas, criadas ou imaginadas eram postas de modo recriado pelo movimento.
A pesquisadora, autora e professora da Universidade de Nova York Mary
Carruthers (2011) colabora à compreendermos melhor o elemento tempo como
disparador de criação, ela explica que “as artes da memória estão entre as artes do
pensar, envolvidas especialmente na promoção das qualidades que hoje
reverenciamos sob os nomes de imaginação e criatividade (pag.34). A autora (2002)
afirma que a memória, nome dado dentro do monaquismo, é um “ofício cognitivo”,
uma arte de composição. A constatação de que compor dependia de uma segura e
bem mobiliada memória era a base da educação retórica na antiguidade, esse
ensino fundamental das artes era o veículo de formação da pessoa e do cidadão.
Segundo Carruthers (2011), o exercício da memória possibilita a disposição
ordenada e a construção de um pensamento por meio de imagens que agenciam
pistas e trânsitos para novas associações e orientações. A memoria medieval
edificava padrões, redes de partículas, construídas por associação, no interior de
sua memória, partículas que devem ser reunidas em uma ideia” (2011,p.54).
Carruthers (2002) explica que a memória não é passiva, é uma atividade cognitiva
que envolve uma forma de raciocínio, pois o princípio básico da memória é a
recombinação de matérias em novos padrões e formas levando à invenção. Além
disso, a memória funciona por associação, suas conexões são individuais,
particulares pois dependem das experiências, aprendizados, desejos e vontades.
Embora diferentes, tanto a memória rerum, atividade na qual lembramos as coisas
por meio de imagens, quanto a memória verborum, termo encontrado na pedagogia
da retórica, são edificadas por meio de cadeias associativas.
A pesquisadora, autora e professora da Universidade de Londres Frances
Yates (2007) ajuda à compreendermos que as técnicas para lembrar e construir um
pensamento enfatizadas por Aristóteles incluem o da associação, embora ele não
utilize essa palavra mas o da ordem, a associação parte de “algo semelhante,
oposto ou interligado [...] Essa passagem foi descrita como a primeira formulação
das leis de associação por semelhança, dessemelhança e contiguidade.” (p.54).
Para Yates (2007, 1966), o lugar da memória possibilita a criação de esquemas
mentais, além disso as artes da memória tem relação com a formação de imagens,
segundo ela construímos “imagens agentes” a partir da percepção sensorial,
esquemas mentais e imaginativos agenciados pela memória. “Como de costume as
imagens da memória não são ilustradas nem são claramente descritas. Nos temos
de construir nossas próprias regras” (1966, p.117). A memória é um disparador de
imagens que incentiva o uso da imaginação. Essa reflexão produzida por Yates, a
partir do estudo da Mnemotécnica desenvolvido na idade média, possibilita-nos
compreender que a memória é um disparador de imagens e que esse processo
opera por meio de associações.
Outra referência para nosso estudo de criação que toma o fator tempo como
disparador dos processos criativos é o estudo realizado pelo historiador de arte e
teórico cultural alemão Aby Warburg (1866 – 1929), esse autor colabora à
compreendermos que as imagens são tanto objetos materiais como formas de
pensamento, modos de conceber, de pensar. Os estudos de Warburg se direcionam
à expressão humana, a expressão gestual em uma perspectiva trans-histórica, os
estudos acerca da formas de expressão humana, em especial a dimensão simbólica envolvida nessas
 formas de expressão e a memória que opera nesses processos de
transmissão e transformação possibilitam pensar de que modo a expressão humana
assume formas de imagens.
Essas informações colaboraram na construção dos processos de criação
tanto em coletivos, quanto em solos de dança. Em grupo utilizamos o elástico como
criador de imagens para formarmos arquiteturas espaciais de forma coletiva, nesse
trabalho a memória também foi abordada por meio da lembrança do que o material
elástico provocava em termos de movimentos. Já em solos trabalhamos como
imagens que eram elaboradas por vestuários e fotos, por exemplo um dos
vocacionados trabalhou a partir de um texto de uma música possibilidades de
imagens com um agasalho, uma camisa e sapatos, esses elementos tomavam
outras possibilidades de uso o que favorecia a formação da imagem de um
muçulmano, de um homem de saias, de um cachimbo, de uma máscara e etc; outra
aluna trabalhou com fotos e motivos religiosos, as imagens que ela trazia
corporalmente partiam de preces e promessas.
Enfim a prática de orientação dentro do programa vocacional na Casa de
Cultura Chico Science utilizou o desenvolvimento do fator tempo para criações,
trabalhamos tanto com um tempo sequencial por meio de coreografias simples
compostas por movimentos que colaboram na consciência do próprio corpo e
também como reestruturação corporal, essas sequências também foram trabalhadas
por meio de jogos temporais, quanto com um entendimento de tempo que implica
memorias, associações, imagens e imaginação, tempo esse que torna-se maleável,
elástico e flexível na construção de uma dança.
Referências
ABY, Warburg. Histórias de Fantasmas para gente grande. Org. Leopoldo Waizbort. Trad. Lenin Bicudo
Bárbara. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
BERGSON, Henri. Durée et Simultanéité: A propos de la théorie d’Einstein. 7. Ed. Press Universitaires de
France: Paris, 1968.
CARRUTHERS, Mary. The Craft of Thought Meditation, Rhetoric, and the making of images. Cambridge
University Press, 1998, Edição Gallimard, 2002-
________. A técnica do pensamento: meditação, retórica e a contrução de imagens. Tradução: José Emílio
Maiorino. Campinas: Editora Unicamp, 2011.
DELEUZE, Gilles. Conversações. 3. Trad. Peter P. Pelbart (Coleção Trans). São Paulo: Editora 34, 1992.
ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
JOHNSON, Mark. The meaning of the body: aesthetics of human understanding. Chicago & London: The
University of Chicago Press, 2007.
LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Contemporânea. 1. Ed. Lisboa: Orfeu Negro, 2012.
LEPECKI, André. Repensar la dramaturgia: Errancia y transformación. Espanha: CENDEAC
YATES, Frances. The Art of Memory. London: Ark Papkrbacks, 1966.
________. A arte da memória (1966) Tradução Flávia Bancher -Campinas Editora da Unicamp 2007

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