Ensaio
Os outros
“ O inferno são os outros”
Jean Paul Sartre
“ Meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu
puder sentir plenamente o outro, estarei salva e pensarei: eis o meu porto de
chegada.” Clarice Lispector
“Pra mim, ele está ótimo. Mas esse é o meu olhar. Já o meu
pai disse que ele está muito abatido. É que ele não viu antes. Mas é o ponto de
vista dele, né?” Mulher conversando ao
telefone no metrô
Faz pouco tempo terminei um curso de dramaturgia que
consistia em ouvir autores diferentes sobre seus processos artísticos.
Processos de criação. E uma das questões que observei e que mais me intrigou, é
a facilidade de alguns autores de trabalhar em parceria, com um outro, e também
a necessidade de alguns autores de trabalhar sozinhos e inclusive em
determinados momentos não só escrevendo sozinho como dirigindo também o que
escreveu, colocando em cena, evitando ao máximo a interferência de um outro.
A questão do outro, do olhar do outro e de um outro olhar
sobre o nosso trabalho sempre foi
importante e motivo de reflexão na minha trajetória. Ouvi um dos autores
dizer que se trabalhasse em parceria não poderia ousar , arriscar algumas
formas e conteúdos levados ao extremo, pois o outro já julgaria o seu trabalho
e estabeleceria uma censura prévia. A necessidade de experimentar
uma radicalidade o levou a buscar a solidão na hora de criar. Um outro autor
ressaltou a importância de dirigir também o seu próprio trabalho, pois quando
escreve já tem em mente o que pretende da cena. Ao mesmo tempo os dois autores
admitiram que sem o outro é impossível realizar a sua autoria. Eles precisam do
ator, do leitor, do olhar do outro para a obra se realizar plenamente. Mais do
que isso, escrevendo sozinhos e buscando essa radicalidade e isolamento eles
próprios se tornam outros, pois o que aparece na obra é um outro, desconhecido.
Um deles diz escrever para esquecer de si.
Já, outro grupo de autores, e agora vocês devem me perdoar o
uso excessivo, mas inevitável da palavra
outro, esse grupo gosta de trabalhar em parceria e muitas vezes nem sabe mais o
que é criação sua ou do outro, eles preferem que outra pessoa venha dirigir
suas peças, preferem um outro olhar, que o outro revele pontos da obra que eram
desconhecidos para eles.
Na nossa formação e desenvolvimento adquirimos muitas
referências e algumas delas se tornam fundamentais para as nossas escolhas.
Somos também formados por esses outros olhares, influenciados por eles, até em
alguns momentos podemos copiar ideias, modos de expressão de outros. Mas também
estamos em busca de uma originalidade, de uma capacidade de invenção e
expressão singular, principalmente na arte. Há quem diga que só é possível
conseguir essa originalidade e singularidade quando nos libertamos de nós
mesmos e nos permitimos ser outro, experimentar outras possibilidades, outros
mundos. Sei que esse pensamento é um lugar comum e que a ideia de liberdade
absoluta é impossível . Afinal, existe mesmo o outro que mostra até onde a
minha liberdade pode chegar. O outro é de certa forma um limite e uma
transgressão.
O Projeto Vocacional é um projeto artístico pedagógico e
propõe que seus participantes, todos eles, estejam também em um lugar de
criação. Além disso, é necessário trabalhar em equipe, com o outro. Mas até que
ponto estamos dispostos a entrar nesse lugar da criação onde é preciso uma
grande exposição e risco?Até que ponto também queremos ou permitimos que o
olhar do outro realmente nos afete, no guie em alguns momentos? Até que ponto conseguimos nos deslocar verdadeiramente,
sair dos nossos lugares comuns, sair da nossa moldura? Até que ponto o olhar do
outro pode desvirtuar a nossa autoria e proposta, pode ser nocivo?
Várias dessas palavras que usei acima também estão
desgastadas: risco, exposição, deslocamento. São muito repetidas e dessa forma
esvaziadas e não precisamos mais virar escravos delas. Não existe fórmula para
alcançar esse lugar de criação, mas acredito que nessa relação de cada um de
nós com o outro, nesse saber discernir
quando é preciso ser afetado pelo outro e quando é preciso ser protegido,
defendido do outro mora uma chave, uma pista poderosa sobre autoria , sobre
criação, sobre invenção.
Em alguns anos do Projeto Vocacional fui coordenadora de
equipe, como nesse ano de 2015. E nessa função podemos ter um olhar privilegiado
pois acompanhamos processos diversos e existe uma distância no nosso olhar que
permite estabelecer relações entre esses diferentes processos, permite
descobrir pontos de contato e pontos de tensão e permite que o nosso olhar
possa ser muitos.
E o que fazer com isso, com todos esses olhares?
Na minha última experiência como coordenadora comecei a
estabelecer alguns exercícios e propostas em duplas, a partir dos materiais
trabalhados por cada artista com os vocacionados. Comecei a estimular alguns
trabalhos em duplas com artistas orientadores produzindo um material a partir
do processo que o outro estava desenvolvendo com as turmas e grupos. Se alguém
estava trabalhando com depoimento pessoal ou com a mistura de ficção e realidade
eu pedia para um outro artista da equipe produzir algo com esse tema de
pesquisa, um texto, uma cena, um desenho, um material artístico. E essa era uma
oportunidade de ver um outro trabalhando e criando tendo como estímulo o
desenvolvimento do seu processo. Uma oportunidade de ver outro olhar sobre o
seu foco de pesquisa e de perceber se esse outro olhar poderia indicar ou
provocar algum caminho, alguma ideia, ou simplesmente interferir subjetivamente
na sua condução ou visão do tema de pesquisa.
Percebi com essa proposta que conseguia da maior parte dos
artistas uma exposição e um comprometimento que antes não apareciam tanto.
Consegui ver efetivamente o artista que cada um era ou buscava ser. E conseguia ver mais vulnerabilidade e
portanto mais disponibilidade para o deslocamento, para o novo, para novas
possibilidades.
O passo seguinte que eu pretendia era de que essas duplas
pudessem de alguma forma trabalhar juntas nos processos que estavam
desenvolvendo: nas reuniões de equipe e também em alguns momentos na ponta, com
os vocacionados. Mas não consegui ter tempo hábil para fazer isso acontecer. Algumas
vezes essa proposta teve resistência,
algumas duplas não sentiam afinidade, não achavam possível confrontar ou afinar os diferentes olhares,
queriam preservar o olhar individual, o planejamento de sua condução. E talvez
essa possa ter sido uma escolha certeira. Não saberemos.
Nesse ano de 2015 voltei à função de coordenadora de equipe
e me vi novamente com a possibilidade de trabalhar os diferentes olhares, de
colocar esses olhares em diálogo, em atrito,
em composição. Fiz todo um planejamento para que dessa vez conseguisse de
alguma forma experimentar uma parceria de olhares que refletisse no processo
com os vocacionados, que pudesse ir até a cena. Investigar até que ponto é
possível trabalhar em equipe e realmente ser afetado por essa equipe, pelos
olhares e pensamentos diversos e perceber se alguma transformação no trabalho
individual acontece a partir da reflexão em equipe.
Havia ainda um desafio maior, pois as equipes em 2015 foram
constituídas por artistas das diferentes linguagens do Projeto Vocacional. Então
além de existir o outro,o olhar do outro, existia a outra linguagem e as
especificidades de cada uma dessas linguagens que em contato poderiam revelar
muitos caminhos possíveis.
Comecei propondo para os artistas que trouxessem referências
importantes para os seus trabalhos, para que pudéssemos conhecer um pouco os
olhares que formaram e que transformaram o olhar de cada um. E então, como
estamos lidando com um projeto pedagógico, porém artístico, o meu planejamento
não serviu mais. Muitas reuniões de equipe deixaram de ser realizadas porque
eram necessárias reuniões gerais e o tempo novamente ficou curto para
desenvolver esse meu projeto de pesquisa. Conseguimos apenas compartilhar os
processos realizados por cada um e no final pedi que todos trouxessem materiais
e referências para alguns desses processos. Mas nessa altura, os trabalhos com
os vocacionados já estavam bem delineados, existindo pouco espaço e tempo para
interferências de outros olhares e novas
propostas.
Mas surpreendentemente o que aconteceu fora das reuniões de
equipe, acabou definindo algumas duplas que trabalharam nessa última fase em
alguns dos processos na ponta, nas cenas. Duplas de artistas de diferentes
linguagens, que não puderam aprofundar o trabalho juntos, mas que iniciaram uma
experiência. Um artista orientador de
música participou do processo de uma artista orientador de teatro, trabalhando
junto em uma das cenas e essa possibilidade foi percebida a partir de um
material apresentado pelo a.o de música em uma de nossas reuniões de equipe no
início do projeto e esse material depois
veio a dialogar com o processo estabelecido com a turma de teatro que estava
trabalhando em uma ideia de coro. E também outra dupla se formou nessa fase
final entre uma artista orientadora de teatro e outra de dança a partir de uma
necessidade da turma e da a.o de teatro. E essa junção acabou sendo fundamental
para finalizar o trabalho com a turma e escolher e descobrir o caminho a
seguir.
Também a realização de um festival em outubro proporcionou
aos artistas orientadores da equipe que vissem os trabalhos que estavam sendo
desenvolvidos e pudessem perceber em que ponto cada trabalho dialogava com o
outro ou temas comuns que foram desenvolvidos de formas diferentes.
O Projeto Vocacional de 2015 revelou para essa coordenadora
de equipe que o caminho também pode ser o inverso do planejado, que as cenas e
processos realizados no palco e na sala de ensaio podem e devem também
interferir e transformar os olhares e referências compartilhados na reunião de
equipe. Sim. Eu já sabia disso e já vivenciei isso, mas foi bom acontecer
novamente diante dos meus olhos para me lembrar que os dois caminhos são
complementares, o que vai da sala de reunião para a sala de ensaio e
vive-versa e que o bom de ter um
planejamento é ele poder ser modificado, ser transformado, ser subvertido. Ser
impossível de ser seguido. Não é só o planejamento que revela o caminho. O caminho também pede um planejamento. Um
novo planejamento. Uma nova ação. Um novo olhar.
Sim. O Projeto teve pouco tempo para ser realizado. Sim. É difícil
realizar uma proposta de pesquisa de forma aprofundada nessas condições. Sim.
Os processos são atropelados por muitos fatores. Sim. Não vivemos isolados e
protegidos em um mundo próprio. Sim. Estamos cercados de olhares diferentes dos
nossos e de interferências e provocações. Sim. Não conseguimos que tudo caminhe
como planejamos e desejamos. Sim. A cada
ano o meu olhar é modificado pelo projeto e o projeto é modificado pelo meu
olhar. Sim.O inferno são os outros. Mas os outros são também a salvação. Sim.
Daniela Schitini – 2015
Coordenadora de equipe –sul 1
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