domingo, 13 de dezembro de 2015




Ensaio
Os outros

“ O inferno são os outros”   Jean Paul Sartre
“ Meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro, estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.” Clarice Lispector
“Pra mim, ele está ótimo. Mas esse é o meu olhar. Já o meu pai disse que ele está muito abatido. É que ele não viu antes. Mas é o ponto de vista dele, né?”  Mulher conversando ao telefone no metrô


Faz pouco tempo terminei um curso de dramaturgia que consistia em ouvir autores diferentes sobre seus processos artísticos. Processos de criação. E uma das questões que observei e que mais me intrigou, é a facilidade de alguns autores de trabalhar em parceria, com um outro, e também a necessidade de alguns autores de trabalhar sozinhos e inclusive em determinados momentos não só escrevendo sozinho como dirigindo também o que escreveu, colocando em cena, evitando ao máximo a interferência de um outro.

A questão do outro, do olhar do outro e de um outro olhar sobre o nosso trabalho sempre foi  importante e motivo de reflexão na minha trajetória. Ouvi um dos autores dizer que se trabalhasse em parceria não poderia ousar , arriscar algumas formas e conteúdos levados ao extremo, pois o outro já julgaria o seu trabalho e estabeleceria uma censura prévia.  A necessidade de experimentar uma radicalidade o levou a buscar a solidão na hora de criar. Um outro autor ressaltou a importância de dirigir também o seu próprio trabalho, pois quando escreve já tem em mente o que pretende da cena. Ao mesmo tempo os dois autores admitiram que sem o outro é impossível realizar a sua autoria. Eles precisam do ator, do leitor, do olhar do outro para a obra se realizar plenamente. Mais do que isso, escrevendo sozinhos e buscando essa radicalidade e isolamento eles próprios se tornam outros, pois o que aparece na obra é um outro, desconhecido. Um deles diz escrever para esquecer de si.

Já, outro grupo de autores, e agora vocês devem me perdoar o uso excessivo, mas inevitável  da palavra outro, esse grupo gosta de trabalhar em parceria e muitas vezes nem sabe mais o que é criação sua ou do outro, eles preferem que outra pessoa venha dirigir suas peças, preferem um outro olhar, que o outro revele pontos da obra que eram desconhecidos para eles.

Na nossa formação e desenvolvimento adquirimos muitas referências e algumas delas se tornam fundamentais para as nossas escolhas. Somos também formados por esses outros olhares, influenciados por eles, até em alguns momentos podemos copiar ideias, modos de expressão de outros. Mas também estamos em busca de uma originalidade, de uma capacidade de invenção e expressão singular, principalmente na arte. Há quem diga que só é possível conseguir essa originalidade e singularidade quando nos libertamos de nós mesmos e nos permitimos ser outro, experimentar outras possibilidades, outros mundos. Sei que esse pensamento é um lugar comum e que a ideia de liberdade absoluta é impossível . Afinal, existe mesmo o outro que mostra até onde a minha liberdade pode chegar. O outro é de certa forma um limite e uma transgressão.

O Projeto Vocacional é um projeto artístico pedagógico e propõe que seus participantes, todos eles, estejam também em um lugar de criação. Além disso, é necessário trabalhar em equipe, com o outro. Mas até que ponto estamos dispostos a entrar nesse lugar da criação onde é preciso uma grande exposição e risco?Até que ponto também queremos ou permitimos que o olhar do outro realmente nos afete, no guie em alguns momentos?  Até que ponto conseguimos nos deslocar verdadeiramente, sair dos nossos lugares comuns, sair da nossa moldura? Até que ponto o olhar do outro pode desvirtuar a nossa autoria e proposta, pode ser nocivo?

Várias dessas palavras que usei acima também estão desgastadas: risco, exposição, deslocamento. São muito repetidas e dessa forma esvaziadas e não precisamos mais virar escravos delas. Não existe fórmula para alcançar esse lugar de criação, mas acredito que nessa relação de cada um de nós com o outro, nesse saber  discernir quando é preciso ser afetado pelo outro e quando é preciso ser protegido, defendido do outro mora uma chave, uma pista poderosa sobre autoria , sobre criação, sobre invenção.
Em alguns anos do Projeto Vocacional fui coordenadora de equipe, como nesse ano de 2015.  E  nessa função podemos ter um olhar privilegiado pois acompanhamos processos diversos e existe uma distância no nosso olhar que permite estabelecer relações entre esses diferentes processos, permite descobrir pontos de contato e pontos de tensão e permite que o nosso olhar possa ser muitos.
E o que fazer com isso, com todos esses olhares?

Na minha última experiência como coordenadora comecei a estabelecer alguns exercícios e propostas em duplas, a partir dos materiais trabalhados por cada artista com os vocacionados. Comecei a estimular alguns trabalhos em duplas com artistas orientadores produzindo um material a partir do processo que o outro estava desenvolvendo com as turmas e grupos. Se alguém estava trabalhando com depoimento pessoal ou com a mistura de ficção e realidade eu pedia para um outro artista da equipe produzir algo com esse tema de pesquisa, um texto, uma cena, um desenho, um material artístico. E essa era uma oportunidade de ver um outro trabalhando e criando tendo como estímulo o desenvolvimento do seu processo. Uma oportunidade de ver outro olhar sobre o seu foco de pesquisa e de perceber se esse outro olhar poderia indicar ou provocar algum caminho, alguma ideia, ou simplesmente interferir subjetivamente na sua condução ou visão do tema de pesquisa.

Percebi com essa proposta que conseguia da maior parte dos artistas uma exposição e um comprometimento que antes não apareciam tanto. Consegui ver efetivamente o artista que cada um era ou buscava ser.  E conseguia ver mais vulnerabilidade e portanto mais disponibilidade para o deslocamento, para o novo, para novas possibilidades.
O passo seguinte que eu pretendia era de que essas duplas pudessem de alguma forma trabalhar juntas nos processos que estavam desenvolvendo: nas reuniões de equipe e também em alguns momentos na ponta, com os vocacionados. Mas não consegui ter tempo hábil para fazer isso acontecer. Algumas  vezes essa proposta teve resistência, algumas duplas não sentiam afinidade, não achavam possível  confrontar ou afinar os diferentes olhares, queriam preservar o olhar individual, o planejamento de sua condução. E talvez essa possa ter sido uma escolha certeira. Não saberemos.

Nesse ano de 2015 voltei à função de coordenadora de equipe e me vi novamente com a possibilidade de trabalhar os diferentes olhares, de colocar  esses olhares em diálogo, em atrito, em composição. Fiz todo um planejamento para que dessa vez conseguisse de alguma forma experimentar uma parceria de olhares que refletisse no processo com os vocacionados, que pudesse ir até a cena. Investigar até que ponto é possível trabalhar em equipe e realmente ser afetado por essa equipe, pelos olhares e pensamentos diversos e perceber se alguma transformação no trabalho individual acontece a partir da reflexão em equipe.
Havia ainda um desafio maior, pois as equipes em 2015 foram constituídas por artistas das diferentes linguagens do Projeto Vocacional. Então além de existir o outro,o olhar do outro, existia a outra linguagem e as especificidades de cada uma dessas linguagens que em contato poderiam revelar muitos caminhos possíveis.

Comecei propondo para os artistas que trouxessem referências importantes para os seus trabalhos, para que pudéssemos conhecer um pouco os olhares que formaram e que transformaram o olhar de cada um. E então, como estamos lidando com um projeto pedagógico, porém artístico, o meu planejamento não serviu mais. Muitas reuniões de equipe deixaram de ser realizadas porque eram necessárias reuniões gerais e o tempo novamente ficou curto para desenvolver esse meu projeto de pesquisa. Conseguimos apenas compartilhar os processos realizados por cada um e no final pedi que todos trouxessem materiais e referências para alguns desses processos. Mas nessa altura, os trabalhos com os vocacionados já estavam bem delineados, existindo pouco espaço e tempo para interferências de outros olhares  e novas propostas.
Mas surpreendentemente o que aconteceu fora das reuniões de equipe, acabou definindo algumas duplas que trabalharam nessa última fase em alguns dos processos na ponta, nas cenas. Duplas de artistas de diferentes linguagens, que não puderam aprofundar o trabalho juntos, mas que iniciaram uma experiência.  Um artista orientador de música participou do processo de uma artista orientador de teatro, trabalhando junto em uma das cenas e essa possibilidade foi percebida a partir de um material apresentado pelo a.o de música em uma de nossas reuniões de equipe no início do projeto e esse material  depois veio a dialogar com o processo estabelecido com a turma de teatro que estava trabalhando em uma ideia de coro.   E também outra dupla se formou nessa fase final entre uma artista orientadora de teatro e outra de dança a partir de uma necessidade da turma e da a.o de teatro. E essa junção acabou sendo fundamental para finalizar o trabalho com a turma e escolher e descobrir o caminho a seguir.

Também a realização de um festival em outubro proporcionou aos artistas orientadores da equipe que vissem os trabalhos que estavam sendo desenvolvidos e pudessem perceber em que ponto cada trabalho dialogava com o outro ou temas comuns que foram desenvolvidos de formas diferentes.
O Projeto Vocacional de 2015 revelou para essa coordenadora de equipe que o caminho também pode ser o inverso do planejado, que as cenas e processos realizados no palco e na sala de ensaio podem e devem também interferir e transformar os olhares e referências compartilhados na reunião de equipe. Sim. Eu já sabia disso e já vivenciei isso, mas foi bom acontecer novamente diante dos meus olhos para me lembrar que os dois caminhos são complementares, o que vai da sala de reunião para a sala de ensaio e vive-versa  e que o bom de ter um planejamento é ele poder ser modificado, ser transformado, ser subvertido. Ser impossível de ser seguido. Não é só o planejamento que revela o caminho.  O caminho também pede um planejamento. Um novo planejamento. Uma nova ação. Um novo olhar.

Sim. O Projeto teve pouco tempo para ser realizado. Sim. É difícil realizar uma proposta de pesquisa de forma aprofundada nessas condições. Sim. Os processos são atropelados por muitos fatores. Sim. Não vivemos isolados e protegidos em um mundo próprio. Sim. Estamos cercados de olhares diferentes dos nossos e de interferências e provocações. Sim. Não conseguimos que tudo caminhe como planejamos e desejamos. Sim.  A cada ano o meu olhar é modificado pelo projeto e o projeto é modificado pelo meu olhar. Sim.O inferno são os outros. Mas os outros são também a salvação. Sim.

Daniela Schitini – 2015
Coordenadora de equipe –sul 1




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