Potencia Criativa - Recomeço, ruptura e risco - Lígia Botelho
Ensaio
Potencia
Criativa
Recomeço,
ruptura e risco
Lígia
Botelho
Teatro
Teatro
Quero romper!
Veja, o agora já
não é mais como a um segundo atrás...
Me arrisco... Luto
contra barreiras de medo...
(Fragmento de
texto do Vocacionado Antonio Luciano, integrante da dramaturgia- Turma do
Acervo da Memória e do Viver Afro)
Jabaquara
Recomeço
Começo
É
preciso pensar e agir artisticamente no vocacional a cada instante. Isto abala
as estruturas das poucas ou quase nulas certezas que temos.
Quando
achamos que de algum modo já trilhamos uma trajetória de experiências,
percebemos que de fato, tudo sempre se configura como um começo.
Começo
a cada instante,
Na
troca,
Na
mescla,
Nas
diferenças,
Nos
conflitos,
Nas
dúvidas,
Nos
encontros,
Nos
desencontros,
Nos
desafios em conduzir um processo com jovens que vem e vão.
Rico
é perceber os rastros dos que se vão.
Sob
a forma de textos, criações, palavras, experiências.
Rico
é trocar com uma equipe parceira e generosa.
E
rico também é preencher os vazios que ficam nos encontros lá na “ponta”.
Há
vocacionados que desistem. E isso faz parte. Triste é ver alguns que desistem,
mas não propriamente do vocacional, parecem desistir de si mesmos. Tomo a
liberdade agora de usar palavras de minhas colegas de equipe Monica Rodrigues,
Rosana Massuela e Cris Ávila: Alguns parecem estar ausentes de si e por isso
adoecem, e daí não tem teatro, ou linguagem qualquer que consiga resgatá-los,
se não querem.
Teatro
não é terapia, mas pode tocar e fazer o atuante refletir sobre sua condição e
sobre as relações que o cercam, isto é, se este assim o quiser.
Atuar
no vocacional é desafio constante!
Orientar
processos criativos emancipatórios com perspectiva de continuidade em pouco
tempo de vigência.
Atuar
no vocacional é risco!
Ë
preciso colocar-se em risco! E isto está longe de ser confortável.
O
terreno parece sempre movediço mas igualmente delicioso, porque abala as
estruturas das certezas. Atrai e provoca temor. Como fazer com que os
vocacionados mais “velhos” que estão no Programa desde 2014, troquem com os que
estão chegando?
A questão não está propriamente pautada na
experiência, ou virtuosismo, mas no envolvimento. Alguns dos mais antigos,
claramente se comprometem mais que os mais novos. Já compreendem que teatro não
se faz só.
Já
compreendem que teatro é olho no olho, é troca, presença, entrega, pesquisa, força, e é político em sua própria
natureza.
Por
outro lado alguns dos mais antigos embora se “sintam” mais experientes não se
comprometem como tal.
O
início.
Reencontrar
alguns e seus desejos. Pareciam querer reinventar Clarice Lispector, com seus
lirismos paradoxais e suas subjetividades, mas de um modo juvenil.
Um
vocacionado menciona o filme “ O fabuloso destino de Amelie Poulain”. Surge a
pergunta-estímulo:
Quais
são seus pequenos desejos, dos mais simples aos mais ousados?
E
surge o texto de Jhoy, vocacionado que saiu para entrar no mercado de trabalho,
como tantos outros. Hoje o texto é parte
integrante de nossa dramaturgia. Criamos jogos diversos com base neste e em outros
textos.
O
conflito-chave do texto de Jhoy: libertar-se das amarras e viver os desejos plenamente
ou controlar-se em prol da auto-segurança.
Sob
a forma de jogos relacionados à fisicalidade e ao espaço, propus diversos
estímulos: a relação com objetos, com a vegetação, com os espaços do parque,
com a exaustão. Por fim a cena se
encaminhou para o palco. O coletivo habituado a criar em 2014 algumas cenas em
área externa, agora escolhe o palco para vivenciar inteiramente o processo.
Observando o processo, sentia que havia mais
“caldo” para extrair dali, daquele espaço, daquele coletivo. Havia uma
tendência muito rica, mas muito “confortável” em abordar nas criações, temas leves de modo lírico, mas não havia
conflito.
Propus estímulos que provocassem o incômodo,
risco, saída da zona de conforto. O objetivo? Pôr-se em estado de risco junto
com os vocacionados, afinal já os conhecia e percebia algumas tendências.
E
veio a pergunta:
Qual
seu lado B?
Vimos
o documentário de Pina Bausch, sugeri o registro de algumas das sensações ou
imagens captadas: risco,
medo, sacrifício, agonia, manipulação, resistência, desespero, alívio, se
ajustar aos padrões, morte, pássaro preso olhando a liberdade, busca, tensão, exaustão,
medo, ritual, fascínio, deusa, divindade, conflitos, contato com a natureza,
com a própria natureza humana.(imagens de registros de vocacionados do acervo Afro-em anexo)
Propus
exercícios físicos associados a algumas das sensações ou imagens descritas que
os desestabilizassem, que os colocassem em estado de risco.
Surgem
os primeiros esboços cênicos, pautados em conflitos vividos pelos jovens:
O
desejo de viver a arte e a necessidade de entrar para o mundo do trabalho,
muitas vezes massacrante, sem espaço para a criação.
O
desejo de viver experiências sexuais e artísticas e a repressão por parte dos
pais.
O
desejo de tocar, de se tocar e o medo de não ser aceito pelos ditos ”padrões
midiáticos”
Nossa
dramaturgia foi escrita coletivamente por meio da colagem de fragmentos de
protocolos, poemas escritos por eles, poemas de Hilda Hilst, Fragmentos da peça
O percurso para a felicidade total,
de Walmir Pavam, ex- artista Orientador do Programa, jogos teatrais, exercícios
com foco na fisicalidade e experimentos com o espaço.
Sim,
os Protocolos, instrumentos pedagógicos usados por Brecht e pelo Vocacional há
anos atrás, ainda existem e se revelam muito potentes. Se configuram como síntese
da materialidade simbólica em processo de construção. Diversos olhares
vocacionados constroem esta tessitura artística, sob a forma de depoimentos,
desenhos, poemas. Parte das criações tem origem neste instrumento pedagógico.
Nossa
dramaturgia se materializa a cada encontro.
Em
alguns, se desmorona, para depois se reconstruir, de outro modo.
Mas
como desconstruir para construir com coletivo flutuante?
Como
construir quando eles querem se destruir?
Novamente
o processo do encontro se faz presente.
Encontros-
suspensão: aqueles que precisamos “parar tudo” para desenvolver a relação
sensorial entre eles, o contato, o respeito ao corpo, ao espaço do outro, ao
modo de vida do outro, a personalidade do outro.
Aos
poucos os encontros isolados com todos, começam a se apresentar com maior
frequência.
E
vem a Ação Corredor Norte-Sul. A morte
de um jovem em CEU na região noroeste no início do Programa este ano, provoca
nossos desejos contestadores de artistas-provocadores. O terrorismo poético se
fez presente e potente, ainda que deslocado do tempo e da idéia original.
O corredor performático Norte e Sul foi
marcado por ações no metro que tocaram de algum modo os transeuntes da cidade
naquele dia.
A boca que quer falar e se cala.
A
incomunicabilidade do mundo contemporâneo.
A
dificuldade em “estar” presente.
A
dificuldade em desacelerar.
O
vocacional é espaço para todos.
Todos
os vocacionados.
Para
trocas artísticas entre os vocacionados.
Todas
as formas de “vocacionar”, ou evocar a “voz”
Como
artista orientadora também percebo outras formas de “vocacionar”
Ano
passado orientei dois grupos e uma turma iniciante.
Dentre
os grupos: um iniciante e um que já tinha um histórico no equipamento, foi
orientado por vários artistas, foi contemplado pelo VAI algumas vezes.
Ambos
tomaram outros caminhos. O mais experiente Novos
Fulanos me conduziu a uma nova ação enquanto artista – orientadora, no
início do processo este ano: O artista orientador como mediador de encontros.
Sim,
foi esta, minha única, mas acredito, potente contribuição com o grupo; antes
deste se desvincular do vocacional. Indiquei uma amiga atriz, educadora e
cadeirante para conduzir uma oficina de dança e experimentos cênicos com o grupo.
O
Novos Fulanos, mais uma vez
contemplado pelo VAI, inicia nova jornada. O projeto se intitula Aleijadinho e trata do tema
acessibilidade com oficinas de dança e estatuísmo para deficientes físicos que
culminará com a criação de um espetáculo pautado nas obras deste artista.
O
encontro entre os artistas do grupo e os artistas deficientes se deu no Tendal
da Lapa, devido a acessibilidade. Este equipamento, situado em local plano e
próximo ao terminal Lapa, foi sugerido por Ana Paula, a amiga que indiquei. O
Tendal tem diversas atividades artísticas para deficientes e o grupo procurava
interessados para compor o projeto. Ana convidou amigos nesta condição que
participaram de seu antigo grupo de teatro.
Esta
ação cultural emocionou a todos, revelou ricos paradoxos:
Uma
artista cadeirante que conduziu uma Workshop de dança e experimentos cênicos a
artistas deficientes do local e aos artistas do grupo. E um artista de rua,
ex-aluno meu de teatro, que provido de todas habilidades motoras participou do
encontro e foi convidado a conduzir uma oficina de estatuísmo com todos
envolvidos.
O
grupo iniciante, a CIA SEM, como
tinha dificuldade de locomoção até o Jabaquara, passou a ser orientada por
outro equipamento na zona noroeste, devido a facilidade na acessibilidade dos
integrantes.
E
assim iniciei este ano minha trajetória no Acervo. Orientando a turma que já
havia no equipamento e orientando este começo de processo dos “Novos Fulanos”.
Mas
é preciso libertar-se também. Novos Fulanos assim o fizeram e se sentiram
seguros para mais uma vez trilharem sós sua pesquisa.
Uma
felicidade: Há um mês encontrar no acervo, amigos deficientes de Ana, a atriz e
professora cadeirante que apresentei.
Eles continuam no processo com o coletivo.
Percebendo
que na região havia outras demandas, rompi limites e criei parceria com a EMEF Ana
Benetti, que fica próxima ao equipamento. Senti que havia solo fértil para
encarar um processo, quando em uma ação cultural no Acervo, vi dois professores
conduzindo um projeto de escrita de textos e poemas. Os professores conseguiram
editar sem subsídios, apenas por meio de pequena verba da escola e com esforços
próprios alguns exemplares de dois volumes de uma obra construída a partir de
poemas dos próprios alunos. Aquela ação me moveu. Senti que ali havia uma
espécie de “oásis” criativo. Estava certa.
Fui
até a escola, a coordenadora Inês me apresentou a professora de artes, Luana
Csermak, atriz de grupo local. Ela aceitou a parceria. Iniciamos a jornada. Na
brinquedoteca juntas, começamos este rico trabalho com jovens estudantes.
Sinto
que ali eu, Luana, os professores Claudio Cesar e Leandro Barbosa, de
literatura e história, que conduzem os processos criativos com os alunos e
mesmo a coordenadora Inês, de algum modo, tentamos criar espaços mais arejados,
naquela escola, que, como tantas outras da rede pública, mantém ainda
fortemente suas raízes no modelo fabril, conteúdista, hierárquico e
disciplinar. Segundo Toffler citado por Carlos
Fino, nossa escola ainda conserva elementos retrógrados da sociedade da era
pré-industrial. A ideia geral de reunir
multidões de estudantes (matéria-prima) destinados a ser processados por
professores (operários) numa escola central (fábrica), foi uma demonstração de
génio industrial” (Toffler, s/d, p. 393).
Nesta
lógica parece mesmo que foi providencial adentrar este ano em uma escola
pública e conduzir um processo criativo emancipatório, justamente em um ano em
que os movimentos estudantis de ocupação das escolas estaduais estão fortemente
articulados contra a “reorganização escolar” imposta pelo governo estadual e
abertos a aulas bem mais ricas em experiências que as antigas “disciplinas”.
Lembro-me
dos primeiros improvisos e os que vejo hoje, é visível o poder transformador
que o teatro tem.
Um
dos poemas dos estudantes aliado a um poema de Dugueto, poeta local, ambos integrantes de um dos livros organizados
pelos docentes criaram uma materialidade artística crítica ao se mesclarem às
cenas construídas ao longo do processo.
Cada
encontro uma experiência, um jogo, uma proposta. Luana os estimulava com
recortes de jornais, imagens, impressões de matérias atuais, eu, com jogos
diversos de criação de textos e ampliação da fisicalidade. Luana iniciava os
encontros e depois partia, eu dava continuidade aos processos. Em alguns
encontros, juntas, orientávamos. A rica troca entre nós se configurou como o
início, espero, de uma grande parceria.
“Romper
muros”, limites, fronteiras pareceu-me muito presente e necessário este ano em
minha trajetória como artista e orientadora.
A
começar com a experiência que tive ao longo de dois anos com meu grupo, entre
ensaios, leituras, criações e o espetáculo que finalmente concluímos em 2015: Minha cidade pode não ser a sua, realizado
pelo Núcleo Urbanos de Teatro, com direção de Paulo Fabiano e texto de Walmir
Pavam (ex artista-orientador do Programa). O espetáculo expõe o choque entre a
realidade e ficções sobre a realidade periférica, a visão da experiência e a
visão intermediada pela mídia, o choque entre as fronteiras e a possibilidade
de ruptura. Este último aspecto muito me moveu ao longo deste ano.
Baumann
o tempo todo parecia gritar no meu ouvido:
_É
preciso romper! É preciso romper fronteiras!
E
assim o fiz.
Segundo
Tereza Caldeira, citada por Bauman:
São
Paulo é hoje uma cidade de muros. Barreiras físicas cercam espaços públicos e
privados: casas, prédios, parques, praças, complexos empresariais e escolas ..Uma
nova estética da segurança modela todos os tipos de construções e impõe uma
nova lógica da vigilância e da distância. (Bauman, 2007, p.81)
Esta
lógica da distância que aparentemente propõe a segurança, isolando, estimula
aquilo que mais combate, a própria violência. A sociedade da guetificação.
Segundo
Baumann,
( )as cercas têm dois lados... Elas dividem em
"dentro" e "fora" um espaço que seria uniforme - mas o que
está "dentro" para as pessoas de um lado da cerca está
"fora" para as do outro lado. ( )A cerca separa o "gueto
voluntário" dos ricos e poderosos dos muitos guetos forçados dos pobres e
excluídos. Para os integrantes do gueto voluntário, os outros guetos são
espaços aos quais "nós não vamos". Para integrantes dos guetos
involuntários, a área na qual estão confinados (por serem excluídos de outras)
é o espaço "do qual não temos permissão de sair".(Baumann, 2007, p.82)
Fazendo
uma analogia com nossas escolas públicas, centros de educação de massa, onde
são raras as propostas emancipatórias que sejam capazes de “ romper os muros”,
vejo que o trabalho dos meus colegas professores de literatura, história e
artes ali na EMEF aliados ao meu, são apenas sementes isoladas, mas que podem,
quem sabe, germinar.
Ser
artista e educador no mundo contemporâneo é praticamente um trabalho de
guerrilha.
É
preciso coragem para enfrentar as adversidades e trabalhar mesmo que muitas
vezes na precariedade.
É
preciso não ceder às pressões da comum apatia que assola parte dos brasileiros
que reproduzem notícias, comportamentos e não relacionam, não constroem experiências
de fato, reais.
É
preciso romper leis que não nos permitem dar continuidade a processos
artísticos emancipatórios em sua plenitude.
É
preciso, criar leis que nos permitam tempo suficiente para arejar os processos
por meio de experiências sem data de validade.
É
preciso, por fim, continuar esta jornada artística que nos preenche de vida!
Evoé!
Axé
Vocacional!
Materialidade Cênica construída
Bibliografia:
BAUMAN,
Zygmunt. Tempos Líquidos.Jorge Zahar Editora.Rio de Janeiro.2007
FINO,
Carlos. O Paradigma Fabril segundo Toffler e Gimeno Sacristán. http://www3.uma.pt/carlosfino/Documentos/Toffler-Gimeno_Sacristan.pdf
Apresentação Final da materialidade cênica
da turma do Acervo da Memória e do Viver Afro-Brasileiro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FD8iwbBccMU
Anexos:
Protocolos,
desenhos, Imagens do processo, fragmentos de dramaturgia integrantes da
materialidade cênica construída pelos vocacionados de 2015 do Acervo Afro e da
EMEF Ana Benetti.
Protocolo do vocacionado Jhoy
Parte integrante da dramaturgia da turma do Acervo Afro
Esboços de cenas - Turma do Acervo Afro
Protocolo de Camila abaixo -Turma do Acervo Afro
Inspiração para a criação
Protocolo de Natália- Acervo Afro
Texto final da materialidade cênica construída
Poema de aluna da EMEF Ana Benetti
Livro História e Poesia Ato II
parte do texto final da materialidade cênica construída
Projeto construído pelos
professores Claudio e Leandro da EMEF Ana Benetti- dois dos poemas compõe a
dramaturgia da materialidade cênica da turma do vocacional nesta escola.
Vocacionados da Emef Ana Benetti
Jogo de criação de texto coletivo e improviso
Roteiro de cena criado pelos vocacionados da Emef Ana Benetti
Jogo de criação de texto coletivo e improviso
Sensações descritas ao assistir
o documentário Pina Bausch- Turma do Acervo Afro
Estímulos para a criação por meio da
fisicalidade
Protocolo de Paula- Turma do Acervo
Afro
Fragmento gerou estímulo para
criação cênica
Flyer de divulgação da Mostra SUL1
Paradoxos – Turma do Acervo Afro
Paradoxos – Turma do Acervo
Afro
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