sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Potencia Criativa - Recomeço, ruptura e risco - Lígia Botelho


      Ensaio

Potencia Criativa
Recomeço, ruptura e risco
Lígia Botelho
 Teatro

                 Quero romper!
Veja, o agora já não é mais como a um segundo atrás...
Me arrisco... Luto contra barreiras de medo...
(Fragmento de texto do Vocacionado Antonio Luciano, integrante da dramaturgia- Turma do Acervo da Memória e do Viver Afro)

Jabaquara
Recomeço
Começo
É preciso pensar e agir artisticamente no vocacional a cada instante. Isto abala as estruturas das poucas ou quase nulas certezas que temos.
Quando achamos que de algum modo já trilhamos uma trajetória de experiências, percebemos que de fato, tudo sempre se configura como um começo.
Começo a cada instante,
Na troca,
Na mescla,
Nas diferenças,
Nos conflitos,
Nas dúvidas,
Nos encontros,
Nos desencontros,
Nos desafios em conduzir um processo com jovens que vem e vão.
Rico é perceber os rastros dos que se vão.
Sob a forma de textos, criações, palavras, experiências.
Rico é trocar com uma equipe parceira e generosa.
E rico também é preencher os vazios que ficam nos encontros lá na “ponta”.
Há vocacionados que desistem. E isso faz parte. Triste é ver alguns que desistem, mas não propriamente do vocacional, parecem desistir de si mesmos. Tomo a liberdade agora de usar palavras de minhas colegas de equipe Monica Rodrigues, Rosana Massuela e Cris Ávila: Alguns parecem estar ausentes de si e por isso adoecem, e daí não tem teatro, ou linguagem qualquer que consiga resgatá-los, se não querem.
Teatro não é terapia, mas pode tocar e fazer o atuante refletir sobre sua condição e sobre as relações que o cercam, isto é, se este assim o quiser.
Atuar no vocacional é desafio constante!
Orientar processos criativos emancipatórios com perspectiva de continuidade em pouco tempo de vigência.
Atuar no vocacional é risco!
Ë preciso colocar-se em risco! E isto está longe de ser confortável.
O terreno parece sempre movediço mas igualmente delicioso, porque abala as estruturas das certezas. Atrai e provoca temor. Como fazer com que os vocacionados mais “velhos” que estão no Programa desde 2014, troquem com os que estão chegando?
 A questão não está propriamente pautada na experiência, ou virtuosismo, mas no envolvimento. Alguns dos mais antigos, claramente se comprometem mais que os mais novos. Já compreendem que teatro não se faz só.
Já compreendem que teatro é olho no olho, é troca, presença, entrega,  pesquisa, força, e é político em sua própria natureza.
Por outro lado alguns dos mais antigos embora se “sintam” mais experientes não se comprometem como tal.
O início.
Reencontrar alguns e seus desejos. Pareciam querer reinventar Clarice Lispector, com seus lirismos paradoxais e suas subjetividades, mas de um modo juvenil.
Um vocacionado menciona o filme “ O fabuloso destino de Amelie Poulain”. Surge a pergunta-estímulo:
Quais são seus pequenos desejos, dos mais simples aos mais ousados?
E surge o texto de Jhoy, vocacionado que saiu para entrar no mercado de trabalho, como tantos outros.  Hoje o texto é parte integrante de nossa dramaturgia. Criamos jogos diversos com base neste e em outros textos.  
O conflito-chave do texto de Jhoy: libertar-se das amarras e viver os desejos plenamente ou controlar-se em prol da auto-segurança.
Sob a forma de jogos relacionados à fisicalidade e ao espaço, propus diversos estímulos: a relação com objetos, com a vegetação, com os espaços do parque, com a exaustão.  Por fim a cena se encaminhou para o palco. O coletivo habituado a criar em 2014 algumas cenas em área externa, agora escolhe o palco para vivenciar inteiramente o processo.
 Observando o processo, sentia que havia mais “caldo” para extrair dali, daquele espaço, daquele coletivo. Havia uma tendência muito rica, mas muito “confortável” em abordar nas criações,  temas leves de modo lírico, mas não havia conflito.
 Propus estímulos que provocassem o incômodo, risco, saída da zona de conforto. O objetivo? Pôr-se em estado de risco junto com os vocacionados, afinal já os conhecia e percebia algumas tendências.
E veio a pergunta:
Qual seu lado B?
Vimos o documentário de Pina Bausch, sugeri o registro de algumas das sensações ou imagens captadas: risco, medo, sacrifício, agonia, manipulação, resistência, desespero, alívio, se ajustar aos padrões, morte, pássaro preso olhando a liberdade, busca, tensão, exaustão, medo, ritual, fascínio, deusa, divindade, conflitos, contato com a natureza, com a própria natureza humana.(imagens de registros de vocacionados do acervo Afro-em anexo)
Propus exercícios físicos associados a algumas das sensações ou imagens descritas que os desestabilizassem, que os colocassem em estado de risco.
Surgem os primeiros esboços cênicos, pautados em conflitos vividos pelos jovens:
O desejo de viver a arte e a necessidade de entrar para o mundo do trabalho, muitas vezes massacrante, sem espaço para a criação.
O desejo de viver experiências sexuais e artísticas e a repressão por parte dos pais.
O desejo de tocar, de se tocar e o medo de não ser aceito pelos ditos ”padrões midiáticos”
Nossa dramaturgia foi escrita coletivamente por meio da colagem de fragmentos de protocolos, poemas escritos por eles, poemas de Hilda Hilst, Fragmentos da peça O percurso para a felicidade total, de Walmir Pavam, ex- artista Orientador do Programa, jogos teatrais, exercícios com foco na fisicalidade e experimentos com o espaço.
Sim, os Protocolos, instrumentos pedagógicos usados por Brecht e pelo Vocacional há anos atrás, ainda existem e se revelam muito potentes. Se configuram como síntese da materialidade simbólica em processo de construção. Diversos olhares vocacionados constroem esta tessitura artística, sob a forma de depoimentos, desenhos, poemas. Parte das criações tem origem neste instrumento pedagógico.
Nossa dramaturgia se materializa a cada encontro.
Em alguns, se desmorona, para depois se reconstruir, de outro modo.
Mas como desconstruir para construir com coletivo flutuante?
Como construir quando eles querem se destruir?
Novamente o processo do encontro se faz presente.
Encontros- suspensão: aqueles que precisamos “parar tudo” para desenvolver a relação sensorial entre eles, o contato, o respeito ao corpo, ao espaço do outro, ao modo de vida do outro, a personalidade do outro.
Aos poucos os encontros isolados com todos, começam a se apresentar com maior frequência.
E vem a Ação Corredor Norte-Sul.  A morte de um jovem em CEU na região noroeste no início do Programa este ano, provoca nossos desejos contestadores de artistas-provocadores. O terrorismo poético se fez presente e potente, ainda que deslocado do tempo e da idéia original.
 O corredor performático Norte e Sul foi marcado por ações no metro que tocaram de algum modo os transeuntes da cidade naquele dia.
 A boca que quer falar e se cala.
A incomunicabilidade do mundo contemporâneo.
A dificuldade em “estar” presente.
A dificuldade em desacelerar.
O vocacional é espaço para todos.
Todos os vocacionados.
Para trocas artísticas entre os vocacionados.
Todas as formas de “vocacionar”, ou evocar a “voz”
Como artista orientadora também percebo outras formas de “vocacionar”
Ano passado orientei dois grupos e uma turma iniciante.
Dentre os grupos: um iniciante e um que já tinha um histórico no equipamento, foi orientado por vários artistas, foi contemplado pelo VAI algumas vezes.
Ambos tomaram outros caminhos. O mais experiente Novos Fulanos me conduziu a uma nova ação enquanto artista – orientadora, no início do processo este ano: O artista orientador como mediador de encontros.
Sim, foi esta, minha única, mas acredito, potente contribuição com o grupo; antes deste se desvincular do vocacional. Indiquei uma amiga atriz, educadora e cadeirante para conduzir uma oficina de dança e experimentos cênicos com o grupo.
O Novos Fulanos, mais uma vez contemplado pelo VAI, inicia nova jornada. O projeto se intitula Aleijadinho e trata do tema acessibilidade com oficinas de dança e estatuísmo para deficientes físicos que culminará com a criação de um espetáculo pautado nas obras deste artista.
O encontro entre os artistas do grupo e os artistas deficientes se deu no Tendal da Lapa, devido a acessibilidade. Este equipamento, situado em local plano e próximo ao terminal Lapa, foi sugerido por Ana Paula, a amiga que indiquei. O Tendal tem diversas atividades artísticas para deficientes e o grupo procurava interessados para compor o projeto. Ana convidou amigos nesta condição que participaram de seu antigo grupo de teatro.
Esta ação cultural emocionou a todos, revelou ricos paradoxos:
Uma artista cadeirante que conduziu uma Workshop de dança e experimentos cênicos a artistas deficientes do local e aos artistas do grupo. E um artista de rua, ex-aluno meu de teatro, que provido de todas habilidades motoras participou do encontro e foi convidado a conduzir uma oficina de estatuísmo com todos envolvidos.
O grupo iniciante, a CIA SEM, como tinha dificuldade de locomoção até o Jabaquara, passou a ser orientada por outro equipamento na zona noroeste, devido a facilidade na acessibilidade dos integrantes.
E assim iniciei este ano minha trajetória no Acervo. Orientando a turma que já havia no equipamento e orientando este começo de processo dos “Novos Fulanos”.
Mas é preciso libertar-se também. Novos Fulanos assim o fizeram e se sentiram seguros para mais uma vez trilharem sós sua pesquisa.
Uma felicidade: Há um mês encontrar no acervo, amigos deficientes de Ana, a atriz e professora cadeirante que apresentei.  Eles continuam no processo com o coletivo.
Percebendo que na região havia outras demandas, rompi limites e criei parceria com a EMEF Ana Benetti, que fica próxima ao equipamento. Senti que havia solo fértil para encarar um processo, quando em uma ação cultural no Acervo, vi dois professores conduzindo um projeto de escrita de textos e poemas. Os professores conseguiram editar sem subsídios, apenas por meio de pequena verba da escola e com esforços próprios alguns exemplares de dois volumes de uma obra construída a partir de poemas dos próprios alunos. Aquela ação me moveu. Senti que ali havia uma espécie de “oásis” criativo. Estava certa.
Fui até a escola, a coordenadora Inês me apresentou a professora de artes, Luana Csermak, atriz de grupo local. Ela aceitou a parceria. Iniciamos a jornada. Na brinquedoteca juntas, começamos este rico trabalho com jovens estudantes.
Sinto que ali eu, Luana, os professores Claudio Cesar e Leandro Barbosa, de literatura e história, que conduzem os processos criativos com os alunos e mesmo a coordenadora Inês, de algum modo, tentamos criar espaços mais arejados, naquela escola, que, como tantas outras da rede pública, mantém ainda fortemente suas raízes no modelo fabril, conteúdista, hierárquico e disciplinar. Segundo Toffler citado por Carlos Fino, nossa escola ainda conserva elementos retrógrados da sociedade da era pré-industrial. A ideia geral de reunir multidões de estudantes (matéria-prima) destinados a ser processados por professores (operários) numa escola central (fábrica), foi uma demonstração de génio industrial” (Toffler, s/d, p. 393).
Nesta lógica parece mesmo que foi providencial adentrar este ano em uma escola pública e conduzir um processo criativo emancipatório, justamente em um ano em que os movimentos estudantis de ocupação das escolas estaduais estão fortemente articulados contra a “reorganização escolar” imposta pelo governo estadual e abertos a aulas bem mais ricas em experiências que as antigas “disciplinas”.
Lembro-me dos primeiros improvisos e os que vejo hoje, é visível o poder transformador que o teatro tem.
Um dos poemas dos estudantes aliado a um poema de Dugueto, poeta local, ambos integrantes de um dos livros organizados pelos docentes criaram uma materialidade artística crítica ao se mesclarem às cenas construídas ao longo do processo.
Cada encontro uma experiência, um jogo, uma proposta. Luana os estimulava com recortes de jornais, imagens, impressões de matérias atuais, eu, com jogos diversos de criação de textos e ampliação da fisicalidade. Luana iniciava os encontros e depois partia, eu dava continuidade aos processos. Em alguns encontros, juntas, orientávamos. A rica troca entre nós se configurou como o início, espero, de uma grande parceria.
“Romper muros”, limites, fronteiras pareceu-me muito presente e necessário este ano em minha trajetória como artista e orientadora.
A começar com a experiência que tive ao longo de dois anos com meu grupo, entre ensaios, leituras, criações e o espetáculo que finalmente concluímos em 2015: Minha cidade pode não ser a sua, realizado pelo Núcleo Urbanos de Teatro, com direção de Paulo Fabiano e texto de Walmir Pavam (ex artista-orientador do Programa). O espetáculo expõe o choque entre a realidade e ficções sobre a realidade periférica, a visão da experiência e a visão intermediada pela mídia, o choque entre as fronteiras e a possibilidade de ruptura. Este último aspecto muito me moveu ao longo deste ano.
Baumann o tempo todo parecia gritar no meu ouvido:
_É preciso romper! É preciso romper fronteiras!
E assim o fiz.
Segundo Tereza Caldeira, citada por Bauman:
São Paulo é hoje uma cidade de muros. Barreiras físicas cercam espaços públicos e privados: casas, prédios, parques, praças, complexos empresariais e escolas ..Uma nova estética da segurança modela todos os tipos de construções e impõe uma nova lógica da vigilância e da distância. (Bauman, 2007, p.81)
Esta lógica da distância que aparentemente propõe a segurança, isolando, estimula aquilo que mais combate, a própria violência. A sociedade da guetificação.
Segundo Baumann,
(  )as cercas têm dois lados... Elas dividem em "dentro" e "fora" um espaço que seria uniforme - mas o que está "dentro" para as pessoas de um lado da cerca está "fora" para as do outro lado. ( )A cerca separa o "gueto voluntário" dos ricos e poderosos dos muitos guetos forçados dos pobres e excluídos. Para os integrantes do gueto voluntário, os outros guetos são espaços aos quais "nós não vamos". Para integrantes dos guetos involuntários, a área na qual estão confinados (por serem excluídos de outras) é o espaço "do qual não temos permissão de sair".(Baumann, 2007, p.82)

Fazendo uma analogia com nossas escolas públicas, centros de educação de massa, onde são raras as propostas emancipatórias que sejam capazes de “ romper os muros”, vejo que o trabalho dos meus colegas professores de literatura, história e artes ali na EMEF aliados ao meu, são apenas sementes isoladas, mas que podem, quem sabe, germinar.
Ser artista e educador no mundo contemporâneo é praticamente um trabalho de guerrilha.
É preciso coragem para enfrentar as adversidades e trabalhar mesmo que muitas vezes na precariedade.
É preciso não ceder às pressões da comum apatia que assola parte dos brasileiros que reproduzem notícias, comportamentos e não relacionam, não constroem experiências de fato, reais.
É preciso romper leis que não nos permitem dar continuidade a processos artísticos emancipatórios em sua plenitude.
É preciso, criar leis que nos permitam tempo suficiente para arejar os processos por meio de experiências sem data de validade.
É preciso, por fim, continuar esta jornada artística que nos preenche de vida!
Evoé!
Axé Vocacional!



                                           Paradoxos - Acervo Afro 
                                    Materialidade Cênica construída





                   Bibliografia:

BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos.Jorge Zahar Editora.Rio de Janeiro.2007
FINO, Carlos. O Paradigma Fabril segundo Toffler e Gimeno Sacristán. http://www3.uma.pt/carlosfino/Documentos/Toffler-Gimeno_Sacristan.pdf
Apresentação Final da materialidade cênica da turma do Acervo da Memória e do Viver Afro-Brasileiro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FD8iwbBccMU



Anexos:
Protocolos, desenhos, Imagens do processo, fragmentos de dramaturgia integrantes da materialidade cênica construída pelos vocacionados de 2015 do Acervo Afro e da EMEF Ana Benetti.




                                                        Protocolo do vocacionado Jhoy 
                                     Parte integrante da dramaturgia da turma do Acervo Afro



                                                Esboços de cenas - Turma do Acervo  Afro    
    
                                           Protocolo de Camila abaixo -Turma do Acervo Afro
                                                              Inspiração para a criação

                                                        Protocolo de Natália- Acervo Afro
                                          Texto final da materialidade cênica construída
                                               Poema de aluna da EMEF Ana Benetti 
                                                  Livro  História e Poesia Ato II
                          parte do texto final da materialidade cênica construída 
            
                                                  Livros contendo poemas de alunos
Projeto construído pelos professores Claudio e Leandro da EMEF Ana Benetti- dois dos poemas compõe a dramaturgia da materialidade cênica da turma do vocacional nesta escola.
                                                  Vocacionados da Emef Ana Benetti
Jogo de criação de texto coletivo e improviso 
                                  Roteiro de cena criado pelos vocacionados da Emef Ana Benetti
Jogo de criação de texto coletivo e improviso
                                                         Sensações descritas ao assistir
   o documentário Pina Bausch- Turma do Acervo Afro
                     Estímulos para a criação por meio da fisicalidade
                                                     Protocolo de Paula- Turma do Acervo Afro
                Fragmento gerou estímulo para criação cênica
                                                  Flyer de divulgação da Mostra SUL1



Paradoxos – Turma do Acervo Afro


ParadoxosTurma do Acervo Afro

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial