Memórias inventadas em um lugar de risco
“É algo como reconhecer-se em uma
lembrança alheia.
Tentar lembrar e não saber ao certo
do quê.
E é também inventar o que poderia
ter sido.”
Costura
O
percurso desse ensaio se realiza no intuito de revelar aspectos de
uma poética de trabalho, uma tentativa de costurar a realidade e a
ficção em um mesmo bordado, costurar segredos e memórias em um
lugar de risco.
O
trajeto de risco com os vocacionados se inicia a partir da
necessidade de revelar as próprias experiências, descobrir a
potência artísticas de suas histórias e memórias, brincar com os
segredos inventados dentro de um mundo tão real.
“Costuramos
nossas memórias em um lugar de risco,
para
revelar nossos corpos,
que
estão a procura de um lugar para voar.”
E
para voar, vasculhamos nossas caixas, nossos vazios, objetos e
segredos, para recriar novas possibilidades de habitar esse lugar que
chamamos de realidade e assim criar uma poética de si.
Inicia-se
em mim, artista orientadora, uma necessidade/tentativa de costurar
conversas, silêncios, olhares, abertos e reticentes, para instaurar
algo próximo de uma experiência que tenha fluidez, com poucas
interferências e com mais silêncios.
E
no jogo do telefone sem fio surge um segredo coletivo: A necessidade
de ser aquilo que eu possa “reinventar”.
Vazios
“Ela
reparou que o menino
gostava
mais do vazio
do
que do cheio.
Falava
que os vazios
são maiores
e
até infinitos.
“
Manoel de Barros
Durante
os encontros surgem inquietações sobre o espaço físico do teatro,
o que mora lá em cima, nos lugares que o publico não vê? Então
exploramos.
Recortamos
nosso olhar, distanciando e aproximando. Vasculhamos todo o corpo do
teatro e escolhemos o que apreciar. Acoplamos nossos corpos no aço,
na madeira, nas cordas, tecidos, respiramos.
Transitamos
entre os vazios internos e externos do nosso corpo-espaço e
contemplamos:
“O
vazio as vezes gosta de mudar de lugar”
Gabriel
(artista vocacionado)
A
partir dessa experiência os vocacionados caminham nomeando os
espaços; lugar onde sou afetado: plateia, lugar onde revelo minhas
inquietações: palco, lugar onde costuro meus segredos: cantos
estreitos, passarelas acima do palco, coxia, camarim, corredores. Ao
vasculhar esses cômodos “não vistos” o espaço para as memórias
ganham novos sentidos. Descobrimos o lugar de risco onde as memórias
inventadas habitariam.
Mapa-diário
E
para habitar esse lugar sugiro a criação de um mapa-diário, para
dar forma ao nosso modo de ver e sentir, para guiar, localizar,
traçar rotas, encontrar caminhos e as vezes, perde-se. É um mapa
que será preenchido a partir dos nossos encontros, das nossas
memórias inventadas, dos lugares de risco que habitamos. Uma escrita
de si mesmo.
Criamos
instruções para se colocar em risco:
1
Instruções para ocupar um espaço:
Olhar de longe para ver sua
profundidade, olhar de perto para ver seus detalhes. Demarcamos o
espaço, com fitas, linhas, giz, e seguimos renomeando os espaços
escolhidos, os espaços que nos afetam e os espaços que não quero
entrar: Lugar para ser (palco), lugar para se inquietar (plateia)
lugar para voar (amplo e infinito com profundidade), lugar para olhar
( de cima onde não sou vista).
E a partir dessas escolhas, os
vocacionados criaram seus espaços afetivos, onde ali, eles iriam se
recontar e se desamarrotar.
2
Instruções para deixar vestígios:
Para
deixar vestígios vasculhamos nossa memória, escolhemos objetos e
palavras que deixaríamos pelos espaços escolhidos. Em um dos
encontros deixo os vestígios de um segredo que tenho para contar,
são cartas, fotografias, palavras, linhas e espelhos, e peço para
que os vocacionados caminhem pelos meus vestígios e conheçam meu
segredo.
A
partir dessa intervenção os vocacionados começam a trazer seus
vestígios para os encontros e dar significados a eles. O segredo
começa a se revelar.
3
Instruções para contar um segredos:
Mas
para contar esses segredos escolhemos não revelar sua veracidade,
inspirados pelo documentário Jogo de cena do Eduardo Coutinho.
Então
nesse jogo, convidaremos o observador a participar das nossas
memórias inventadas em um lugar de risco, onde nem mesmo nós
saberemos se é realidade ou ficção. E com isso surge uma
inquietação: O que é realidade?
4
Instruções para costurar as memórias:
Eu,
artista orientadora, escolho não interferir na costura dessas
memórias. A narrativa de cada segredo vai se configurando a partir
das vontades de cada vocacionado. A cada encontro a narrativa se
transforma, flui com a presença, com as inquietações que
despertam. E sem ter a necessidade de selecionar nada, a narrativa, o
texto falado, improvisado, escolhe naturalmente o que quer realmente
dizer.
Lugar
de risco
Que
lugar é esse?
Nosso
lugar de risco não é apenas o CEU São Carlos, são os lugares por
onde
caminhamos,
e principalmente o lugar que escolhemos para revelar nossos segredos.
E
esse lugar de risco nos inspirou a escrever em nossos diários.
Coloco aqui alguns textos que nasceram durante o processo.
“Vou
contar um segredo, vou criar minhas próprias regras:
-
Pise com poesia
-
Olhe como música
-
Sinta como quiser
Mas
se for pra se aconchegar deixe sinais que esteve aqui,
aqui
não é qualquer lugar, sou eu por dentro...”
(artista
vocacionado Gabriel Amaral)
Num
dia de risco ou de calor
Estaremos
lá
Entre
aids, palhaço e segredos
Estaremos
lá
Matando
formiga ou vendo um estranho no espelhos
Estaremos
lá
Pisando
com poesia e sentindo como quiser
Estaremos
lá
Com
Neymar, Carla Perez e até mesmo o Papa
Estaremos
lá
Com
preguiça ou não
Estaremos
lá
E
caso alguém falte a saia vai rodar
Com
saída de uns e Canadá de outros
Estaremos
lá
Entre
laços, parto e muito segredo compartilhado
Pode
ter certeza que estaremos lá
(artista
vocacionada Fernanda Meirelles)
Conto
um segredos
Silêncio
Danço
nos meus espaço
Silêncio
Traço
um risco no chão
Silêncio
Me
movo em muitas direções
Silêncio
Coleciono
papéis, fotos e emoções
Silêncio
Faço
papéis de aviões
Descanso
Pequeno
papel frágil onde está?
Tu
és resguardo de sonhar
Amarrotado
e andar
Sempre
rasgado por sentir
Pequeno
papel frágil desdobrar
O
que é pecado e sangrar
Com
os que sangram e lembrar
Que
o papel voa se deixar...
Mas
o que é sonhar?
Tu
tens meus segredos
Mas
não descobriu o que é voar
E
eu com meu medo cego de desbotar
E
você não descobriu o que é voar.
(Artista
vocacionado Gabriel Amaral)
Fui
procurar o significado da palavra realidade.
Perguntei
para o google e ele me disse
-
O que é real, fato, existe.
Perguntei
para a minha mãe:
-Para
de frescura e vai olhar seu irmão!
E
então inventei a minha definição:
-
Realidade é um teletransporte, que te tira do mundo dos sonhos
para
te mostrar algo que as vezes não é tão bom assim.
(Artista
vocacionada Fernanda Meirelles)
Instruções
para a Artista Orientadora
Inspirada
pela escrita dos vocacionados, crio um diário para que eles possam
dar instruções para essa artista orientadora.
Instruções
do Gabriel:
-
É realmente necessário ser uma artista.
-
Olhar descalço.
Instruções
da Ana:
-
Olhar com carinho nosso trabalho.
-
Ter estratégias e coragem.
Instruções
da Damaris
-
Nunca seja professora, odeie dar aulas.
-
Mostre que a arte liberta.
Instruções
do Rodrigo
-
Seja a Brizolla
-
Oriente para a morte e para a vida
Instruções
da Rirally
-
Que no mar dos desorientados, você seja o mapa,
e
navegue e voe acima das criações.
Instruções
do Davi
-
Alimente
-
Nos ajude a costurar nossas ideias
Instruções
da Fernanda
-
Tenha um nariz vermelho
Essas
instruções foram me alimentado durante todo o processo. Esse lugar
de risco se tornou um espaço
de afeto, de costurar realidades e ficções, segredos e memórias.
E
estar no Vocacional me faz provocar e ser provocada a localizar,
traçar rotas, encontrar caminhos e as vezes perde-se completamente,
porque o processo é um organismo vivo, não chega pronto. E quando
sinto que me perco nesse processo, o espaço, o vazio, convida meu
corpo sutil a ter mais presença e percebo que:
“Sou
pulso fora do tempo
Sou
passos que se procuram no caminho
Sou
ritmo que se perde
Sou
espaço que se rende no vazio”
E
não estar pronta é um vazio necessário, que me provoca a olhar
para mim, para o outro e para o mundo. E quando olhamos, encontramos
caminhos para produzir meios de ressoar as nossas expressividades,
seja da forma que for, papel, agulhas, linhas, fotografias e
silêncios. Lugares que mesmo de risco, costuramos nossas coragens,
para revelar nossos corpos que estão a procura de um lugar para
voar.
Artista
orientadora teatro : Janaina Brizolla
Equipe:
Leste 2
Equipamento:
CEU São Carlos
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