sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

TE PEGO NA SAÍDA



“TE PEGO NA SAÍDA”
Aspectos da educação não-formal
INTRODUÇÃO
O texto a seguir compreende um esforço para decantar alguns conceitos em torno da educação não-formal. Um campo vasto e maleável que vem ganhando relevância como aparato pedagógico auxiliar, complementando o ensino formal na complexa tarefa de nortear os processos de desenvolvimento do sujeito no nosso tempo. Para isso, vamos fazer algumas considerações sobre aspectos gerais e especificidades da educação não-formal, para em seguida nos determos sobre a experiência do Programa Vocacional, uma iniciativa do Departamento de Formação Artística e Cultural da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
A discussão sobre formas alternativas de educação vem se expandindo nos meios acadêmicos a partir década de 1980, tendo especial efervescência no Brasil ao longo dos anos 90, conforme nos aponta Maria da Glória Gohn (1997). Terminologias como ‘educação informal’ e ‘não-formal’ surgem para se referir a novas práticas educacionais sistematizadas que buscam complementar carências da escola tradicional. O assunto adquire importância na medida em que se constata a precarização do sistema de ensino no país e a insuficiência de uma escola espremida entre um conservadorismo monolítico, um contexto em ebulição e orçamentos raquíticos.
Paralelamente, se estabelece no senso comum a ideia de que a causa e a solução milagrosa de todos os males do Brasil está na educação. Nos lares, cada vez menos pais e filhos partilham experiências comuns, frequentemente imersos em relações fragilizadas por rotinas exasperantes. Surge uma lacuna na formação das nossas crianças e jovens; junto com ela, aumenta a preocupação em manter as novas gerações bastante atarefadas, “longe das ruas”. Mais responsabilidade para nossos colégios já sobrecarregados.
Este é o espaço que a educação não-formal tenta preencher. Um impulso pedagógico que faz prevalecer a formação sobre a informação. Propõe espaços de ensino para um desenvolvimento mais diversificado, sem uma vocação normativa ou utilitária.
Os conceitos de educação formal, informal e não-formal surgem diante da constatação de que a educação não pode ser considerada como um processo que se limita a um espaço específico ou um intervalo de tempo determinado. Diferencia o ensino escolar tradicional - dos primeiros anos da pré-escola até a conclusão do ensino superior - do ensino informal – processo que se estende por toda a vida do indivíduo, onde se adquire, inconscientemente, os saberes mais diversos através do encontro de horizontes mentais -. Entre essas duas instâncias situa-se a educação não-formal, organizada, sistemática, mas não sujeita ao espaço escolar, tampouco ao seu viés normatizador.

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PRIMEIRAS REFLEXÕES
A educação formal, embora se configure como um campo vasto e dinâmico, tem seus limites relativamente bem estabelecidos, na medida em que compreende uma série determinada de disciplinas, elaboradas e ministradas de acordo com um cronograma; sempre em relação com uma instituição. Assim sendo, de acordo com Valéria Aroeira Garcia, a educação formal “privilegia a homogeneização, negando as especificidades e diferenças que geram desigualdades, portanto não propicia o diálogo”. A autora ressalva que não é uma condição absoluta da educação formal, mas que na maior parte das vezes esta assume um caráter reprodutor e limitador. Não se trata de negar seu potencial criativo e transformador, mas de descrever “a situação da maioria das escolas do país demonstrada a partir de inúmeras pesquisas, pelos mais diferentes vieses” (idem).
A educação não-formal, por outro lado, não pode ser determinada a partir de seus limites, pois compreende todo o processo educacional que se dá fora dos ambientes tradicionais de ensino. Em Pedagogia do Oprimido, Freire nos aponta que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”, propondo um processo educacional contínuo e omnidirecional. Ora, se assumimos que toda interação humana tem um teor educativo, na medida em que definimos a nós mesmos pela interação com o outro, o escopo da educação não-formal corre o risco de se tornar monumental, amplo demais para se efetivar como um campo de pesquisa viável.
Deparamos-nos então com uma nova questão: como determinar a educação não-formal sem apelar para uma oposição em relação à educação formal? Bastaria dizer sobre a educação não-formal que ela compreende todo movimento educativo que se dá fora do escopo da educação formal? Isto seria equivalente a dizer que ‘isto é isto porque não é aquilo’. Não basta. Neste breve estudo, nossa intenção não é responder a essas perguntas – se é que elas precisam de respostas -, mas sim contribuir com reflexões em torno desta problemática. Para tanto, vamos observar algumas características próprias dos contextos educacionais não-formais, buscando compreender melhor onde e como podem ser ativadas deliberadamente para fortalecer os processos de formação do indivíduo.
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A EXPERIÊNCIA VOCACIONAL
Um aspecto bastante objetivo que nos chama a atenção na oposição entre essas duas modalidades pedagógicas (formal e não-formal) se observa nos espaços físicos tradicionalmente dedicados a cada uma. Elemento fundamental da educação formal, o prédio da instituição escolar (seja ela qual for), suas salas de aula, corredores e cadeiras compõem uma atmosfera marcante. Confortável para uns, opressora para outros; mas intensamente homogeneizante – traço que acarreta desdobramentos positivos e negativos. A arquitetura física dos ambientes pedagógicos formais reflete o direcionamento ideológico da instituição como um todo, marcado por uma certa rigidez antipática aos espíritos inquietos.
Contudo, no âmbito da educação não-formal, como definir uma espacialidade tão plural? Na proposta pedagógica do Programa Vocacional encontramos uma possível resposta para essa indagação:
O Programa Vocacional tem como objetivo artístico-pedagógico a prática cotidiana - em cada equipamento, em cada espaço público e em cada sala de trabalho - da emancipação. Assim, a emancipação não é uma utopia longínqua, a ser perseguida em devaneios, mas é formada por práticas constantes de liberdade e reflexão, de ação e de apreciação sobre o fazer artístico, em infinito processo de investigação e descoberta.
Orientando-se pelas ideias do filósofo francês Felix Guattari e o conceito de ‘dessubjetivação’ individual e social, o empenho fundamental desta proposta pedagógica está em “dotar o ser humano de uma nova capacidade de ser sujeito de seus próprios atos e processos”. Sua intenção de produzir novas subjetividades claramente opõe-se ao princípio homogeneizante do ensino formal.

O mesmo documento, que recebeu o nome de Material Norteador e foi elaborado pela equipe do Programa Vocacional a partir das ideias de Sergio Buarque de Hollanda, Paulo Freire, Jacques Ranciére, Gilles Deleuze e Felix Guattari, entre outros, traz ainda conceitos interessantes para investigarmos algumas particularidades da educação não-formal.

O conceito de ‘mestre ignorante’, derivado do livro homônimo de Rancière, é um aspecto seminal para a educação não-formal que está bastante bem elaborado nas páginas deste Material Norteador. Sua teoria resgata a experiência de Joseph Jacotot, que narra como ensinou uma língua que desconhecia a uma classe de jovens no século XIX. A partir deste relato, Rancière propõe uma nova relação entre educador e educando onde não se estabeleça uma hierarquia de conhecimento entre ambos, opondo-se ao que chamamos de ensino bancário, que tem como pressuposto fundamental a ignorância do aluno perante o conhecimento do professor, que tem o dever de transmiti-lo aos estudantes. Neste outro modelo pedagógico, o que deve ser ignorado é justamente a lacuna entre o saber de um e de outro, legitimando a perspectiva do ignorante, já que é ela a detentora do caminho para a construção do seu saber.

O Programa Vocacional da Secretaria Municipal de Cultura do estado de São Paulo foi fundado em 2001 com uma proposta direcionada à linguagem do teatro. A esta altura recebia o nome de Teatro Vocacional e já detinha muitas das características que definem ainda hoje (2015) o Programa, depois de mais de uma década de atividade. Ao longo do tempo, foi incorporando outras linguagens e atualmente oferece orientação artística em artes visuais, dança, teatro, música, literatura e artes integradas. Sua atuação se espalha por toda a cidade de São Paulo nos equipamentos públicos de cultura. CEUs, bibliotecas, teatros, casas de cultura e centros culturais recebem os artistas orientadores duas vezes por semana, em encontros de três horas de duração. As atividades são gratuitas e abertas ao público acima de 14 anos de idade.
Além desses encontros, o Programa Vocacional propõe ainda atividades de ação cultural com os vocacionados – nome dado aos frequentadores dos encontros de orientação artística -, estimulando dessa maneira o trânsito pelos diversos territórios da cidade. Por fim, um trabalho de pesquisação é conduzido pelos orientadores artísticos, divididos em equipes compostas com profissionais de linguagens diferentes. Este trabalho, feito colaborativamente ao longo do tempo, resultou na proposta pedagógica contida no Material Norteador que comentamos acima.

A Divisão de Formação Artística e Cultural, responsável pelo Programa Vocacional, prevê uma ação formativa continuada que visa acompanhar e incentivar o processo de desenvolvimento artístico desde a infância. O PIÁ – Programa de Iniciação Artística oferece uma dinâmica semelhante à do Vocacional, mas voltada para crianças de 5 a 14 anos de idade, e tem o objetivo de estimular processos criativos e promover a iniciação artística através da integração das linguagens de artes visuais, dança, teatro, música e literatura. A partir da idade limite para frequentar o PIÁ, o sujeito em formação pode seguir com as orientações do Vocacional, com maior ou menor direcionamento profissional para a mercado da arte, seja na condição de articulador cultural ou de artista, através de financiamento pelo VAI - Programa de Valorização de Iniciativas Culturais, ou outros editais.

Os encontros artístico-pedagógicos do PIÁ e do Vocacional, diferentes das tradicionais oficinas de arte, ocorrem ao longo de todo o ano, trazendo oportunidades riquíssimas de convívio e desenvolvimento compartilhado. Cada linguagem artística, cada grupo e cada equipamento público acarretam em influências radicais na prática pedagógica do Programa Vocacional, mas de maneira geral podemos observar pontos comuns que caracterizam a sua ação, que foram organizados segundo seis princípios:

O mestre ignorante – de acordo com a proposta de Jacques Rancière, basear o processo na construção de um conhecimento comum, sem estabelecer hierarquias entre os participantes do encontro.

O nomadismo no espaço público – criar novas possibilidades de ocupação do espaço público, se apropriando dele. Envolve visitar, explorar e intervir nos ambientes, assim como o exercício de se reposicionar ideologicamente diante dos estímulos de espaços diversos.

A ação cultural – promover atividades de investigação das formas de exposição da arte e cultura, incluindo mídias variadas e apresentações ao vivo. Exercitar a articulação cultural desde a produção artística até a produção executiva.

As relações entre forma e conteúdo – investigar a própria construção artística, experimentando e refletindo sobre os aspectos estruturais da linguagem, pesquisando sua história, seus ícones, personalidades, etc..

O registro e a memória dos processos – registrar o desenrolar de cada etapa do processo criativo, através de quaisquer meios, construindo uma cultura de ação e reflexão.

A reflexão – manter a prática constante de meditação sobre a própria obra, relevando seus aspectos formais, históricos e o conteúdo em si.

A partir de 2015, a linguagem artística literatura foi incorporada ao Programa Vocacional. Sendo ainda um projeto piloto, começou suas atividades com cerca de dez orientadores artísticos, entre os quais tive a felicidade de me incluir através de concurso pela Secretaria Municipal de Cultura. Assim sendo, me comprometi a comparecer aos dois encontros semanais na biblioteca pública Mario Schenberg, na Lapa, e assim fiz. Com os primeiros encontros, em maio do mesmo ano, surpreendeu-me uma turma heterogênea e numerosa, que incluía desde um juiz aposentado até um punk cursando o primeiro ano do ensino médio. Com o passar dos meses, os encontros foram ficando menos populosos e apenas uma dezena se confirmou assídua e interessada. Outra surpresa ao constatar que, contrariando minhas expectativas, contávamos agora com uma metade de frequentadores em situação pré-vestibular ou cursando a graduação. Jovens diferentes entre si, mas com um elemento em comum: seu interesse nos encontros era motivado principalmente por uma sede de ampliar seu repertório cultural, se deparar com realidades outras. Os depoimentos que colhi desses jovens ao longo de nossa proveitosa convivência revelam a dupla constatação da descoberta de um amplo universo de conhecimentos a se percorrer, e que o curso universitário por si só não dá conta de equipá-los para tanto. Simultaneamente intuem que já carregam certos conhecimentos, mas que estes saberes têm pouco reconhecimento no ambiente acadêmico, trazendo um misto de desconfiança e a sensação de inferioridade.

A dinâmica pedagógica que se construiu entre nós vem permitindo que se reavaliem essas convicções, apontando para uma outra forma de lidar com a instituição formal de ensino e com o próprio conhecimento adquirido até então.
Essa situação faz-nos atentar para uma instância que nem sempre é levada em conta nos debates sobre educação não-formal: sua interação com o ensino universitário. Sobretudo nos primeiros anos da graduação, temos muitos jovens vivenciando um momento de abertura dos horizontes mentais, constituindo-se como indivíduo enquanto se deparam com uma vastidão de possibilidades intelectuais, profissionais, políticas, enfim... em pleno exercício da inventio de si. Momento-chave para a produção artística e o desenvolvimento de processos criativos, que merece uma atenção especial. A interação destes jovens com pessoas das mais variadas idades, proporcionada pelos encontros do Programa Vocacional, resultam em uma oportunidade preciosa de crescimento intelectual e troca de impressões. Neste sentido, é mais uma vez fundamental ressaltar a importância da criação de um ambiente pedagógico onde as relações se estabeleçam horizontalmente para assegurar um intercâmbio franco e flexível de ideias.
Outra propriedade específica da linguagem Literatura dentro do Programa Vocacional é a desescolarização, além do caráter íntimo e individual inerente à produção literária. Viabilidade prática da produção e edição de textos, apesar de funcionar perfeitamente dentro de uma infra-estrutura mínima, que se limita a lápis e papel, sem exigir um espaço específico para ocorrer nem condições materiais elaboradas. No entanto, o processo de publicação muito raramente se abstém da necessidade do uso de computadores e impressoras, o que pode oferecer um obstáculo para o processo criativo literário.

Vimos aqui algumas características próprias da educação não-formal e suas manifestações no ambiente particular do Programa Vocacional de Literatura. Especificidades à parte, acreditamos que ela tem um papel fundamental nos nossos dias, como veículo para a construção de uma sociedade mais democrática e afeita à diversidade.
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Teo Garfunkel

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