segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Percursos de aprendizagem e criação no CEU Capão Redondo – Liz Nátali Sória (AO)




Chegada

                Em meu primeiro ano como artista orientadora no programa e no CEU Capão Redondo, revisitei minha experiência como artista vocacionada. A descoberta da livre criação, do coletivo e da possibilidade de pensar e aprender no processo criativo abriu uma porta que não se fecharia mais.
                Ao longo desses sete meses como AO em 2015, foram diversas as dificuldades e os momentos de experiência e inquietação. Deixando de lado os embates silenciosos, travestidos de delicadezas entre o equipamento e o Vocacional, dedico-me a levantar alguns pontos dos processos criativos.
Uma das turmas – a turma de domingo – passou, em 2014, por um processo artístico que, segundo várias narrações, foi recheado de acontecimentos potentes. Fui incumbida de dar continuidade e de não romper com algo que se tinha construído. Tarefa difícil, já que a própria descontinuidade do programa já tinha interrompido as coisas. Da turma anterior, dos dez que permaneceram no processo até o final, apenas quatro tinham vivido a experiência do ano anterior. Tratava-se de um novo grupo. De todo modo, busquei intensidade na condução e já nos primeiros encontros, abandonei o repertório dos jogos teatrais para experimentar outras possibilidades, que eu tampouco sabia o que era.
A outra turma – a turma de terça – era composta por vários integrantes novos que apoiavam seu interesse pelo teatro na referência do stand up comedy. Desconstruir a postura escolar e ao mesmo tempo dar outras referências que ultrapassasse as da cultura de massa e os levassem a outras dimensões criativas, foram os maiores desafios com esta turma.

Do indivíduo ao coletivo, do coletivo ao indivíduo

O desafio de que a experiência teatral tocasse nos indivíduos envolvidos teve como estratégia o fortalecimento do trabalho coletivo. De forma dialética, o envolvimento de cada indivíduo alimentava a relação coletiva.
Em ambas as turmas, nos primeiros meses, definimos temas de investigação: O TEMPO na turma de domingo; A HIERARQUIA, na turma de terça. A forma dos encontros era pensada a partir desses temas – encontros divididos em acontecimentos em ritmo muito rápido ou muito lento, na turma de domingo; encontros em que os vocacionados eram encarregados de formular o aquecimento e propor conduções de forma revezada, na turma de terça. Além disso, cada vocacionado trazia experiências individuais a partir dos respectivos temas e isso ia preenchendo o desenvolvimento coletivo.
Na turma de terça, o trabalho sobre o tema iniciou-se a partir das relações hierárquicas que os vocacionados vivenciavam em diferentes espaços da vida. Paralelamente e a fim de perambular por outras formas que não a novelesca, trabalhamos dois tipos de movimentação corporal que se somou ao repertório para abordar o tema da hierarquia. Movimentos decupados, onde o corpo se parece com uma máquina, em que cada parte do corpo se move separadamente das outras partes; e movimentos fluidos, onde cada parte do corpo contamina o resto do corpo que se locomove livremente pelo espaço em um só fluxo de movimento. Esta base corporal junto às experiências trazidas deram origens a algumas experimentações cênicas. No entanto, estas esgotaram-se e delas não partiram outros temas ou outras possibilidades trazidas pelo grupo. Momento de crise e de não saber como provocar ainda mais uma postura ativa e criativa do grupo. Nesta altura do processo, apresentei um pequeno texto do Livro dos Abraços de "Eduardo Galeano", o texto, chamado burocracia3, o cumprimento de uma ordem sem questionamento. A partir deste texto foi possível revisitar os movimentos corporais previamente trabalhados e seguir na criação de outras cenas que partiam do texto, mas que foram muito além dele.
Na turma de domingo, de forma orgânica, o tema TEMPO trouxe outros temas de inquietação do grupo – inércia, ruptura, alienação tecnológica, doenças de trabalho, indústria farmacêutica. Combinada com os temas, estava a forma. Partimos de exercícios de coro, de movimentação e ação coletiva no espaço e de diferenciação de tônus corporal. A ideia era investigarmos juntos maneiras de expressar os temas de forma coletiva e sem o uso da palavra. Os exercícios cênicos propostos, inicialmente, combinavam trabalho de coro e movimentação pelo espaço. Passamos por exercícios corais variados de percepção coletiva e pelo campo de visão. Essas formas eram combinadas com os conteúdos temáticos trazidos por cada um a partir de sua própria experiência.
Aos poucos, alguns integrantes trouxeram cenas previamente preparadas, que eram apreciadas e debatidas pelo grupo e que algumas vezes voltavam a ser experimentadas. Logo, predominou no grupo a vontade de abrir o processo de criação com apresentação de algumas cenas que pudessem ser lapidadas. Daí, vieram diferentes proposições de roteiro. As cenas ali propostas foram reflexo do processo que buscava unir  expressões coletivas sem o uso da palavra com os temas que formulavam críticas sociais.

O que fica e o que vai

Difícil compreender o que exatamente passou com cada indivíduo ali presente e o que restará dos coletivos após o término do processo deste ano. Muito da experiência fica e algo dela vai perambular por aí sem necessariamente se fixar de imediato. Creio que a possibilidade da criação em coletivo, sem que uma pessoa pré-determine tudo antes, é um dos legados de ambas as turmas. Da mesma forma, a descoberta do teatro para alguns como uma forma de expressão com possibilidades inimagináveis também é presente nos relatos. As formas são infinitas e ao mesmo tempo, a cultura de massa restringe nosso repertório e nossa capacidade imaginativa. A possibilidade de criar livremente aquilo que ninguém sozinho pode imaginar, mas no contato, na tensão com o coletivo, e na transformação do individuo, o inimaginável é criado. 


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