Percursos de aprendizagem e criação no CEU Capão Redondo – Liz Nátali Sória (AO)
Chegada
Em meu
primeiro ano como artista orientadora no programa e no CEU Capão Redondo, revisitei
minha experiência como artista vocacionada. A descoberta da livre criação, do
coletivo e da possibilidade de pensar e aprender no processo criativo abriu uma
porta que não se fecharia mais.
Ao
longo desses sete meses como AO em 2015, foram diversas as dificuldades e os
momentos de experiência e inquietação. Deixando de lado os embates silenciosos,
travestidos de delicadezas entre o equipamento e o Vocacional, dedico-me a
levantar alguns pontos dos processos criativos.
Uma das turmas – a turma de domingo
– passou, em 2014, por um processo artístico que, segundo várias narrações, foi
recheado de acontecimentos potentes. Fui incumbida de dar continuidade e de não
romper com algo que se tinha construído. Tarefa difícil, já que a própria
descontinuidade do programa já tinha interrompido as coisas. Da turma anterior,
dos dez que permaneceram no processo até o final, apenas quatro tinham vivido a
experiência do ano anterior. Tratava-se de um novo grupo. De todo modo, busquei
intensidade na condução e já nos primeiros encontros, abandonei o repertório dos
jogos teatrais para experimentar outras possibilidades, que eu tampouco sabia o
que era.
A outra turma – a turma de terça
– era composta por vários integrantes novos que apoiavam seu interesse pelo
teatro na referência do stand up comedy. Desconstruir a postura escolar e ao mesmo
tempo dar outras referências que ultrapassasse as da cultura de massa e os
levassem a outras dimensões criativas, foram os maiores desafios com esta
turma.
Do indivíduo ao coletivo,
do coletivo ao indivíduo
O desafio de que a experiência
teatral tocasse nos indivíduos envolvidos teve como estratégia o fortalecimento
do trabalho coletivo. De forma dialética, o envolvimento de cada indivíduo
alimentava a relação coletiva.
Em ambas as turmas, nos primeiros
meses, definimos temas de investigação: O TEMPO na turma de domingo; A
HIERARQUIA, na turma de terça. A forma dos encontros era pensada a partir
desses temas – encontros divididos em acontecimentos em ritmo muito rápido ou
muito lento, na turma de domingo; encontros em que os vocacionados eram
encarregados de formular o aquecimento e propor conduções de forma revezada, na
turma de terça. Além disso, cada vocacionado trazia experiências individuais a
partir dos respectivos temas e isso ia preenchendo o desenvolvimento coletivo.
Na turma de terça, o trabalho
sobre o tema iniciou-se a partir das relações hierárquicas que os vocacionados
vivenciavam em diferentes espaços da vida. Paralelamente e a fim de perambular
por outras formas que não a novelesca, trabalhamos dois tipos de movimentação
corporal que se somou ao repertório para abordar o tema da hierarquia.
Movimentos decupados, onde o corpo se parece com uma máquina, em que cada parte
do corpo se move separadamente das outras partes; e movimentos fluidos, onde
cada parte do corpo contamina o resto do corpo que se locomove livremente pelo
espaço em um só fluxo de movimento. Esta base corporal junto às experiências
trazidas deram origens a algumas experimentações cênicas. No entanto, estas
esgotaram-se e delas não partiram outros temas ou outras possibilidades
trazidas pelo grupo. Momento de crise e de não saber como provocar ainda mais
uma postura ativa e criativa do grupo. Nesta altura do processo, apresentei um
pequeno texto do Livro dos Abraços de "Eduardo Galeano", o texto, chamado
burocracia3, o cumprimento de uma ordem sem questionamento. A partir deste
texto foi possível revisitar os movimentos corporais previamente trabalhados e
seguir na criação de outras cenas que partiam do texto, mas que foram muito
além dele.
Na turma de domingo, de forma
orgânica, o tema TEMPO trouxe outros temas de inquietação do grupo – inércia,
ruptura, alienação tecnológica, doenças de trabalho, indústria farmacêutica. Combinada
com os temas, estava a forma. Partimos de exercícios de coro, de movimentação e
ação coletiva no espaço e de diferenciação de tônus corporal. A ideia era
investigarmos juntos maneiras de expressar os temas de forma coletiva e sem o
uso da palavra. Os exercícios cênicos propostos, inicialmente, combinavam
trabalho de coro e movimentação pelo espaço. Passamos por exercícios corais
variados de percepção coletiva e pelo campo de visão. Essas formas eram
combinadas com os conteúdos temáticos trazidos por cada um a partir de sua
própria experiência.
Aos poucos, alguns integrantes trouxeram
cenas previamente preparadas, que eram apreciadas e debatidas pelo grupo e que
algumas vezes voltavam a ser experimentadas. Logo, predominou no grupo a
vontade de abrir o processo de criação com apresentação de algumas cenas que
pudessem ser lapidadas. Daí, vieram diferentes proposições de roteiro. As cenas
ali propostas foram reflexo do processo que buscava unir expressões coletivas sem o uso da palavra com
os temas que formulavam críticas sociais.
O que fica e o que vai
Difícil compreender o que
exatamente passou com cada indivíduo ali presente e o que restará dos coletivos
após o término do processo deste ano. Muito da experiência fica e algo dela vai
perambular por aí sem necessariamente se fixar de imediato. Creio que a
possibilidade da criação em coletivo, sem que uma pessoa pré-determine tudo
antes, é um dos legados de ambas as turmas. Da mesma forma, a descoberta do
teatro para alguns como uma forma de expressão com possibilidades inimagináveis
também é presente nos relatos. As formas são infinitas e ao mesmo tempo, a
cultura de massa restringe nosso repertório e nossa capacidade imaginativa. A
possibilidade de criar livremente aquilo que ninguém sozinho pode imaginar, mas
no contato, na tensão com o coletivo, e na transformação do individuo, o
inimaginável é criado.
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