terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Ensaios Sobre Estar Lá

A.O. Joana Ferraz
CEU Água Azul
Vocacional Dança / 2015

Ensaios Sobre Estar Lá

I.
Estar na ponta. Em relação a que? Ponta do que?
Ponta em relação à Sé.
Ao Pateo do Colégio.
Mas e os valores? Na superfície os mesmos.
A TV é a mesma na ponta e fora da ponta.

II.
Aqui a noite tem uma neblina, que cobre o alto dos postes de luz e o cume dos morros. Me sinto viajando. Fazia tempo que não via neblina.
Isto é uma viagem. Demoro 2 horas para chegar aqui. E a paisagem se transforma loucamente de um extremo da linha vermelha ao outro.

III.
Ao lado da piscina tem um barranco grande, na metade dele tem um desnível, como um grande degrau. Me lembra o segundo sonho, do Sonhos, de Kurosawa. Quis mostrar na hora um trecho do sonho para os vocacionados daquele dia. Mas a internet do CEU não estava funcionando no momento. E o momento passou. 

IV.
Hoje na direção contraria, na calçada em frente ao CEU, vinha um homem alterado com um canivete aberto na mão. Momento de apreensão.
Emprestei o livro “O Mundo de Sofia” para um dos meninos que aparece eventualmente nos meus encontros. (Agora que passo este texto a limpo sei que dei o livro. Não nos vimos mais.) Ele é inteligente, crítico, revoltado, como outros tantos da sua idade: nada, tudo, nunca, sempre. O mundo não é bom. As pessoas são ruins. Ele me diz. Ele me diz que se tivesse uma arma mataria todos, que Hitler estava certo. E segue misturando um monte de pensamentos uns nos outros. Pausa. Pausa pra aula de história sobre o que foi o nazismo e o que implica uma ditadura, etc etc etc. Pausa para a aula de filosofia e lógica, que matar alguém que você não gosta não vai resolver nada. Uma longa conversa. Ele teima. Como um tanto de outros teimam. Eu digo: acho lamentável. 
Uma semana depois ele me encontrou sentada num banco no CEU e me diz: sobre aquela conversa, o que você me disse…. acho que é isso…. não faz sentido matar as pessoas. Alívio. Algo aconteceu nesse tempo, a conversa foi sentida de alguma forma. É preciso aprender a se perguntar, se questionar. Acho que a filosofia vai ajudar. Empresto o livro. Dou o livro.

V.
Uma vocacionada vem pra mim no começo da aula, ela veio em um encontro só até então,  e me diz: sabe que depois daquela aula me sinto mais a vontade pra dançar nas festas?! Eu me sentia meio mal antes, com vergonha. A gente vai fazer aquilo de novo?
Aquilo: rolar no chão, rolar em cima um dos outros, se deslocar pelo espaço empurrando o chão com diferentes partes do corpo, brincar com peso, equilíbrio. juntos, separados. Fiquei alegre e senti que fazia sentido estar ali daquele jeito.

VI.a
Não há turma. Não há sala própria. Todo dia é um começo, todo dia é improviso: o que vai ser o encontro? Depende de quem vem. E quem vem? Mistério. Haja energia para improvisar. Teve uma única menina presente do começo ao fim: todo encontro fazíamos o mesmo começo: empurrar o chão e depois rolamentos. A cada encontro tinha um novo alguém que aparecia, e precisava se inteirar do que estávamos fazendo. Sentia que era uma pena, um passo pra trás. Bobagem minha, eu percebi em tempo. Estávamos vivendo algo rico: persistência e aprofundamento. Ela já conduzia sozinha a brincadeira com os outros e era fera. E eu a via passeando com cada vez mais desenvoltura com o próprio corpo. E ela pedia: vamos fazer o rolamento de novo? Parecia criança com desenho animado, assistindo o mesmo todo dia. 

VI.b
Mais do mesmo:
Os maiores interessados nos encontros de dança foram meninas entre 14 e 18 anos. Algumas tímidas, a maioria com muito pouca intimidade com o próprio corpo (seja por um processo da idade, seja pela realidade que vivemos hoje e que consumimos hoje em forma de religião, entretenimento e educação, que nos distanciam de nosso corpo por diferentes vias). Os encontros se tornaram neste caso um misto de aula de corpo, com conversas sobre angústias e desejos comuns a meninas dessa idade. Por se tratar de uma turma completamente flutuante e com muito mais curiosidade do que compromisso (o que entendo como parte da construção específica de tempo desta geração e dessa fase da vida) vivemos uma espécie de eterno recomeço, pois contávamos sempre com algum iniciante em aula. Isto nos levou tanto a partir sempre de um mesmo exercício e então seguir com variáveis que parecessem mais adequadas pro dia e pra turma, mas também levou as meninas a exercitarem como explicar este exercício para cada nova pessoa que surgia, de forma que tinham que desenvolver um raciocínio próprio ao redor do que estavam fazendo.

VII.
Teve um tempo que eu entendi afinal que o que importava era estar lá. Estar naquele lugar sendo, atenta aos encontros. Então, quando não vinha vocacionado para o encontro, ou no intervalo de um encontro e outro, eu sentava num banco na área externa. Perto da piscina. No meio da atividade incessante de gente jogando bola, brincando, conversando e mais. E ali estava. Estava lendo, escrevendo, olhando. E só de estar lá já era um monte de coisa. Me sentia esquisita, porque fazia coisas que ninguém mais estava fazendo, ou porque eu me sentia mesmo um peixe fora d'água, sozinha alí, sem turma. Teve o dia da conversa sobre Hitler e matar pessoas. E teve também o dia da conversa com um menino que todo dia está no CEU treinando hip hop com sua turma. Ele sentou do meu lado e começamos a conversar. começou com: o que você está fazendo? e assim foi que falamos dos estudos dele, dos empregos, de possibilidades, de dança, de como levar a vida dançando, de se é importante fazer faculdade ou não, com direito ao comentário: você é engraçada, você faz umas questões diferentes, você quer pensar sobre cada uma das coisas né? Daí que achei: que bom que estou aqui, sendo quem eu sou com coragem, e podendo conversar com esse menino, como um dia alguém conversou comigo, de um jeito estranho e cheio de reflexões. Não parece mais ser costume refletir, e as pessoas se assustam, mas ficam curiosas, e querem mais. Estar e gerar curiosidade, assim como tudo que alí estava me gerava curiosidade, cada um, cada história, cada possibilidade de encontro e conversa.
Mas é difícil estar. E as pessoas acham que isso é nada.

VIII.
“É o seguinte Joana, vou ter que fazer sua avaliação, você sabe né? E a fulana, me mandou fotos tuas, fazendo nada sentada no banco. Acho que não vale a pena ter vocacional dança aqui, todo ano é assim. Quantos alunos você tem? Demorou pra responder é porque não tem né? E não é que as pessoas não gostam de dançar, a Zumba tem mais de 30 alunos. E o teatro? Ah, o teatro. Acho que não vou pedir vocacional dança para cá ano que vem, é um desperdício de dinheiro."
É o seguinte ciclana, se eu não tenho vocacionado no dia ou estou no meu intervalo, eu prefiro estar sentada no banco externo, onde posso ser vista e encontrada por quem quiser, do que escondida dentro de uma sala qualquer, e o segurança dizer que eu já fui embora e coisas do gênero. Falta de atenção total. E diz pra fulana, que isso de ficar tirando foto dos outros sem pedir é muito stalker, bizarro, e assédio moral. Se a Zumba tem mais de 30 alunos é porque eu acordei e o mundo continua como era ontem, o que é de se esperar. Estranho seria você me contar que a zumba tava só com 4 alunos, e eu com 40 inscritos querendo fazer arte e não entretenimento. Dinheiro mal gasto? É dinheiro público, tem que ser usado pra isso mesmo: pra coisas que são importantes mas não vendáveis e lucráveis como uma aula de Zumba. Ou tu acha que seria melhor usar o dinheiro público pra ter mais aula de Zumba porque tem mais gente querendo fazer? Não vou nem continuar o raciocínio a partir daqui. 

IX.
Teve um dia em que éramos muitos. e saímos segurando uns nos outros, numa pequena multidão disforme, subindo e descendo escadas, andando por corredores, atravessando quadras e salas, em diferentes velocidades e dinâmicas, nesse exercício complexo de estar junto e ser muitos.

X.
Teve outro dia em que éramos muitos. Assistimos vários vídeos no youtube, de dança contemporânea, dança militar, dança de propaganda, dança de competição japonesa, dança de clipe, dança tradicional, dança dança dança. E uma propaganda da coca cola, feita por uma artista visual chamada Nagi Noda. Fomos para o teatro, esse dia, e muitos outros depois, pra brincar de Naginodar (brinquedo inventado pela Thelma Bonavita e cia, no Desaba se não me engano). Naginodar é como aqueles livrinhos que se folheia rápido e vira uma animação: uma pose depois da outra, encadeando ações. Fizemos isso com som também, já que é praxe falar durante a aula sem parar, então que dancemos esse conversê. Naginodamos muito com som, sons a ver com a imagem ou nada a ver com a imagem e assim, em um encontro, atravessamos o teatro, galgando poltronas da platéia e o que tivesse pela frente, num desdobrar infinito de ações e ficções. Do mundo animal, passamos até por religião e desdobrando num funk improvisado. Uma verdadeira delícia. Agradeço a todos e aos Desaba pela graça alcançada.

XI.
Tivemos então nosso último dia de eterno recomeço. Alguns dos presentes nunca tinham feito o aquecimento que estávamos fazendo, ou só tinham feito uma vez e não lembravam. Acabei de mediadora. Quem conduziu o encontro inteiro foram os vocacionados mais antigos ou mais presentes. Organizaram um aquecimento com exercícios feitos em encontros passados. Foi bom ver o que eles escolhiam. Quiseram fazer um exercício de tai chi e depois Naginodar, e eu ali só dando uns toques. E o blablablá full time. Mas incrível, ver o encontro se desenrolando nesse tempo esgarçado do grupo, de ir se entendendo num fazer e desfazer de acordos. Daí chegou a turma de Tae Kwon Do e tivemos que sair da sala e procurar outro canto.

XII.
Agora lendo isso me lembro de um dia que um dos grupos falava tanto tentando fazer o exercício que o tempo acabou sem terem saído do lugar. Importante percebermos a força do conversê, que move mas também pode empacar.


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