POR QUE SE REUNIR NAS ORIENTAÇÕES DO PROGRAMA VOCACIONAL?
Raphael de Paula
Ribeiro
2015
O
título deste ensaio contem dois conflitos implícitos em torno do porquê de se
reunir: indivíduo X todo e aula de música X laboratório artístico. Vários aspectos das turmas
do vocacional música do CEU Quinta do sol convergem para ambos os conflitos e
circulam prováveis respostas para tal pergunta: a imagem de “aula de música”
(como propaga o equipamento); a subjetividade da arte; a música em busca da concretude;
as expectativas de cada participante; a troca de AO; o período sem orientações;
os diferentes níveis de acesso à técnica entre os membros; as turmas subdivididas
em pequenos grupos e separadas por “níveis” de conhecimento em música. O presente
ensaio não pretende investigar esses aspectos, levantá-los possibilita a
compreensão do contexto no qual se encontram as orientações e justifica a
necessidade da reflexão aqui proposta. Apesar dos diferentes interesses e modos
de contato com o conhecimento artístico, as pessoas dispostas a participar das
orientações compartilham um objetivo comum: a relação com a música. Contudo,
mesmo ao partir dessa proposição universal, o encontro com as diferenças se
torna inevitável, cada pessoa constrói uma relação diferente com a música. Essas buscas pessoais e os diferentes
níveis de acesso à técnica influenciam os fazeres musicais? Certamente,
parece uma provável resposta de qualquer musicista ou músico experiente.
Um grupo de indivíduos
Clarinetistas
com maior grau técnico executariam melhor o primeiro movimento do “Concerto
para clarinete” de W. A. Mozart, por exemplo. Intérpretes dessa obra, na
tradição de concerto, dependem do acompanhamento orquestral com nível
equivalente. Solistas e os demais membros de uma orquestra se unem para cumprir
propósitos comuns: executar uma impecável performance do “Concerto para
clarinete” pode pertencer à lista de propósitos. Alguém na condição de AO do
programa vocacional também pode dar a mesma resposta, mas para o programa existe a real necessidade de buscar o aperfeiçoamento
em prol da obra ou do devir? Parece minimamente necessário desconstruir a
ideia da melhor expressão, sem fazer qualquer juízo de valor sobre a chamada
“música erudita”. Interessa, além do desempenho, a fruição na relação entre
artistas, obra e ouvintes.
Então saber ou não saber improvisar,
compor, escrever letras, cantar ou tocar algum instrumento interessa ao
processo criativo? Mudar a perspectiva sobre um objeto
permite sua maior compreensão. Assim ensina Platão em sua Alegoria da caverna. O texto fala da diferença entre dois tipos de
sujeitos: O primeiro tipo trata-se de um grupo composto de seres acorrentados
em uma caverna restritos a uma percepção de mundo através de sombras projetadas
na parede. O segundo tipo revela a dor de um sujeito retirado da caverna no
processo esclarecedor de subir a montanha e conhecer o mundo.
(...) Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à
estrada na prisão, a luz do fogo que ilumina a caverna à ação do sol. Quanto à
subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata da ascensão
da alma até o lugar inteligível, (...) nos últimos limites do mundo inteligível
aparece-me a ideia do Bem, que se percebe com dificuldade, mas que não se pode
ver sem concluir que ela é a causa de tudo o que há de reto e de belo. No mundo
visível, ela gera a luz e o senhor da luz, no mundo inteligível ela própria é a
soberana que dispensa a verdade e a inteligência. Acrescento que é preciso vê-la
se quer comportar-se com sabedoria, seja na vida privada, seja na vida pública.
(MARCONDES, 2000)
Cria-se
no processo artístico diferentes relações com o objeto de arte (ou de estudo da
arte). No programa vocacional, a produção se dá por quem tem mais técnica e por
quem se envolve em experiências com pouca familiaridade, pelas perspectivas do
saber e do não saber, em outras palavras, visões do mundo dentro e fora da
caverna.
(...) Ao contrário dos parâmetros da pedagogia formal,
baseados no desenvolvimento progressivo e linear de seus alunos a partir de
conhecimentos administrados pelo professor tradicional, o Programa Vocacional
pretende adotar como metodologia a instauração de processos criativos. Sob tal
pedagogia, o artista vocacionado não necessita da aquisição prévia de
conhecimentos, técnicas ou habilidades, mas, através da experiência criativa,
baseada na pesquisa cotidiana, ou seja, na formulação constante de perguntas,
ao ver-se diante das questões, lacunas e vazios instaurados pelos próprios
processos de criação coletiva poderá construir, conduzido e apoiado pelo
artista-orientador, o conhecimento necessário para expressar-se artisticamente.
(...)
(FARINA, 2013)
O não-lugar das orientações
As orientações do programa vocacional
teriam, portanto, um caráter pedagógico? Sempre
acontece uma relação de ensino-aprendizagem ao contornar um objeto de estudo e
experimentá-lo através de um conjunto de perspectivas. Então o espaço da aula e
as orientações do programa vocacional se encontram em um ponto comum: um
ambiente onde transformações ocorrem. Outros modelos de convívios em grupo
também criam um espaço propício às transformações. No exemplo anterior da
orquestra, a obra do Mozart - encarada como objeto - passa por pelo menos três
perspectivas (cada uma devidamente escrita na partitura): a perspectiva da
regência, a perspectiva do solo e a perspectiva do acompanhamento. Parece
possível propor ainda uma quarta perspectiva: as relações de simultaneidade e
continuidade entre os membros do grupo musical. Essa quarta perspectiva dá
sentido às práticas individuais. No entanto, a orquestra tem funções delegadas
e cada artista experimenta apenas a perspectiva do saber. Se aventurar no não
saber significa uma nova relação com o processo, significa um aprendizado. Ao
lidar com o não saber a orientação ganha um intuito pedagógico, mas não se faz
arte nas orientações apenas pra aprender a fazer arte. O programa trata a arte
como arte e mesmo “não saber” fazer arte contribui para a criação.
Qual a legitimidade artística em não
saber fazer arte? Tal pergunta traz à tona os limites das
pessoas envolvidas no processo. Os dois sentidos da palavra limite se encontram
nessa situação: Limite no sentido da restrição (não saber fazer) e limite no
sentido da superação (objetivo). Em seu artigo para a revista Educar da UFPR, Yves de La Taille aborda
a palavra limite em ambos os sentidos pelos pontos de vista da moral e da psicologia.
(...) A palavra limite também é empregada em expressões
populares que remetem a superação, vitória, esforço. Assim, por exemplo,
dizemos de um atleta que “superou” seus próprios limites. Verificamos que tal
emprego da palavra não fala em ausência de limites, mas sim da existência
destes, cuja superação é admirável. (...) os limites no sentido restritivo
dependem daqueles que são superados (...). As virtudes – a superação dos
limites – podem tanto permitir que os deveres – os limites restritivos sejam de
fato obedecidos, como fazer com que não sejam interpretados de forma dogmática.
Pensar apenas nos limites restritivos na educação moral é condenar-se a uma
moral triste e na prática inoperante.
(Taille, 2002).
Há
duas justificativas para a presença de uma reflexão exclusiva da educação (não
exatamente da arte-educação) aqui. Primeiramente, o não-lugar da orientação
também se refere ao espaço da arte-educação, onde se aprende, se aperfeiçoa, se
restringe e se supera. Em segundo lugar, parece possível e necessário aplicar o
pensamento de Taille ao fazer artístico. Aqui os limites não se separam, a
atitude exigida caracteriza-se simultaneamente como delimitação e como fim. Na
condição de quem “não sabe”, se aventurar em um processo criativo traz ambos os
sentidos dos limites. Um olhar artístico-pedagógico justifica a atitude: o
fazer como parte do processo de aprendizagem. No entanto, há um resultado
estético na obra de qualquer pessoa e, como antes dito, interessa, além do
desempenho, a fruição na relação entre artistas, obra e ouvintes (ou público de
um modo geral). A boa música agrada, mas parece uma pretensão enorme dar a
responsabilidade do agrado apenas à boa performance. Quanto aos limites, no
encontro com eles cada artista lida com ambos os sentidos: restringir-se
(conforme necessitar) e superar-se (se aventurar fora da caverna).
Indivíduos de um grupo
De
volta à relação entre individualidade e todo, expressões coletivas podem contribuir com a busca pessoal de cada
membro? Podem atrapalhar? “Contribuir” e “atrapalhar” parecem verbos
inadequados a essa situação. De fato há uma influência mútua. A busca
particular de cada pessoa envolvida no processo molda o objeto de arte. Objetivos
e habilidades individuais recriam o modo de um grupo operar. A concepção, a
criação e o resultado final da obra em grupo acessam e podem transformar o modo
como alguém pensa em arte. Simultaneamente participar do coletivo significa identidade
em algum grau, a ponto de submeter-se a essa influência, ou melhor,
experiência. Em sua Nota sobre a
experiência e o saber da experiência, Jorge Larrosa discorre sobre a
necessidade de um gesto de interrupção e da autoexposição para acontecer uma
experiência, frequentemente impossibilitada pelo excesso de informação e
opinião, pela falta de tempo e pela confusão entre experiência e trabalho.
(...) A experiência, a possibilidade de que algo nos
aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase
impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar,
parar para escutar, olhar mais devagar, escutar mais devagar; parar para
sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião,
suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o
que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do
encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (...) O sujeito
da experiência é um sujeito “ex-posto”. Do ponto de vista da experiência o
importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a oposição (nossa
maneira de opormos), nem a imposição (nossa maneira de impormos), nem a
proposição (nossa maneira de propormos), mas a “ex-posição”, nossa maneira de
“ex-pormos”. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe,
ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experiência aquele
a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem
nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada
ocorre. (...)
(Bondía, 2002)
Nesse
ponto – onde o ensaio trata do conflito entre conjunto e integrantes – convém
lembrar a singularidade da experiência. Apesar do caráter coletivo dos processos,
cada artista tem a oportunidade de se submeter ao acontecimento da experiência.
(...) Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos
acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a
mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual
sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência
é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. (...)
(Bondía, 2002)
A
arte produzida em conjunto traz em si reflexos da identidade de cada artista.
Cada artista encontra no processo possibilidades de transformações em seu ser.
As transformações dos seres envolvidos na produção significam a emancipação por
meio da arte.
Na formação de um grupo onde cada qual
tem seu ego, em um não-lugar entre a arte e a educação artística, a obra
coletiva pode proporcionar experiências singulares, produções expressivas,
arte-aprendizagem e emancipação. Em alguma proporção esses aspectos respondem a
questão Por que se reunir nas orientações
do programa vocacional? Todavia, este ensaio propõe-se a ficar com a
pergunta e refletir os possíveis contextos levantados. Uma pergunta quase
retórica quanto essa não necessita de resposta, mas a reflexão proposta se faz
necessária ao programa, frequentemente pouco entendido.
"Marco Polo descreve uma ponte, pedra por
pedra.
- Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? - pergunta Kublai Khan.
A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra - responde Marco -, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta.
- Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
- Sem pedras o arco não existe."
- Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? - pergunta Kublai Khan.
A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra - responde Marco -, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta.
- Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
- Sem pedras o arco não existe."
(Calvino,
1972)
Referências bibliográficas:
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da
experiência. Universidade de Barcelona Espanha, 2002.
CALVINO, Italo. As Cidades invisíveis. 1972.
FARINA, A ET AL. As premissas pedagógicas: o material norteador. Revista Vocare:
Revista do programa vocacional, São Paulo, n. 3, 2013.
MARCONDES,
Danilo. Textos Básicos de Filosofia: dos
Pré-socráticos a Wittgenstein. 2ª ed. A
alegoria da caverna: A República, 514a-5147c, tradução de Lucy Magalhães.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
TAILLE, Yves de La. Uma interpretação psicológica dos limites do
domínio moral: os sentidos da restrição e da superação. Revista EDUCAR,
UFPR, Curitiba, n. 19, 2002.
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