quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

POR QUE SE REUNIR NAS ORIENTAÇÕES DO PROGRAMA VOCACIONAL?

Raphael de Paula Ribeiro
2015

O título deste ensaio contem dois conflitos implícitos em torno do porquê de se reunir: indivíduo X todo e aula de música X laboratório artístico. Vários aspectos das turmas do vocacional música do CEU Quinta do sol convergem para ambos os conflitos e circulam prováveis respostas para tal pergunta: a imagem de “aula de música” (como propaga o equipamento); a subjetividade da arte; a música em busca da concretude; as expectativas de cada participante; a troca de AO; o período sem orientações; os diferentes níveis de acesso à técnica entre os membros; as turmas subdivididas em pequenos grupos e separadas por “níveis” de conhecimento em música. O presente ensaio não pretende investigar esses aspectos, levantá-los possibilita a compreensão do contexto no qual se encontram as orientações e justifica a necessidade da reflexão aqui proposta. Apesar dos diferentes interesses e modos de contato com o conhecimento artístico, as pessoas dispostas a participar das orientações compartilham um objetivo comum: a relação com a música. Contudo, mesmo ao partir dessa proposição universal, o encontro com as diferenças se torna inevitável, cada pessoa constrói uma relação diferente com a música. Essas buscas pessoais e os diferentes níveis de acesso à técnica influenciam os fazeres musicais? Certamente, parece uma provável resposta de qualquer musicista ou músico experiente.

        Um grupo de indivíduos

Clarinetistas com maior grau técnico executariam melhor o primeiro movimento do “Concerto para clarinete” de W. A. Mozart, por exemplo. Intérpretes dessa obra, na tradição de concerto, dependem do acompanhamento orquestral com nível equivalente. Solistas e os demais membros de uma orquestra se unem para cumprir propósitos comuns: executar uma impecável performance do “Concerto para clarinete” pode pertencer à lista de propósitos. Alguém na condição de AO do programa vocacional também pode dar a mesma resposta, mas para o programa existe a real necessidade de buscar o aperfeiçoamento em prol da obra ou do devir? Parece minimamente necessário desconstruir a ideia da melhor expressão, sem fazer qualquer juízo de valor sobre a chamada “música erudita”. Interessa, além do desempenho, a fruição na relação entre artistas, obra e ouvintes.
Então saber ou não saber improvisar, compor, escrever letras, cantar ou tocar algum instrumento interessa ao processo criativo? Mudar a perspectiva sobre um objeto permite sua maior compreensão. Assim ensina Platão em sua Alegoria da caverna. O texto fala da diferença entre dois tipos de sujeitos: O primeiro tipo trata-se de um grupo composto de seres acorrentados em uma caverna restritos a uma percepção de mundo através de sombras projetadas na parede. O segundo tipo revela a dor de um sujeito retirado da caverna no processo esclarecedor de subir a montanha e conhecer o mundo.

(...) Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à estrada na prisão, a luz do fogo que ilumina a caverna à ação do sol. Quanto à subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata da ascensão da alma até o lugar inteligível, (...) nos últimos limites do mundo inteligível aparece-me a ideia do Bem, que se percebe com dificuldade, mas que não se pode ver sem concluir que ela é a causa de tudo o que há de reto e de belo. No mundo visível, ela gera a luz e o senhor da luz, no mundo inteligível ela própria é a soberana que dispensa a verdade e a inteligência. Acrescento que é preciso vê-la se quer comportar-se com sabedoria, seja na vida privada, seja na vida pública.
(MARCONDES, 2000)

Cria-se no processo artístico diferentes relações com o objeto de arte (ou de estudo da arte). No programa vocacional, a produção se dá por quem tem mais técnica e por quem se envolve em experiências com pouca familiaridade, pelas perspectivas do saber e do não saber, em outras palavras, visões do mundo dentro e fora da caverna.

(...) Ao contrário dos parâmetros da pedagogia formal, baseados no desenvolvimento progressivo e linear de seus alunos a partir de conhecimentos administrados pelo professor tradicional, o Programa Vocacional pretende adotar como metodologia a instauração de processos criativos. Sob tal pedagogia, o artista vocacionado não necessita da aquisição prévia de conhecimentos, técnicas ou habilidades, mas, através da experiência criativa, baseada na pesquisa cotidiana, ou seja, na formulação constante de perguntas, ao ver-se diante das questões, lacunas e vazios instaurados pelos próprios processos de criação coletiva poderá construir, conduzido e apoiado pelo artista-orientador, o conhecimento necessário para expressar-se artisticamente. (...)
(FARINA, 2013)

O não-lugar das orientações

As orientações do programa vocacional teriam, portanto, um caráter pedagógico? Sempre acontece uma relação de ensino-aprendizagem ao contornar um objeto de estudo e experimentá-lo através de um conjunto de perspectivas. Então o espaço da aula e as orientações do programa vocacional se encontram em um ponto comum: um ambiente onde transformações ocorrem. Outros modelos de convívios em grupo também criam um espaço propício às transformações. No exemplo anterior da orquestra, a obra do Mozart - encarada como objeto - passa por pelo menos três perspectivas (cada uma devidamente escrita na partitura): a perspectiva da regência, a perspectiva do solo e a perspectiva do acompanhamento. Parece possível propor ainda uma quarta perspectiva: as relações de simultaneidade e continuidade entre os membros do grupo musical. Essa quarta perspectiva dá sentido às práticas individuais. No entanto, a orquestra tem funções delegadas e cada artista experimenta apenas a perspectiva do saber. Se aventurar no não saber significa uma nova relação com o processo, significa um aprendizado. Ao lidar com o não saber a orientação ganha um intuito pedagógico, mas não se faz arte nas orientações apenas pra aprender a fazer arte. O programa trata a arte como arte e mesmo “não saber” fazer arte contribui para a criação.
Qual a legitimidade artística em não saber fazer arte? Tal pergunta traz à tona os limites das pessoas envolvidas no processo. Os dois sentidos da palavra limite se encontram nessa situação: Limite no sentido da restrição (não saber fazer) e limite no sentido da superação (objetivo). Em seu artigo para a revista Educar da UFPR, Yves de La Taille aborda a palavra limite em ambos os sentidos pelos pontos de vista da moral e da psicologia.

(...) A palavra limite também é empregada em expressões populares que remetem a superação, vitória, esforço. Assim, por exemplo, dizemos de um atleta que “superou” seus próprios limites. Verificamos que tal emprego da palavra não fala em ausência de limites, mas sim da existência destes, cuja superação é admirável. (...) os limites no sentido restritivo dependem daqueles que são superados (...). As virtudes – a superação dos limites – podem tanto permitir que os deveres – os limites restritivos sejam de fato obedecidos, como fazer com que não sejam interpretados de forma dogmática. Pensar apenas nos limites restritivos na educação moral é condenar-se a uma moral triste e na prática inoperante.
(Taille, 2002).

Há duas justificativas para a presença de uma reflexão exclusiva da educação (não exatamente da arte-educação) aqui. Primeiramente, o não-lugar da orientação também se refere ao espaço da arte-educação, onde se aprende, se aperfeiçoa, se restringe e se supera. Em segundo lugar, parece possível e necessário aplicar o pensamento de Taille ao fazer artístico. Aqui os limites não se separam, a atitude exigida caracteriza-se simultaneamente como delimitação e como fim. Na condição de quem “não sabe”, se aventurar em um processo criativo traz ambos os sentidos dos limites. Um olhar artístico-pedagógico justifica a atitude: o fazer como parte do processo de aprendizagem. No entanto, há um resultado estético na obra de qualquer pessoa e, como antes dito, interessa, além do desempenho, a fruição na relação entre artistas, obra e ouvintes (ou público de um modo geral). A boa música agrada, mas parece uma pretensão enorme dar a responsabilidade do agrado apenas à boa performance. Quanto aos limites, no encontro com eles cada artista lida com ambos os sentidos: restringir-se (conforme necessitar) e superar-se (se aventurar fora da caverna).

Indivíduos de um grupo

        De volta à relação entre individualidade e todo, expressões coletivas podem contribuir com a busca pessoal de cada membro? Podem atrapalhar? “Contribuir” e “atrapalhar” parecem verbos inadequados a essa situação. De fato há uma influência mútua. A busca particular de cada pessoa envolvida no processo molda o objeto de arte. Objetivos e habilidades individuais recriam o modo de um grupo operar. A concepção, a criação e o resultado final da obra em grupo acessam e podem transformar o modo como alguém pensa em arte. Simultaneamente participar do coletivo significa identidade em algum grau, a ponto de submeter-se a essa influência, ou melhor, experiência. Em sua Nota sobre a experiência e o saber da experiência, Jorge Larrosa discorre sobre a necessidade de um gesto de interrupção e da autoexposição para acontecer uma experiência, frequentemente impossibilitada pelo excesso de informação e opinião, pela falta de tempo e pela confusão entre experiência e trabalho.

(...) A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, olhar mais devagar, escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (...) O sujeito da experiência é um sujeito “ex-posto”. Do ponto de vista da experiência o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a oposição (nossa maneira de opormos), nem a imposição (nossa maneira de impormos), nem a proposição (nossa maneira de propormos), mas a “ex-posição”, nossa maneira de “ex-pormos”. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre. (...)
(Bondía, 2002)

        Nesse ponto – onde o ensaio trata do conflito entre conjunto e integrantes – convém lembrar a singularidade da experiência. Apesar do caráter coletivo dos processos, cada artista tem a oportunidade de se submeter ao acontecimento da experiência.

(...) Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. (...)
(Bondía, 2002)

        A arte produzida em conjunto traz em si reflexos da identidade de cada artista. Cada artista encontra no processo possibilidades de transformações em seu ser. As transformações dos seres envolvidos na produção significam a emancipação por meio da arte.
        Na formação de um grupo onde cada qual tem seu ego, em um não-lugar entre a arte e a educação artística, a obra coletiva pode proporcionar experiências singulares, produções expressivas, arte-aprendizagem e emancipação. Em alguma proporção esses aspectos respondem a questão Por que se reunir nas orientações do programa vocacional? Todavia, este ensaio propõe-se a ficar com a pergunta e refletir os possíveis contextos levantados. Uma pergunta quase retórica quanto essa não necessita de resposta, mas a reflexão proposta se faz necessária ao programa, frequentemente pouco entendido.

"Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
- Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? - pergunta Kublai Khan.
A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra - responde Marco -, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta.
- Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
- Sem pedras o arco não existe."
(Calvino, 1972)





















        Referências bibliográficas:

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Universidade de Barcelona Espanha, 2002.

CALVINO, Italo. As Cidades invisíveis. 1972.

FARINA, A ET AL. As premissas pedagógicas: o material norteador. Revista Vocare: Revista do programa vocacional, São Paulo, n. 3, 2013.

MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: dos Pré-socráticos a Wittgenstein. 2ª ed. A alegoria da caverna: A República, 514a-5147c, tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

TAILLE, Yves de La. Uma interpretação psicológica dos limites do domínio moral: os sentidos da restrição e da superação. Revista EDUCAR, UFPR, Curitiba, n. 19, 2002.


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