quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A NECESSIDADE DE ERRAR: O ARTISTA ORIENTADOR EM MEIO AO TRANSITO ARTÍSTICO E PEDAGÓGICO NOS ENCONTROS

(Re) começar poderia ser premissa de qualquer trabalho artístico olhar duas vezes para o que se pretende e novamente voltar a olhar. Olhar para o caminho, redesenhar os próprios passos, se perder em meio as ansiedades, errar e voltar a errar.
Experimentar-se estrangeiro de seu próprio território, reavivar o frescor das experiências e redescobrir possibilidades na potência dos encontros, às vezes nos mesmos lugares, com as mesmas pessoas, as mesmas questões e eu, novamente eu... Ensimesmado, ou pelo menos cheio de certezas incertas que construo e carrego como uma armadura e, de repente um encontro. A brilhante armadura se desfaz, vira um trapo incapaz se quer de proteger do frio do medo de não saber mais o que fazer, de não reconhecer o chão que se pisa. Medo da potência dos encontros.
Eu artista, na função de orientador escolho o espaço, pesquiso linguagens, mas não posso escapar da dura beleza, da urgência e crueldade dos encontros. Como se fosse privilegio meu... ninguém pode!  Quando isso acontece, quando nossa brilhante armadura se desfaz só nos resta a dura tarefa de nos deixar atravessar. E como é difícil, como é duro e como é necessário. Se crescer dói, sofro pelo querer ser.
Os encontros, quando potentes, nos atravessam e sempre levam algo de nós e sem que ao menos possamos perceber já fazemos parte de outra subjetividade, mas também, mesmo sem perceber deixam algo em nós. O que faço com tudo isso que fica pulsando, latejando como uma ferida aberta? Sem encontrar resposta, simplesmente sigo com mais uma certeza: novos encontros virão e novamente seguirei sem saber o que fazer quando atravessarem meu caminho. Os muitos atravessamentos nos constroem e criam armaduras reluzentes de certezas tão solidas que duram, no máximo, até o próximo encontro.

"Este processo se iniciou da observação de valores que indivíduos, de alguma forma, conseguiram desenvolver mesmo em circunstâncias insólitas" (José de Abreu- morador de rua).

DOS ENCONTROS NO PROGRAMA DE BRAÇOS ABERTOS, RASTROS DAS PRIMEIRAS AÇÕES
Estabelecemos como estratégia que, ainda sendo uma equipe humana extremamente reduzida (somos apenas três artistas, dois orientadores e um coordenador), tínhamos que nos fazer ver, ocupar o espaço com nossa presença para nos inserir no meio e estabelecer vínculos com os frequentadores da Tenda.
Como no nosso trabalho desenvolvemos estratégias e procedimentos que pudessem interferir na dinâmica e possibilitassem novos olhares para velhos hábitos. Assim realizamos:
-Fazer-se presente, dividimos nossos horários de modo que estávamos na tenda praticamente todos os dias da semana. Esta ocupação teve o objetivo de mapear o espaço e o entorno, além de nos fazer conhecidos no meio, o que possibilitaria estabelecer uma relação e dialogo; A primeira ação clara é estabelecer vínculo com os frequentadores da tenda.
-Uma roda de samba na rua. Esta ação experimentou interagir com uma cultura já instaurada no local. Apuramos que este samba já acontecia havia algum tempo. Embora este possa funcionar como um resgate de potencialidades artísticas (cantores, instrumentistas, artistas plásticos e dançarinos), este também vem se transformando e ganhando características do “fluxo”;
-Corpos em movimento na entrada da tenda. Experimentamos um alongamento na entrada da tenda e foi possível perceber que embora algo mais calmo e diferente da dinâmica comum chame a atenção e desperte novos olhares, ele logo perde sua força por ser constantemente interrompido; 
-Organização de uma bateria de samba que acompanhou um trio elétrico nas ruas do bairro. Nesta ação pegamos um gancho em um evento realizado por outras organizações. Percebemos que estes eventos são realizados de forma isoladas da tenda, sem articulação entre as várias secretarias que atuam no local e embora tenham um forte poder de modificar a dinâmica local acontecem como ações muito pontuais e sem continuidade, por tanto não geram vínculos;
-Intervenção no espaço. Inserção de corpos na parede com registro do contorno do corpo. Os registros feitos em giz transformaram a paisagem da tenda, chamando a atenção do olhar e também funcionou como um disparador de diálogo;
-Acompanhamento das equipes que trabalham varrendo as ruas. Com o objetivo de conhecer de perto e de fato quem é e onde está a população com quem deveríamos está lidando. Esta ação nos fez enxergar uma possibilidade de realmente dar início a um trabalho mais direto com esta população e de certa forma diminuir as “distancias” entre as ações já implantadas.

SOBRE EXPERIÊNCIAS QUE GERAM ENCONTROS, QUE POSSIBILITAM ESPAÇOS, QUE GERAM EXPERIÊNCIAS NOS FLUXOS DO TEMPO
Após muitas investidas nestes meses de atuação no Programa de Braços Abertos, cavamos espaços, travamos embates e nos debatemos em torno de nossas próprias ansiedades. Como consequência criamos um mecanismo de trabalho, uma metodologia que pudesse dar vasão aos nossos anseios e expectativas. O PAS (Programa Artístico Singular), em contraponto a uma ação coletiva, mais sem nega-la como possibilidade, visa estimular e desenvolver ações artísticas valorizando as singularidades de cada desejo. Seu desenvolvimento baseia-se em mapear as potencialidades artísticas do território e desenvolver conjuntamente um programa a ser realizado, executar e registrar todo o processo.
Nosso primeiro programa foi desenvolvido a partir do desejo do Sr. José de Abreu, morador de rua, ex-usuário de crack e profundo conhecedor da cultura aborígene (ver ficha do PAS). Seu desejo era o de criar um vídeo ensinando a confeccionar um didgeridoo- instrumento aborígene de sopro utilizado em práticas de meditação- além da realização de oficinas onde pudesse difundir este instrumento e a cultura que o envolve. Desenvolvemos o programa e da compra do bambu, material utilizado na confecção do instrumento, a postagem do vídeo na internet o processo está registrado por meio de vídeos e fotos (https://www.youtube.com/watch?v=ph_kld5ptVA).
O outro processo em desenvolvido foi com a vocacionada Tais Madureira, usuária e beneficiária do programa de varrição, seu desejo erra desenvolver um roteiro de uma peça teatral ou documentário expondo as muitas visões de mundo que circundam a região da "Cracolândia", este processo culminou com a elaboração de escritos intitulados “Janelas da rua”. Este material foi disponibilizado para toda a equipe do programa via e-mail e pode ser consultado no relatório final enviado pelo Artista Orientador Rafael Presto.

UM... DOIS... TRÊS E DERIVA, SOBRE A NECESSIDADE DE ERRAR...
É preciso gerar protocolos, deixar rastros, e acreditar neste dispositivo como forma de articular-ações.
Nosso trabalho na tenda e região da luz se desenvolveu em torno de um mapeamento das potencialidades artísticas e na busca de um espaço possível à realização de atividades condizentes com os princípios que norteiam o Vocacional. Assim, o lugar que ocupamos foi justamente o de articular-ações que atravessam este espaço, tendo como foco principal gerar vínculos com os usuários.
Em meio ao fluxo constante de atravessamentos que invadiram nossa experiência, nos debruçamos sobre nossos próprios rastros, geramos protocolos e desdobramos nossos erros assim, invertermos a lógica e vimos que frustração é só uma parte de Ação.

SOBRE A CONSTÂNCIA DA DERIVA ÀS SUBJETIVIDADES DOS ENCONTROS
Alex Eliseu da Silva (beneficiário do programa), Simone Margarida Siqueira (beneficiaria do programa), Tais Madureira (cantora, escritora e extremante inteligente), Donizete Garcia (cantor gospel), Cristiane Mendes Frante (beneficiaria do programa), José Gilmar da Silva Junior (beneficiário do programa), José de Abreu (profundo conhecedor da cultura Asteca, sopra e fabrica didgeridoo), Mc Latinha (compositora de rap e funk), Tia (ex-bailarina), José Roberto (poeta), Bruna (travesti, pessoa muito bem humorada e espontânea), Zélia (gerente da tenda), Tiquinho (voluntário), Odara (voluntário), Raona (CEDECA Interlagos), Laura (CEDECA Interlagos), Daniel (CEDECA Interlagos), Rafael Presto (companheiro de Guerrilha), Ieltxu (companheiro de guerrilha), Guerra (morador de rua), Felipe (morador de rua), Eliane (profissional da saúde), Joana (assistente social), Tatiane (assistente social), Jamaica (morador de rua), Cigano (morador de rua), Evandro Martins (percussionista, já fez teatro e dança, conhece vários artistas da Zona Oeste), Diego (artista visual, desenha, grafite, pinhole e foto com caixinha de fósforos) é de Bonito (MS), Fofão (Gerson- Começou a participar do show da Virada), Cao-x (rapper e compositor começou a participar do show da Virada), Tia (Sandra Aparecida Lopes dançarina, mãe de rua), Lucia (vó de rua), Yulli Prado/Renata (travesti- Maranhão, conhece danças dos orixás), Rogerio (artista que pinta com os dedos) [vídeo], Wagner (participou de coral na oficina do projeto Criança Esperança, na zona sul), Michel (foi dono de uma escolar de música em Santo André), Luís Fernando (artista plástico), Teca (instrumentista toca pandeiro e recita poemas), Rafaela Lima (dança de salão), Williamon da Silva Costa (lutador de capoeira). Pessoas! Não usuários. Universos singulares que atravessaram nosso caminho destruíram nossa brilhante armadura de certezas incertas e nos fizeram sentir estrangeiros em “nosso” próprio território. Seguimos caminhando e construindo um caminho na expectativa de novos encontros sem que nada nos pertença, simplesmente nos atravessa no Tempo... Desejo e Pertencimento, pois:
Nada me pertence.
Se algo me pertence não só a mim pertence, mais simplesmente transita por mim, assim como estou e agora já não estou mais...
Estou parte do fluxo continuo que me atravessa e só o que me pertence é o desejo de me entregar e ser fluxo também!
Flutuar pelas formas e, mesmo que por um instante, habitar outras formas.
Assim como estou, e agora já não estou mais, tudo é transitório e tudo passa...
Tudo o que eu sou só agora sou. E agora já não sou mais.
Temporariamente.

Márcio Dantas Silva

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1 Comentários:

Às 9 de janeiro de 2016 às 15:02 , Blogger Yasmin disse...

Como faço para ter noticia sobre uma das beneficiarias? Ela é minha mãe

 

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