terça-feira, 8 de dezembro de 2015

“Paço Cultural Júlio Guerra ou Casa Amarela”
Artista- orientadora de dança- Angélica Rovida

Terceiro ano no mesmo equipamento. ‘O três’ me dá um sentido de completude, início, meio e fim. Fim de ciclo? Vocacional, processos criativos sem fim.... 
Vou beber um pouco na teoria de Pitágoras, para quem tudo era governado pelos números, a harmonia do universo é resultante de uma relação matemática.  Segundo sua teoria, o  “Homem é um Universo em escala reduzida e, no Universo, ele via um grande Homem. Ele chamou-lhes respectivamente Microcosmos e Macrocosmos. Assim, o Homem como uma célula contida no Todo, seria um reflexo do ternário universal constituído de Corpo, Alma e Espírito”. O 3 “ primeiro número que representa um símbolo do cosmos’, que era visto como uma  unidade de opostos, harmonia de elementos finitos e infinitos.
Aqui faço uma analogia :O Vocacionado – microcosmo. A unidade de opostos- a heterogeneidade que os vocacionados trazem, as diversas realidades, experiências, infinitas possibilidades de criação.

1-Uno- início

A Chegada
 E eu que achei que a vida estivesse pronta e a casa arrumada! O que vou encontrar?
A idéia de estar em local conhecido permeia minha expectativa de retorno ao Programa, ao mesmo equipamento, pelo 3º ano. Porém, sei que será diferente, assim desejo, um novo início. Mesmo que haja um vislumbre de um ponto de partida, deixado pela minha atuação nos anos anteriores, as imprevisibilidades, os desafios geram movimentos de desejos dentro de mim. Vou considerar o que construímos, mas vou tentar reformar; construir novas janelas, portas, espaços... Cômodos, acomodação, sair deste estado. Estado do passado sedimentado.

A maioria dos vocacionados retorna: o grupo Yellow House (que se formou na Casa em 2013) e a turma caracterizada por vocacionados da terceira idade está maior, permanece com a maioria dos vocacionados do ano anterior. Contudo, as tintas do hoje agora tem outra cor e, parafraseando Kierkgaard, viver é revisitar o passado muitas vezes, “mas só se vive para diante”. Sigo, em frente...

Porém, como nos anos anteriores, o coordenador do equipamento salienta, pela terceira vez: “cuidado com o piso da sala de cima, não pode sofrer impacto, se for dançar não salte, não pule...” E esta é a Casa Amarela, patrimônio cultural, tombado!
Os encontros têm que ser desenvolvidos na sala de baixo, local onde entram e saem pessoas que, muitas vezes, interferem na fluência da minha orientação. E para os vocacionados fica difícil estabelecer a concentração!!. Por outro lado, o aspecto positivo, é  que aproveito para divulgar o Programa, no dia a dia dos encontros. Para pessoas que passam, assistem, muitas  aderem ao Vocacional.

2- Dualidade- eu e o outro
Encontro com vocacionados e equipe

A Espiral
Meus  direcionamentos dos encontros é muito influenciada pela cultura oriental, numa forma de ação circular. Identifico-me com a forma/ pensamento da língua árabe. Então, vou me servir de uma personagem: eu, AO-Sherazade com Atistas-vocacionados e  as  narrativas espiraladas dos encontros, as estórias sem fim, processos que se amalgamam e ficam em aberto, no sentido de criação. Concebo esta interação como um redemoinho de experimentações, no qual inicio de um todo, um geral, e depois desenvolvo as para as partes.  A noção de “todo”é  anterior à noção de “partes”.
Assim, neste todo , em uma espécie de redemoinho, espiral de conteúdos, pretendo apresentar diversidades, leque de referências, para pluralidade de realidades que os vocacionados trazem. Estimo que esta espiral de idéias os absorva em movimentos ascendentes e descendentes, em aproximação e afastamento por identificação ou estranhamento que encontram pelo caminho. E que me levem junto! Em alguns momentos os redemoinhos, tornam-se tornados de idéias, fluxos, surge o inusitado. E deste misto de experimentações, muito do que vem é desconhecido, novo para o processo criativo e nos lança ao risco: e eu com eles.
Quem quer se arriscar?? Eu. Vou agarrar esta chance.

Risco e oportunidade:

Rir é correr risco de parecer tolo. 
Chorar é correr o risco de parecer sentimental. 
Estender a mão é correr o risco de se envolver. 

Expor seus sentimentos é correr o risco
de mostrar seu verdadeiro eu. 

Defender seus sonhos e idéias diante da multidão
é correr o risco de perder as pessoas. 

Amar é correr o risco de não ser correspondido. 
Viver é correr o risco de morrer. 

Confiar é correr o risco de se decepcionar. 
Tentar é correr o risco de fracassar. 

Mas os riscos devem ser corridos, 
porque o maior perigo é não arriscar nada. 

Há pessoas que não correm nenhum risco, 
não fazem nada, não têm nada e não são nada. 

Elas podem até evitar sofrimentos e desilusões,
mas elas não conseguem nada, não sentem nada,
não mudam, não crescem, não amam, não vivem. 

Acorrentadas por suas atitudes, elas viram
escravas, privam-se de sua liberdade. 

Somente a pessoa que corre riscos é livre!- Sêneca.

-Abraçando linguagens-
Nos giros da espiral, me lanço no espaço do risco, vou aproveitando a troca com equipe diversificada; dança, música , teatro. Experimento novas ações nos saraus itinerantes: como na performance improvisada, tendo o corpo pintado pela  artista-orientadora Rosana Antunes e o José, artista- vocacionado de artes visuais. https://www.facebook.com/video.php?v=927419850665892&theater

Acho que tenho um tesouro: o fato da maioria dos vocacionados, da Casa Amarela, frequentarem os encontros de dança, teatro e música. São vários vocacionados em comum, com AOs de outras linguagens. Sempre acreditei que o programa cresceria muito assim, nas relações e trabalhos interlinguagens.

3- A terceira dimensão. Trindade

 AO, Artista-vocacionado e o lugar de encontro. O que se forma neste espaço? O que resulta destes locais de trocas, experiências. O 1 e o 2 formando o 3. Formando os frutos desta associação.
Artista Orientador , Artista Vocacionado em encontros, processos criativos que formam um ‘terceiro lugar’,  que se multiplica em várias dimensões.
Dos caminhos percorridos, dos erros e acertos, de construção deste terceiro local:
Para o grupo Yellow House os temas principais de pesquisa foram:
‘o lugar da dança e a dança do lugar’. “Sentir, e não pensar a dança’,
‘Afinal, o que é a dança ?’ Quebra de padrões’.
Para turma de senhoras, este ou estes lugares reverberaram muito, a partir da experiência com as mandalas.
Inspirada pelas mandalas que  significam, em essência,  círculo sagrado, aproximo a filosofia oriental aos preceitos do Vocacional. Em analogia: o dentro e fora-  eu,corpo- eu, mundo Círculo- espaço vazio e espaço preenchido de existência.

“ Merleau-Ponty (1999) sugere que uma maneira de definir nosso “eu” existencialmente, a partir de nossa espacialidade, ou seja, nossa relação eu-espaço: espaço vivido, espaço “fora” e “dentro” de mim, noção de “todo” anterior à noção de “partes”aconteça de tal modo que nos tornamos narradores de nós mesmos.”-  Marina Marcondes Machado

Observei este ano um movimento bem mais expressivo em relação à autonomia desta turma:  à apropriação do espaço, articulação de ações , ensaios organizados pelas próprias vocacionadas.

Conhecendo o Patrimônio, ganhando em parceria.

Outro fato que fortaleceu este estado de pertencimento, principalmente, para a turma da terceira idade, foi a parceria que estabeleci com a socióloga Ana Chagas (que desenvolve, atualmente, pesquisa dos patrimônios materiais e imateriais de Santo Amaro). Foi um privilégio conhecê-la e poder trabalhar junto com ela. Nos diálogos que traçamos entre sua pesquisa e os preceitos do Programa, em especial: a ocupação e apropriação dos espaços públicos, bem como a preservação dos bens materiais e imateriais. A comunidade enquanto agente cultural. O empoderamento e a valorização das vozes dos vocacionados.
Percebo que, em relação aos anos anteriores, houve um significativo ganho, entre outros. Hoje os vocacionados se reconhecem mais como parte da história do lugar, potentes agentes transformadores, culturais. Através dos processos, as descobertas acontecidas nos encontros também foram fortalecidas nos diálogos com o Projeto sobre patrimônio cultural, desenvolvido pela Ana. A partir das informações que ela nos trouxe, ganhamos forças na busca de achar uma solução que: concilie a reforma do equipamento com a preservação das atividades culturais que lá acontecem.
Ela montou uma exposição na Biblioteca Belmonte, sobre os relatos das senhoras e eu orientei a conexão destas experiências, em forma de processo criativo, porque percebi o quanto fazia sentido a conversa entre nossas pesquisas. Segue um pouco o registro deste trabalho:

Acredito que agora concluo um ciclo neste equipamento. Pela minha experiência, em 8 anos no Programa, acho que o tempo de “arredondar o trabalho com vocacionados”, o tempo interessante para, de fato construir de modo mais consistente, são 3 anos. Para mim este é o tempo da completude. Aqui também retomo, finalizando com Pitágoras, na força do 3, da   trindade. E deste tempo no mesmo equipamento, deixo o legado de provocar o inicio de outro ciclo. Quando instigo os vocacionados a lutarem pela preservação do espaço em que desenvolvem seus processos criativos, a um olhar mais cuidadoso ao Paço Cultural Júlio Guerra, ou a Casa Amarela, onde se fomenta muito a ação cultural, espaço público que concentra tantas pessoas, reúne a comunidade. Neste ciclo que se encerra para mim, neste lugar, e ao mesmo tempo, se abre para os vocacionados (porque se percebem enquanto agentes potentes na preservação do patrimônio em que estão) no movimento de lutarem por uma restauração do equipamento, sem perder o espaço de cultura. Na articulação e autonomia que conquistaram, meu incentivo a continuarem sua busca, a perseguirem seus desejos numa espiral sem fim.

“O que precisa nascer
tem sua raiz em chão de casa velha..
À sua necessidade o piso cede,
estalam rachaduras nas paredes,
os caixões de janela se desprendem.
O que precisa nascer
aparece no sonho buscando frinchas no teto,
réstias de luz e ar.
Sei muito bem do que este sonho fala
e a quem pode me dar
peço coragem.’


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