domingo, 6 de dezembro de 2015

Ensaio 2015 - JULIANA MACHADO - Biblioteca Castro Alves

Ensaio de pesquisa

Vocacional literatura
Biblioteca Castro Alves
Juliana Mado


O jardim da Biblioteca Castro Alves existe - de existir ele me conforta, me exalta, mas também me provoca. Algumas vezes cedi à sua provocação, fui ao seu encontro e levei meu parceiros. Ele nos recebeu muito bem, o sol e o calor que lhe faziam serventia também nos incluiu e acolheu.
Mas quase sempre estamos dentro da Biblioteca Castro Alves, continuamos lá, fingindo estar alheios ao jardim. É que lá dentro, além de seguras e duras mesas e cadeiras, também tem uma luta. Tomamos parte na luta, que é quase uma guerra, a guerra contra o vazio. Betânia desesperadamente luta, Cecília docemente, mas não menos guerreira, preenche, cria estofo. Divina limpa o que não está sujo, mas que vivifica com o pano, vassoura, espanador (aliás, frenético espanador). Valdir, com a conivência tão afeita dos homens, cede mais ao vazio. Raquel, sem muito alarde, organiza, cataloga, atende, tacitamente faz e acontece.
O Vocacional na Biblioteca Castro Alves veio como mais uma ferramenta na luta contra o vazio. Fazemos parte dessa luta, eu e quase todos os vocacionados, poucos e bravos parceiros. Tereza, uma delas, talvez a mais dedicada parceira, é peça fundamental dessa luta, ela frequenta assiduamente a Biblioteca Castro Alves, participa de todos os eventos que lá acontecem, conversa animadamente com todos e quer muito ver a Biblioteca cheia, viva. Conta que há alguns anos era lotada, fazia-se fila para usar suas mesas, mas que depois com uma má e antipática gestão, a biblioteca esvaziou-se. Tereza representa o sábio flaneur, o ocioso produtivo, uma figura bem rara numa cidade e num tempo como o que vivemos. Gil, esse menos assíduo da Biblioteca, mas muito ativo como vocacionado, se compadece da luta de Betânia, quer ajudá-la, reconhece que é preciso “sacudir” aquele lugar e tenta a sua maneira colaborar na divulgação. Cleuza é público frequente, sempre papeando com um e outro, falante e comunicativa que é, além de grande entusiasta do crochê[1], atividade que também acontece às terças-feiras. Desde o início deixou claro que não se dá muito bem com a leitura e a escrita, mas estava lá e foi de fato uma revelação com seus textos - Cleuza, a que odeia ler, mas que escreve e não sai da biblioteca.  

Também não amo o vazio, também ele me corta. Os números baixos falam muito alto, cutucam, é preciso que venham os números altos, imponentes e desejados. Mas o vazio, assim como o silêncio, me flertam e flertam sobremaneira com a literatura. Nisso obviamente habita pelo menos uma contradição: quero ter muitos vocacionados, quero que todos queiram participar do Vocacional Literatura - este que tenta sofregamente cumprir o seu papel de ferramenta contra o vazio naquele lugar - quero produzir, quero que produzam, mas confesso: adoro o silêncio e a paz que fazem terreno para a palavra.

Sobre isso e sobre o que temos trabalhado seguem algumas reflexões:
Quando contam uma para outra suas histórias, é o silêncio do escutar que recebe e puxa as memórias.
Quando olho e conto, é o vazio entre eu e o outro que tenho que atravessar, com calma e entrega.
Quanto leio, ah quando leio! Até as baratas sabem quando alguém está lendo, absorto e alheio, largo no silêncio, propício à sua passagem.
São muitas vozes, muitas palavras, muito barulho na mudez do silêncio de um ser vivo prestes a falar, olhar, fazer, escrever.
Toda atividade aqui no Vocacional Literatura da Biblioteca Castro Alves, quer ser receptáculo deste silêncio, deste vazio, não o que corta, mas o que dança com a palavra.

Porém, a realidade do Vocacional é que os encontros, chamados de orientações, são feitos de encontros mesmo. Imagino que alguns grupos já tenham esse encontro consolidado ou pelo menos vivenciado, de forma que a ansiedade por formar laços já não seja tão forte. Mas ali onde atuo, tudo está se construindo, sobretudo as relações. Dessa forma, é parte muito importante do trabalho essa formação do grupo, essa construção lenta e contínua da teia que envolve a todos. É bonita e às vezes um pouco sofrida essa construção. O nosso grupo, formado por senhoras, que têm muitas coisas a contar todos os dias e que guardam a alegria de compartilhar (ainda bem!), muitas vezes demora a assentar a energia e entrar na proposta artística. O que penso disso? Penso que também é um momento importante contar coisas ordinárias, dar risadas, trocar umas dicas de coisas da vida para depois atacar com uma atividade planejada. Por vezes há uma empolgação com esse primeiro momento e então a ansiedade quem cria sou eu, de parar tudo, silenciar e começar a proposta. Outras vezes, é desse momento inicial que surge uma proposta, uma ideia de caminho das coisas.

O projeto que trilhamos nessa turma a que me refiro tem como norte a transmissão da experiência. Acredito que aconteceu um casamento feliz entre uma artista orientadora que tem como pesquisa justamente essa transmissão e seu desdobramento com a performance narrativa e uma turma de pessoas com muita experiência de vida e em geral, com muita disponibilidade para narrar. O desafio principal foi a escrita. Transitamos entre:
1.     o compartilhar das experiências,
2.     a performance narrativa com total liberdade para criar a partir da realidade e
3.      a experiência de escrever, investindo ainda mais nessa liberdade.
Assim, foram essas três frentes que orientaram o projeto “Colcha de memórias”. E, obviamente, trabalhamos com algumas referências, como Zélia Gatai e Ecléa Bosi.

Porém, o mais instigante do projeto foi a percepção que pouco a pouco o grupo foi tendo do processo criativo que elas mesmas eram capazes de realizar. Lidar com a memória e com a subjetividade como matéria para criações artísticas parecia ser algo bem distante e estranho àquelas senhoras, mas cada uma a seu tempo conseguiu virar a chavinha e começar a se divertir com tudo isso. Pelos vídeos que fiz delas narrando é possível perceber essa transformação: o simples contar uma história, depois o contar com mais expressividade e por fim o prazer de inventar e performar.
Quando chegamos na fase da escrita, é realmente o momento mais cheio de entraves. As dificuldades vão desde a ortografia até a construção de períodos compreensíveis. Muitas vezes se torna bem interessante a forma livre da escrita de algumas, uma espécie de escrita espontânea, como se não houvesse barreira entre o falar e o escrever. Para esse momento, lemos um bocado, trouxe referências literárias e instrutivas e partimos para a produção. Principalmente nessa fase entra em cena o meu papel de educadora, que transita entre estimular, elogiar, levantar os pontos positivos e corrigir, criticar.
Como sabemos, apesar de as vezes até esquecermos, escrever é uma linguagem extremamente sofisticada e cheia de códigos. Ao longo dos séculos a escrita se impôs como um dos meios de comunicação mais confiáveis e elitizados. Não foi sempre assim. Nos estudos de Paul Zumthor, medievalista e documentarista, que pesquisou a fundo a voz poética dos narradores e cantadores daquele período, ele constata
... o prestígio da voz em performance até o século XV ou XVI na Europa, da comunicação pela palavra falada, e não só da comunicação, mas do sentido de identidade que ela cria, de sua demanda de representar o coletivo e instaurar nos grupos uma unidade da qual se alimenta a tradição.
... Ele ainda afirma que houve, para a nossa surpresa, uma resistência e até mesmo um combate à escrita até o século XVI ou XVII. Por isso, nos textos escritos dessa época torna-se difícil separar “ficção” e “realidade histórica”. Elas procedem, em seu conjunto, de uma mesma instância: a tradição memorial transmitida, enriquecida e encarnada pela voz.[2]

Logicamente, os entraves com a escrita, no mundo contemporâneo, desencadeiam entraves em outros tantos ambientes e, principalmente, colaboram para uma baixa auto-estima, que é muito prejudicial a qualquer um.

Então, olhando para esse processo que estamos vivendo e que vai chegando ao fim, vejo que essa ponte direta entre a oralidade e a escrita, pela qual transitamos foi bem importante, porque foi dado um igual peso tanto a uma como a outra. Houve um entendimento na prática de que a escrita vem da palavra em sua essência. E a palavra em sua essência é tudo o que é expressivo no ser humano, ela nasce no pensamento, ela nasce na relação, ela se dá por meio do outro, ela se dá ao outro em forma de sopro, som, tom. Quando se chega na escrita, queremos que  ela continue viva e aí está o desafio: encontrar a forma certa para que toda a vida que ela sustentou até então chegue no leitor, que terá apenas o papel, as letras e a sua própria voz a replicar para si a leitura.
Assim, o processo de contar, criar, escrever, ler, ouvir a outra lendo e depois voltar a contar, criar, escrever ... foi como uma espiral, em que uma etapa alimentava e transformava a outra, sobretudo no processo das quatro vocacionadas que mais ativamente participaram do Colcha de Memórias: Teresa, Cleusa, Dolores e Olga.

Em relação ao outro trabalho de maior peso realizado durante o ano, o Ensaio Biográfico, do Gil, trata-se da concretização de um antigo desejo seu de contar a sua história e de sua família. E que história! Nesse caso, no entanto, a demanda foi de desconstruir. E não foi simples. E talvez não tenhamos conseguido. Enquanto Artista-orientadora, eu gostaria que ele entendesse que realmente fazer das suas próprias histórias a matéria do seu trabalho, investir na lapidação dessas narrativas, era tudo o que precisávamos para “ensinar” alguma coisa a alguém. Essa minha insistência era porque, na minha visão, a própria narrativa já fala por si, já carrega muitos signos nas entrelinhas, e nisso insisti muito, como quem explica o porquê das parábolas de Cristo!
Porém, tivemos momentos de embate, porque em sua visão era necessário explicar com as palavras reais todos os problemas e desafios enfrentados naquela sua história sobre a Anemia Falciforme, doença com a qual convive desde o nascimento do seu primeiro filho, um mal muito pouco conhecido pela sociedade, o que sempre acarretou muitos problemas à família. Dentre os quatro filhos de Gil, dois faleceram deste mal, imagine!
Nossas discussões se repetiam e nessa luta, ele cedeu e eu também cedi. Gil escreve bem, tem um texto sofisticado e o resultado - que ainda não é um resultado final, porque sua intenção é continuar escrevendo – aponta para um caminho que pode ser interessante.
O que acredito ter sido o mais valioso nesse processo com o Gil foi realmente a atitude dele de encarar o seu próprio drama. Ele parece realmente disposto a mexer nas feridas para disparar uma possível cura. O meu trabalho tem sido muito no sentido de chamar sua atenção para as nuances do seu drama, tentando levantar as facetas intrigantes, leves e divertidas que também compõem a sua história e podem estabelecer um ritmo mais literário para o texto.

Na esteira do processo Vocacional Literatura na Biblioteca Castro Alves, tivemos dois momentos de quebra de muros muito significativos: um foi o intercâmbio realizado com a Julimari, AO de dança no CEU Heliópolis. Depois de substituí-la em uma das vivencias, num momento em que suas vocacionadas estavam justamente trazendo histórias que entrariam como base da criação, a troca foi tão sincera e proveitosa, que algumas delas, com o estímulo dado por Julimari, passaram a frequentar minhas atividades também. Daí surgiu o projeto “Carta a ...”, que partiu de um depoimento que tivemos de um rapaz. Ele nos contou que foi presidiário mais de uma vez e que sempre gostou de escrever cartas. Na cadeia então acabou ficando conhecido como o escritor de cartas e prestava esse serviço aos colegas, que lhes eram muito gratos e generosos com cigarros e outras moedas. Sua história foi tocante, chegando a causar certo espanto.  Depois disso começamos a conversar sobre esse velho hábito de escrever cartas e resolvemos partir para essa empreitada!

A segunda quebra de muros, um pouco mais radical, foi a de propor um pequeno projeto às professoras da EMEI vizinha: realizar uma série de atividades para trabalhar a narração de histórias em sala de aula. Como na turma de sábado, eu estava apenas com o Gil como vocacionado, resolvi fazer essa proposta, com um foco mais fechado numa atividade muito cara àquelas professoras, que faz parte do dia-a-dia delas. Foi uma série de seis encontros, em que eu trouxe textos, referências e propus jogos e discussões. O objetivo foi burilar a performance narrativa direcionada para a criança, pensando que o encontro: corpo, voz e texto também é a criação de um discurso literário, é literatura oral. Assim, trocamos bastante e elencamos pontos da “técnica” de contar histórias, praticando nós mesmas jogos, brincadeiras e experimentos, que tanto eram para explorar aqueles pontos como alguns deles podiam ser mesmo repetidos em sala. Foi para mim uma experiência importante, porque pensar a atividade de contar histórias no cotidiano de uma EMEI significa muito mais do que estimular a leitura e a imaginação, significa propor uma via de mão dupla, em que a criança começa a querer ela mesma contar e, consequentemente, explorar sua expressividade e cognição. Começar a entender esse processo (da criança) e pensar caminhos possíveis para viabilizá-lo, foi algo que não estava planejado e que, na troca com as professoras, pude vislumbrar logo nos primeiros encontros.

Por fim, desafios não faltaram, mas força e criatividade também não. Se não tínhamos um “público ideal” para a linguagem de literatura naquele equipamento, encontramos, eu e a coordenação da biblioteca, atalhos e veredas que nos levaram a pessoas ricas de um viver e ao mesmo tempo com espaço na alma para revolver a terra, onde nasce a literatura.






[1] No início, até o mês de julho, tínhamos uma hora da orientação em comum com uma aula de tricot e bordado, às terças a tarde. Depois passamos para a segunda a tarde, com objetivo de termos mais tranquilidade e foco para o trabalho.
[2] MACHADO, J. Transmissão da experiência e performance narrative em dois narradores natos: Sebastião Biano e Marilene Paschoal. Dissertação, UNESP, 2015, p. 14 apud ZUMTHOR, P. A letra e a voz.

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