Ensaio 2015 - JULIANA MACHADO - Biblioteca Castro Alves
Ensaio de pesquisa
Vocacional literatura
Biblioteca Castro Alves
Juliana Mado
O jardim da Biblioteca Castro Alves existe - de existir ele me
conforta, me exalta, mas também me provoca. Algumas vezes cedi à sua
provocação, fui ao seu encontro e levei meu parceiros. Ele nos recebeu muito
bem, o sol e o calor que lhe faziam serventia também nos incluiu e acolheu.
Mas quase sempre estamos dentro da Biblioteca Castro Alves,
continuamos lá, fingindo estar alheios ao jardim. É que lá dentro, além de
seguras e duras mesas e cadeiras, também tem uma luta. Tomamos parte na luta,
que é quase uma guerra, a guerra contra o vazio. Betânia desesperadamente luta,
Cecília docemente, mas não menos guerreira, preenche, cria estofo. Divina limpa
o que não está sujo, mas que vivifica com o pano, vassoura, espanador (aliás,
frenético espanador). Valdir, com a conivência tão afeita dos homens, cede mais
ao vazio. Raquel, sem muito alarde, organiza, cataloga, atende, tacitamente faz
e acontece.
O Vocacional na Biblioteca Castro Alves veio como mais uma
ferramenta na luta contra o vazio. Fazemos parte dessa luta, eu e quase todos
os vocacionados, poucos e bravos parceiros. Tereza, uma delas, talvez a mais
dedicada parceira, é peça fundamental dessa luta, ela frequenta assiduamente a
Biblioteca Castro Alves, participa de todos os eventos que lá acontecem,
conversa animadamente com todos e quer muito ver a Biblioteca cheia, viva.
Conta que há alguns anos era lotada, fazia-se fila para usar suas mesas, mas
que depois com uma má e antipática gestão, a biblioteca esvaziou-se. Tereza
representa o sábio flaneur, o ocioso
produtivo, uma figura bem rara numa cidade e num tempo como o que vivemos. Gil, esse menos assíduo da Biblioteca,
mas muito ativo como vocacionado, se compadece da luta de Betânia, quer
ajudá-la, reconhece que é preciso “sacudir” aquele lugar e tenta a sua maneira
colaborar na divulgação. Cleuza é público frequente, sempre papeando com um e
outro, falante e comunicativa que é, além de grande entusiasta do crochê[1],
atividade que também acontece às terças-feiras. Desde o início deixou claro que
não se dá muito bem com a leitura e a escrita, mas estava lá e foi de fato uma
revelação com seus textos - Cleuza, a que odeia ler, mas que escreve e não sai
da biblioteca.
Também não amo o vazio, também ele me corta. Os números baixos falam
muito alto, cutucam, é preciso que venham os números altos, imponentes e
desejados. Mas o vazio, assim como o silêncio, me flertam e flertam
sobremaneira com a literatura. Nisso obviamente habita pelo menos uma
contradição: quero ter muitos vocacionados, quero que todos queiram participar
do Vocacional Literatura - este que tenta sofregamente cumprir o seu papel de
ferramenta contra o vazio naquele lugar - quero produzir, quero que produzam,
mas confesso: adoro o silêncio e a paz que fazem terreno para a palavra.
Sobre isso e sobre o que temos trabalhado seguem algumas reflexões:
Quando contam uma para outra suas histórias, é o silêncio do escutar
que recebe e puxa as memórias.
Quando olho e conto, é o vazio entre eu e o outro que tenho que
atravessar, com calma e entrega.
Quanto leio, ah quando leio! Até as baratas sabem quando alguém está
lendo, absorto e alheio, largo no silêncio, propício à sua passagem.
São muitas vozes, muitas palavras, muito barulho na mudez do
silêncio de um ser vivo prestes a falar, olhar, fazer, escrever.
Toda atividade aqui no Vocacional Literatura da Biblioteca Castro
Alves, quer ser receptáculo deste silêncio, deste vazio, não o que corta, mas o
que dança com a palavra.
Porém, a realidade do Vocacional é que os encontros, chamados de
orientações, são feitos de encontros mesmo. Imagino que alguns grupos já tenham
esse encontro consolidado ou pelo menos vivenciado, de forma que a ansiedade
por formar laços já não seja tão forte. Mas ali onde atuo, tudo está se
construindo, sobretudo as relações. Dessa forma, é parte muito importante do
trabalho essa formação do grupo, essa construção lenta e contínua da teia que
envolve a todos. É bonita e às vezes um pouco sofrida essa construção. O nosso
grupo, formado por senhoras, que têm muitas coisas a contar todos os dias e que
guardam a alegria de compartilhar (ainda bem!), muitas vezes demora a assentar
a energia e entrar na proposta artística. O que penso disso? Penso que também é
um momento importante contar coisas ordinárias, dar risadas, trocar umas dicas
de coisas da vida para depois atacar com uma atividade planejada. Por vezes há
uma empolgação com esse primeiro momento e então a ansiedade quem cria sou eu,
de parar tudo, silenciar e começar a proposta. Outras vezes, é desse momento
inicial que surge uma proposta, uma ideia de caminho das coisas.
O projeto que trilhamos nessa turma a que me refiro tem como norte a
transmissão da experiência. Acredito que aconteceu um casamento feliz entre uma
artista orientadora que tem como pesquisa justamente essa transmissão e seu
desdobramento com a performance narrativa e uma turma de pessoas com muita
experiência de vida e em geral, com muita disponibilidade para narrar. O
desafio principal foi a escrita. Transitamos entre:
1.
o compartilhar das
experiências,
2.
a performance narrativa com
total liberdade para criar a partir da realidade e
3.
a experiência de escrever, investindo ainda
mais nessa liberdade.
Assim, foram essas três frentes que orientaram o projeto “Colcha de
memórias”. E, obviamente, trabalhamos com algumas referências, como Zélia Gatai
e Ecléa Bosi.
Porém, o mais instigante do projeto foi a percepção que pouco a
pouco o grupo foi tendo do processo criativo que elas mesmas eram capazes de
realizar. Lidar com a memória e com a subjetividade como matéria para criações
artísticas parecia ser algo bem distante e estranho àquelas senhoras, mas cada
uma a seu tempo conseguiu virar a chavinha e começar a se divertir com tudo
isso. Pelos vídeos que fiz delas narrando é possível perceber essa
transformação: o simples contar uma história, depois o contar com mais
expressividade e por fim o prazer de inventar e performar.
Quando chegamos na fase da escrita, é realmente o momento mais cheio
de entraves. As dificuldades vão desde a ortografia até a construção de
períodos compreensíveis. Muitas vezes se torna bem interessante a forma livre
da escrita de algumas, uma espécie de escrita espontânea, como se não houvesse
barreira entre o falar e o escrever. Para esse momento, lemos um bocado, trouxe
referências literárias e instrutivas e partimos para a produção. Principalmente
nessa fase entra em cena o meu papel de educadora, que transita entre
estimular, elogiar, levantar os pontos positivos e corrigir, criticar.
Como sabemos, apesar de as vezes até esquecermos, escrever é uma
linguagem extremamente sofisticada e cheia de códigos. Ao longo dos séculos a
escrita se impôs como um dos meios de comunicação mais confiáveis e elitizados.
Não foi sempre assim. Nos estudos de Paul Zumthor, medievalista e
documentarista, que pesquisou a fundo a voz poética dos narradores e cantadores
daquele período, ele constata
... o prestígio
da voz em performance até o
século XV ou XVI na Europa, da comunicação pela palavra falada, e não só da
comunicação, mas do sentido de identidade que ela cria, de sua demanda de
representar o coletivo e instaurar nos grupos uma unidade da qual se alimenta a
tradição.
...
Ele ainda afirma que houve, para a nossa surpresa, uma resistência e até mesmo
um combate à escrita até o século XVI ou XVII. Por isso, nos textos escritos
dessa época torna-se difícil separar “ficção” e “realidade histórica”. Elas
procedem, em seu conjunto, de uma mesma instância: a tradição memorial transmitida,
enriquecida e encarnada pela voz.[2]
Logicamente, os entraves com a escrita, no mundo contemporâneo,
desencadeiam entraves em outros tantos ambientes e, principalmente, colaboram
para uma baixa auto-estima, que é muito prejudicial a qualquer um.
Então, olhando para esse processo que estamos vivendo e que vai
chegando ao fim, vejo que essa ponte direta entre a oralidade e a escrita, pela
qual transitamos foi bem importante, porque foi dado um igual peso tanto a uma
como a outra. Houve um entendimento na prática de que a escrita vem da palavra
em sua essência. E a palavra em sua essência é tudo o que é expressivo no ser
humano, ela nasce no pensamento, ela nasce na relação, ela se dá por meio do
outro, ela se dá ao outro em forma de sopro, som, tom. Quando se chega na escrita,
queremos que ela continue viva e aí está
o desafio: encontrar a forma certa para que toda a vida que ela sustentou até
então chegue no leitor, que terá apenas o papel, as letras e a sua própria voz
a replicar para si a leitura.
Assim, o processo de contar, criar, escrever, ler, ouvir a outra
lendo e depois voltar a contar, criar, escrever ... foi como uma espiral, em
que uma etapa alimentava e transformava a outra, sobretudo no processo das
quatro vocacionadas que mais ativamente participaram do Colcha de Memórias:
Teresa, Cleusa, Dolores e Olga.
Em relação ao outro trabalho de maior peso realizado durante o ano,
o Ensaio Biográfico, do Gil, trata-se da concretização de um antigo desejo seu
de contar a sua história e de sua família. E que história! Nesse caso, no
entanto, a demanda foi de desconstruir. E não foi simples. E talvez não
tenhamos conseguido. Enquanto Artista-orientadora, eu gostaria que ele
entendesse que realmente fazer das suas próprias histórias a matéria do seu trabalho,
investir na lapidação dessas narrativas, era tudo o que precisávamos para
“ensinar” alguma coisa a alguém. Essa minha insistência era porque, na minha
visão, a própria narrativa já fala por si, já carrega muitos signos nas
entrelinhas, e nisso insisti muito, como quem explica o porquê das parábolas de
Cristo!
Porém, tivemos momentos de embate, porque em sua visão era
necessário explicar com as palavras reais todos os problemas e desafios
enfrentados naquela sua história sobre a Anemia Falciforme, doença com a qual
convive desde o nascimento do seu primeiro filho, um mal muito pouco conhecido
pela sociedade, o que sempre acarretou muitos problemas à família. Dentre os
quatro filhos de Gil, dois faleceram deste mal, imagine!
Nossas discussões se repetiam e nessa luta, ele cedeu e eu também
cedi. Gil escreve bem, tem um texto sofisticado e o resultado - que ainda não é
um resultado final, porque sua intenção é continuar escrevendo – aponta para um
caminho que pode ser interessante.
O que acredito ter sido o mais valioso nesse processo com o Gil foi
realmente a atitude dele de encarar o seu próprio drama. Ele parece realmente
disposto a mexer nas feridas para disparar uma possível cura. O meu trabalho
tem sido muito no sentido de chamar sua atenção para as nuances do seu drama,
tentando levantar as facetas intrigantes, leves e divertidas que também compõem
a sua história e podem estabelecer um ritmo mais literário para o texto.
Na esteira do processo Vocacional Literatura na Biblioteca Castro
Alves, tivemos dois momentos de quebra de muros muito significativos: um foi o
intercâmbio realizado com a Julimari, AO de dança no CEU Heliópolis. Depois de
substituí-la em uma das vivencias, num momento em que suas vocacionadas estavam
justamente trazendo histórias que entrariam como base da criação, a troca foi
tão sincera e proveitosa, que algumas delas, com o estímulo dado por Julimari,
passaram a frequentar minhas atividades também. Daí surgiu o projeto “Carta a
...”, que partiu de um depoimento que tivemos de um rapaz. Ele nos contou que
foi presidiário mais de uma vez e que sempre gostou de escrever cartas. Na
cadeia então acabou ficando conhecido como o escritor de cartas e prestava esse
serviço aos colegas, que lhes eram muito gratos e generosos com cigarros e
outras moedas. Sua história foi tocante, chegando a causar certo espanto. Depois disso começamos a conversar sobre esse
velho hábito de escrever cartas e resolvemos partir para essa empreitada!
A segunda quebra de muros, um pouco mais radical, foi a de propor um
pequeno projeto às professoras da EMEI vizinha: realizar uma série de
atividades para trabalhar a narração de histórias em sala de aula. Como na
turma de sábado, eu estava apenas com o Gil como vocacionado, resolvi fazer
essa proposta, com um foco mais fechado numa atividade muito cara àquelas
professoras, que faz parte do dia-a-dia delas. Foi uma série de seis encontros,
em que eu trouxe textos, referências e propus jogos e discussões. O objetivo
foi burilar a performance narrativa direcionada para a criança, pensando que o
encontro: corpo, voz e texto também é a criação de um discurso literário, é
literatura oral. Assim, trocamos bastante e elencamos pontos da “técnica” de
contar histórias, praticando nós mesmas jogos, brincadeiras e experimentos, que
tanto eram para explorar aqueles pontos como alguns deles podiam ser mesmo
repetidos em sala. Foi para mim uma experiência importante, porque pensar a
atividade de contar histórias no cotidiano de uma EMEI significa muito mais do
que estimular a leitura e a imaginação, significa propor uma via de mão dupla,
em que a criança começa a querer ela mesma contar e, consequentemente, explorar
sua expressividade e cognição. Começar a entender esse processo (da criança) e
pensar caminhos possíveis para viabilizá-lo, foi algo que não estava planejado
e que, na troca com as professoras, pude vislumbrar logo nos primeiros
encontros.
Por fim, desafios não faltaram, mas força e criatividade também não.
Se não tínhamos um “público ideal” para a linguagem de literatura naquele
equipamento, encontramos, eu e a coordenação da biblioteca, atalhos e veredas
que nos levaram a pessoas ricas de um viver e ao mesmo tempo com espaço na alma
para revolver a terra, onde nasce a literatura.
[1] No início, até o mês de julho, tínhamos
uma hora da orientação em comum com uma aula de tricot e bordado, às terças a
tarde. Depois passamos para a segunda a tarde, com objetivo de termos mais
tranquilidade e foco para o trabalho.
[2] MACHADO, J. Transmissão
da experiência e performance narrative em dois narradores natos: Sebastião
Biano e Marilene Paschoal. Dissertação, UNESP, 2015, p. 14 apud ZUMTHOR, P. A letra e a voz.
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial