segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Sobre apostar na iminência

Marina Corazza 
Artista-coordenadora da equipe de TEATRO - Leste 2


Sobre apostar na iminência

“A música, os estados de felicidade, as caras trabalhadas pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares, querem nos dizer alguma coisa, ou disseram algo que não deveríamos ter perdido, ou estão por dizer alguma coisa; esta iminência de uma revelação que não se produz talvez seja o fato estético[1].”


          Este ensaio é uma proposta de problematizar as necessidades de se escrever, obrigatoriamente, um ensaio nas atuais configurações do Programa Vocacional, mais especificamente do Projeto Vocacional Teatro. Por mais que, todos os anos, pontes, frágeis e efêmeras, tenham sido construídas, a distância estrutural em relação às demais linguagens me limita, infelizmente, a ter a experiência do programa do ponto de vista da linguagem teatral.

            Pergunto-me aqui sobre o objetivo da escrita do ensaio no contexto do vocacional na tentativa de iluminar os desafios que temos na comunicação do programa entre a Divisão de Formação (SMC) e seus processos artístico-pedagógicos.

            Antes de tudo, acho importante reforçar que muitas condições mínimas de trabalho têm sido demandadas pelos artistas que participam anualmente do programa. Estas demandas vão no sentido de potencializar as próprias premissas essenciais deste programa público, a saber (mais uma vez): a fundamental presença de um coordenador geral (chegamos a propor uma gestão compartilhada por três profissionais contratados para este fim); a continuidade do programa, estendendo seu período de contratação de oito para dez meses, no mínimo; e infraestrutura adequada que envolve desde materiais a transporte suficiente para as ações do programa. Além disso, os artistas dos quais é cobrada uma atitude de pesquisadores, e não de oficineiros, nada recebem por suas horas engajadas na pesquisa de materiais que dialoguem com os processos e no planejamento das orientações. As quatro horas mensais destinadas à escrita do ensaio, são direcionadas, na prática e de forma insuficiente, para o planejamento.

            Esta é uma das camadas da configuração atual do programa, entrelaçada a ela, somam-se as demais considerações que faço aqui.

            Vou partir do princípio que a arte é uma língua e a escrita (com forte influência acadêmica, como no caso do ensaio), outra. Em primeiro lugar me pergunto o porquê da escrita acadêmica ser a forma que deve ser concretizada como “palavra final” dos processos. A intenção de quando se pensou o ensaio poderia não ser bem essa de “palavra final”, mas a verdade é que no interior das equipes, de modo geral, a obrigatoriedade do ensaio é opressora. Na maioria das vezes os processos nas turmas, grupos e equipes não necessariamente passam pelo diálogo com um ensaio escrito; muitas vezes outros são os desdobramentos mais pulsantes.

            E mais uma vez nos perguntamos: Para que? Para quem? Para o estado desdobrar suas políticas públicas? Para a academia ter onde buscar dados? Para nós, artistas da cidade? Quem realmente lerá o que estou escrevendo? A escrita ensaística pode ser para alguns pensadores acadêmicos a possibilidade de respirar mais livremente e deixar o pensamento fluir para além de algumas das amarras tão apertadas. Mas essa não é uma necessidade de um Programa como o Vocacional, ou pelo menos não deveria ser, já estamos fora da universidade (ou não?). Porque não apostamos em registros dessas memórias que sejam, eles também, forma e conteúdo de seus processos? Que possam ser coletivos? Que explodam os limites da forma escrita?

            Quando refletimos sobre a ação dos artistas-orientadores, nos parece bastante equivocada e embrutecedora a atitude de “passar por cima” de um sentimento generalizado nas turmas/grupos de que algo está errado, de que algo está oprimindo outras formas prestes a nascer. Pergunto-me o quanto que a atitude cobrada do artista-orientador como mestre ignorante, numa atitude pesquisadora e atenta, é também efetivada pelas outras esferas do programa, inclusive por uma coordenação geral (que não existe!). Esse sentimento de obrigatoriedade, de cumprir uma tarefa, que é o contrário de toda autonomia e de explosão de formas, que entendo que o programa preconiza, me remete diretamente ao modo de operar do mestre embrutecedor em detrimento a atitude de um mestre ignorante como descreve Rancière:

“O mito pedagógico, dizíamos, divide o mundo em dois. Mas, deve-se dizer, mais precisamente, que ele divide a inteligência em duas. Há, segundo ele, uma inteligência inferior e uma inteligência superior. A primeira registra as percepções ao acaso, retém, interpreta e repete empiricamente, no estreito círculo dos hábitos e das necessidades. É a inteligência da criancinha e do homem do povo. A segunda conhece as coisas por suas razões, procede por método, do simples ao complexo, da parte ao todo. É ela que permite ao mestre transmitir seus conhecimentos, adaptando-os às capacidades intelectuais do aluno, e verificar se o aluno entendeu o que acabou de aprender. Tal é o princípio da explicação. Tal será, a partir daí, para Jacotot, o princípio do embrutecimento.
Entendâmo-lo bem – e, para isso, afastemos as imagens feitas. O embrutecedor não é o velho mestre obtuso que entope a cabeça de seus alunos de conhecimentos indigestos, nem o ser maléfico que pratica a dupla verdade, para assegurar seu poder e a ordem social. Ao contrário, é exatamente por ser culto, esclarecido e de boa-fé que ele é mais eficaz. Mais ele é culto, mais se mostra evidente a ele a distância que vai de seu saber à ignorância dos ignorantes. Mais ele é esclarecido, e lhe parece óbvia a diferença que há entre tatear às escuras e buscar com método, mais ele se aplicará em substituir pelo espírito a letra, pela clareza das explicações a autoridade do livro. Antes de qualquer coisa, dir-se-á, é preciso que o aluno compreenda e, para isso, que a ele se forneçam explicações melhores. Tal é a preocupação do pedagogo esclarecido: a criança está compreendendo? Ela não compreende? Encontrarei maneiras novas de explicar-lhe, mais rigorosas em seu princípio, mais atrativas em sua forma; e verificarei que ele compreendeu.”  (Rancière, 2011, p.24)

            Essa comparação pode parecer forçada, mas no interior da maioria das equipes, o sentimento em relação ao ensaio é parecido com o do discípulo de um mestre embrutecedor: isso não faz parte do processo, mas preciso produzir “um bom ensaio” que mostre como sou crítico no meu fazer artístico-pedagógico, preciso mostrar que sei problematizar as questões que envolvem o processo, o equipamento, o programa, preciso também escrever poeticamente para mostrar que sou inteligente e sensível e sei articular referências da arte, da filosofia e talvez das ciências sociais...
         
   Essa angústia de cumprir uma tarefa descolada da realidade e de suas reais necessidades me parece um reflexo da distância institucional que o programa tem entre as pontas dentro da secretaria e as pontas do trabalho com os vocacionados.

            Além disso, não podemos ignorar que as condições de trabalho não são apropriadas para gerar um ensaio: artistas-orientadores e artistas-coordenadores não recebem por horas de planejamento e pesquisa dos processos, e muito menos, para darem voz à memória processual do programa, seja por meio de ensaios ou outros registros críticos; os processos artísticos acabam não tendo a continuidade desejada porque se veem dentro da ciranda na qual artistas-orientadores devem encontrar a demanda nos equipamentos ao longo de três meses, por outros três meses buscar com a turma quais são as questões pungentes nas relações entre forma e conteúdo que os perpassam como agrupamento, ter mais dois meses para encontrar materialidades que concretizem essas questões e quando aquele coletivo começa a entender suas relações com o teatro, o equipamento, e o entorno é completamente abandonado pelo final da edição.

            Se estes problemas estruturais fossem resolvidos, mantendo-se a essência do programa, talvez a questão da memória pudesse culminar em pequenas obras de formatos variáveis, inclusive ensaios, que funcionassem tal como preconizado no material norteador:

“Registrar a memória de um processo significa entrar em contato com a natureza do tempo, ao constituir-se numa construção e reconstrução constantes de sentidos para a experiência coletivamente empreendida. (...) Construir a memória de um processo, por meio de registros constantes em suportes e maneiras diversas, implica assim em encontrar possibilidades narrativas que tornem o processo criativo coletivamente consciente, por meio do confronto e apreciação ativa de materializações possíveis que refletem instantes da experiência ao longo do processo”.

        É importante ainda pontuar que em função destas distorções estruturais e de demandas descoladas da realidade dos processos como o ensaio, muitas equipes em pleno mês de dezembro, pelo qual não somos contratados, ainda estão fazendo reuniões, muitos ensaios ainda não foram entregues e, com frequência, as horas de trabalho são ultrapassadas para se dar conta das demandas “descoladas”, sem prejudicar os processos artísticos e seus desdobramentos.

            No atual contexto do vocacional, me pergunto se para a Divisão de Formação (SMC), o ensaio não acaba substituindo a concretude da cena, uma “prestação de contas” distante da realidade, um documento enviado e catalogado junto com tantas outras planilhas no blog. Pergunto-me se essa “concretude”, “visualização” não substitui a concretude de tantas materialidades artísticas criadas em seus processos, essas sim, resultados de um constante formular e reformular de inquietações de artistas-vocacionados e artistas-orientadores.

            Uma vez numa reunião de equipe, uns anos atrás, comentei que o ensaio era o próprio processo artístico, que se pensa, que se lança a deslocar referências, a encontrar a pergunta síntese que pulsa dentro de um determinado agrupamento, que relaciona as referências novas e as já conhecidas. Mas a questão não reverberou e continuo achando que o ensaio está no contexto do vocacional para catalogar, aferir, ou avaliar (quando lido) se o artista-orientador “fez um bom trabalho ou não”, se “tem consciência ou não” do processo artístico que está orientando. Mesmo que esta não seja a intenção primeira, a configuração do programa corre o risco de delegar à escrita do ensaio a valoração do trabalho de determinado artista. A materialidade da escrita corre o risco de se sobrepor às materialidades dos processos artísticos e me pergunto do por que o medo de apostar na segunda concretude, a dos processos, em consonância com o próprio material norteador do programa. Será que não seria possível encontrar meios de catalisar, por parte da Divisão de Formação, as materialidades/reflexões/proposições estéticas geradas nos processos para muito além do ensaio, e que estivessem a favor do trabalho com os vocacionados e da criação de diálogos entre os processos na cidade?

            A relação entre as materialidades artísticas geradas ao longo dos processos e a necessidade da escritura de um ensaio por cada um dos artistas-orientadores talvez exponha a dificuldade que, no próprio corpo de artistas, encontramos de bancar a arte em sua concretude que é antes, durante e após, fruto de experiência. O processo artístico para se justificar precisa de um ensaio, um relatório, planilhas que “justifiquem a arte”, que possam “aferir a arte”.  

            Essa necessidade de traduzir a arte para uma língua “superior”, “culta”, que seja legitimada por um contexto outro que não o da própria arte, em especial num programa no qual brigamos tanto para que os processos tenham visibilidade para nós e para a cidade, me lembro das propostas de Boaventura para o que chama de “Sociologia das Ausências”:

“O olhar que vê uma pessoa cultivar a terra com uma enxada não consegue ver nela senão o camponês pré-moderno. A isso se refere Koselleck quando fala da não contemporaneidade do contemporâneo (1985), sem, no entanto, problematizar que nessa assimetria se esconde uma hierarquia, a superioridade de quem estabelece o tempo que determina a contemporaneidade. A contração do presente, esconde, assim, a maior parte da riqueza inesgotável das experiências sociais no mundo. Benjamin identificou o problema mas não as suas causas. A pobreza da experiência não é expressão de uma carência, mas antes a expressão de uma arrogância, a arrogância de não se querer ver e muito menos valorizar a experiência que nos cerca, apenas porque está fora da razão com que podemos identificar e valorizar.
A crítica da razão metonímica é, pois, uma condição necessária para recuperar a experiência desperdiçada. O que está em causa é a ampliação do mundo através da ampliação do presente. Só através de um novo espaço-tempo será possível identificar e valorizar a riqueza inesgotável do mundo e do presente. Simplesmente, esse novo espaço-tempo pressupõe uma outra razão. (...)
Na fase de transição em que nos encontramos, em que a razão metonímica, apesar de muito desacreditada, é ainda dominante, a ampliação do mundo e a dilatação do presente têm de começar por um procedimento que designo por sociologia das ausências. Trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como tal, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe. O seu objeto empírico é considerado impossível à luz das ciências sociais convencionais, pelo que a sua simples formulação representa já uma ruptura com elas. O objetivo da sociologia das ausências é transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças. Fá-lo centrando-se nos fragmentos da experiência social não socializados pela totalidade metonímica. O que é que existe no Sul que escapa à dicotomia Norte/Sul? O que é que existe na medicina tradicional que escapa à dicotomia medicina moderna/medicina tradicional? O que é que existe na mulher que é independente da sua relação com o homem? É possível ver o que é subalterno sem olhar à relação de subalternidade?
Não há uma maneira única ou unívoca de não existir, porque são vários as lógicas e os processos através dos quais a razão metonímica produz a não-existência do que não cabe na sua totalidade e no seu tempo linear. Há produção de não-existência sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível.”
                                                                                                                (Boaventura, 2002, p. 245)

      Inspirada pelas propostas de Boaventura, no contexto atual do Programa Vocacional, pergunto-me como dar voz aos processos artísticos e suas materialidades? Como dar voz a tantas reflexões/criações, que considero elas mesmas “ensaios” de muitos corpos-cabeças no espaço-tempo?

    Para finalizar, olho para o “problema” do ensaio sobre um outro recorte que perpassa todo o programa: a difícil tarefa que nós, artistas-orientadores e artistas-coordenadores, temos de enfrentar ao sermos sociedade civil e estado ao mesmo tempo no vocacional.   
        
     É complicado enxergar com lucidez, em que medidas a responsabilidade pela distancia das esferas de coordenação é dos artistas do programa, o quanto é do estado. Muitas vezes estamos a serviço de demandas que são muito mais institucionais, que partem da necessidade do estado de catalogar, organizar e não das reais necessidades do programa e não conseguimos nos libertar dessa ciranda.
         
     O quanto nós mesmos não acabamos repetindo o estado, o quanto ele entra em nós e nos confunde e paralisa – a obrigatoriedade da escrita de um ensaio me parece resultante disso. Onde estão as brechas? O quanto nós mesmos não as tampamos, nos antecipando ao próprio estado? Nos tornando estado?
        
   Como criar uma estrutura que esteja na ponta e na rede com a secretaria para que não sejamos mestres embrutecidos de nós mesmos?
     Penso que não podemos nos ausentar de reinventar constantemente formas novas de ocupar o estado por suas margens, verticalizando a própria história e princípios do programa.
      
      Que brechas ainda não foram exploradas por nós como artistas infiltrados no estado?

      Que ações, num determinado tempo espaço, bancam a radicalidade e a iminência estéticas, como forma inclusive de tornar possíveis formas mais potentes de “ensaios”?

 __________________________________________________           

Marina Corazza: Em 2014 experimentou a interessante vivência de ser artista-orientadora do CEU São Rafael (Teatro – Leste 2), e assumir, em setembro, a função de artista-coordenadora da Equipe Leste 2.




Referências bibliográficas

BORGES, Jorge Luís. La Muralla y lós Libros. In: Obras Completas. Buenos Aires, Emecé, 1994.
COELHO, Teixeira. A cultura e seu contrário – Cultura, arte e política pós-2001. São Paulo: Iluminuras:Itaú Cultural, 2008.
DAS, Veena y POOLE, Deborah. El estado e sus márgenes.Etnografias comparadas. Santa Fe: SAR Press, 2004.  
GARCÍA CANCLINI, Néstor. A sociedade sem relato – Antropologia e Estética da iminência. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.




[1] Borges, “La Muralla y los Libros”, 1994, p.13

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