Sobre apostar na iminência
Marina Corazza
Artista-coordenadora da equipe de TEATRO - Leste 2
Sobre
apostar na iminência
“A música, os estados
de felicidade, as caras trabalhadas pelo tempo, certos crepúsculos e certos
lugares, querem nos dizer alguma coisa, ou disseram algo que não deveríamos ter
perdido, ou estão por dizer alguma coisa; esta iminência de uma revelação que
não se produz talvez seja o fato estético[1].”
Este ensaio é uma proposta de
problematizar as necessidades de se escrever, obrigatoriamente, um ensaio nas
atuais configurações do Programa Vocacional, mais especificamente do Projeto
Vocacional Teatro. Por mais que, todos os anos, pontes, frágeis e efêmeras,
tenham sido construídas, a distância estrutural em relação às demais linguagens
me limita, infelizmente, a ter a experiência do programa do ponto de vista da
linguagem teatral.
Pergunto-me aqui sobre o objetivo da
escrita do ensaio no contexto do vocacional na tentativa de iluminar os
desafios que temos na comunicação do programa entre a Divisão de Formação (SMC)
e seus processos artístico-pedagógicos.
Antes de tudo, acho importante
reforçar que muitas condições mínimas de trabalho têm sido demandadas pelos
artistas que participam anualmente do programa. Estas demandas vão no sentido
de potencializar as próprias premissas essenciais deste programa público, a
saber (mais uma vez): a fundamental presença de um coordenador geral (chegamos
a propor uma gestão compartilhada por três profissionais contratados para este
fim); a continuidade do programa, estendendo seu período de contratação de oito
para dez meses, no mínimo; e infraestrutura adequada que envolve desde
materiais a transporte suficiente para as ações do programa. Além disso, os
artistas dos quais é cobrada uma atitude de pesquisadores, e não de
oficineiros, nada recebem por suas horas engajadas na pesquisa de materiais que
dialoguem com os processos e no planejamento das orientações. As quatro horas
mensais destinadas à escrita do ensaio, são direcionadas, na prática e de forma
insuficiente, para o planejamento.
Esta é uma das camadas da
configuração atual do programa, entrelaçada a ela, somam-se as demais
considerações que faço aqui.
Vou partir do princípio que a arte é
uma língua e a escrita (com forte influência acadêmica, como no caso do ensaio),
outra. Em primeiro lugar me pergunto o porquê da escrita acadêmica ser a forma
que deve ser concretizada como “palavra final” dos processos. A intenção de
quando se pensou o ensaio poderia não ser bem essa de “palavra final”, mas a
verdade é que no interior das equipes, de modo geral, a obrigatoriedade do
ensaio é opressora. Na maioria das vezes os processos nas turmas, grupos e
equipes não necessariamente passam pelo diálogo com um ensaio escrito; muitas
vezes outros são os desdobramentos mais pulsantes.
E mais uma vez nos perguntamos: Para
que? Para quem? Para o estado desdobrar suas políticas públicas? Para a
academia ter onde buscar dados? Para nós, artistas da cidade? Quem realmente
lerá o que estou escrevendo? A escrita ensaística pode ser para alguns
pensadores acadêmicos a possibilidade de respirar mais livremente e deixar o
pensamento fluir para além de algumas das amarras tão apertadas. Mas essa não é
uma necessidade de um Programa como o Vocacional, ou pelo menos não deveria
ser, já estamos fora da universidade (ou não?). Porque não apostamos em
registros dessas memórias que sejam, eles também, forma e conteúdo de seus
processos? Que possam ser coletivos? Que explodam os limites da forma escrita?
Quando refletimos sobre a ação dos
artistas-orientadores, nos parece bastante equivocada e embrutecedora a atitude
de “passar por cima” de um sentimento generalizado nas turmas/grupos de que
algo está errado, de que algo está oprimindo outras formas prestes a nascer.
Pergunto-me o quanto que a atitude cobrada do artista-orientador como mestre
ignorante, numa atitude pesquisadora e atenta, é também efetivada pelas outras
esferas do programa, inclusive por uma coordenação geral (que não existe!). Esse
sentimento de obrigatoriedade, de cumprir uma tarefa, que é o contrário de toda
autonomia e de explosão de formas, que entendo que o programa preconiza, me
remete diretamente ao modo de operar do mestre embrutecedor em detrimento a
atitude de um mestre ignorante como descreve Rancière:
“O
mito pedagógico, dizíamos, divide o mundo em dois. Mas, deve-se dizer, mais
precisamente, que ele divide a inteligência em duas. Há, segundo ele, uma
inteligência inferior e uma inteligência superior. A primeira registra as
percepções ao acaso, retém, interpreta e repete empiricamente, no estreito
círculo dos hábitos e das necessidades. É a inteligência da criancinha e do
homem do povo. A segunda conhece as coisas por suas razões, procede por método,
do simples ao complexo, da parte ao todo. É ela que permite ao mestre
transmitir seus conhecimentos, adaptando-os às capacidades intelectuais do aluno,
e verificar se o aluno entendeu o que acabou de aprender. Tal é o princípio da
explicação. Tal será, a partir daí, para Jacotot, o princípio do
embrutecimento.
Entendâmo-lo
bem – e, para isso, afastemos as imagens feitas. O embrutecedor não é o velho mestre
obtuso que entope a cabeça de seus alunos de conhecimentos indigestos, nem o
ser maléfico que pratica a dupla verdade, para assegurar seu poder e a ordem
social. Ao contrário, é exatamente por ser culto, esclarecido e de boa-fé que
ele é mais eficaz. Mais ele é culto, mais se mostra evidente a ele a distância
que vai de seu saber à ignorância dos ignorantes. Mais ele é esclarecido, e lhe
parece óbvia a diferença que há entre tatear às escuras e buscar com método,
mais ele se aplicará em substituir pelo espírito a letra, pela clareza das
explicações a autoridade do livro. Antes de qualquer coisa, dir-se-á, é preciso
que o aluno compreenda e, para isso, que a ele se forneçam explicações
melhores. Tal é a preocupação do pedagogo esclarecido: a criança está
compreendendo? Ela não compreende? Encontrarei maneiras novas de explicar-lhe,
mais rigorosas em seu princípio, mais atrativas em sua forma; e verificarei que
ele compreendeu.” (Rancière, 2011, p.24)
Essa comparação pode parecer
forçada, mas no interior da maioria das equipes, o sentimento em relação ao
ensaio é parecido com o do discípulo de um mestre embrutecedor: isso não faz
parte do processo, mas preciso produzir “um bom ensaio” que mostre como sou
crítico no meu fazer artístico-pedagógico, preciso mostrar que sei
problematizar as questões que envolvem o processo, o equipamento, o programa,
preciso também escrever poeticamente para mostrar que sou inteligente e
sensível e sei articular referências da arte, da filosofia e talvez das
ciências sociais...
Essa angústia de cumprir uma tarefa
descolada da realidade e de suas reais necessidades me parece um reflexo da
distância institucional que o programa tem entre as pontas dentro da secretaria
e as pontas do trabalho com os vocacionados.
Além disso, não podemos ignorar que as
condições de trabalho não são apropriadas para gerar um ensaio: artistas-orientadores
e artistas-coordenadores não recebem por horas de planejamento e pesquisa dos
processos, e muito menos, para darem voz à memória processual do programa, seja
por meio de ensaios ou outros registros críticos; os processos artísticos acabam
não tendo a continuidade desejada porque se veem dentro da ciranda na qual
artistas-orientadores devem encontrar a demanda nos equipamentos ao longo de
três meses, por outros três meses buscar com a turma quais são as questões
pungentes nas relações entre forma e conteúdo que os perpassam como
agrupamento, ter mais dois meses para encontrar materialidades que concretizem
essas questões e quando aquele coletivo começa a entender suas relações com o
teatro, o equipamento, e o entorno é completamente abandonado pelo final da
edição.
Se estes problemas estruturais
fossem resolvidos, mantendo-se a essência do programa, talvez a questão da
memória pudesse culminar em pequenas obras de formatos variáveis, inclusive
ensaios, que funcionassem tal como preconizado no material norteador:
“Registrar
a memória de um processo significa entrar em contato com a natureza do tempo,
ao constituir-se numa construção e reconstrução constantes de sentidos para a
experiência coletivamente empreendida. (...) Construir a memória de um
processo, por meio de registros constantes em suportes e maneiras diversas,
implica assim em encontrar possibilidades narrativas que tornem o processo criativo
coletivamente consciente, por meio do confronto e apreciação ativa de
materializações possíveis que refletem instantes da experiência ao longo do
processo”.
É importante ainda pontuar que em
função destas distorções estruturais e de demandas descoladas da realidade dos
processos como o ensaio, muitas equipes em pleno mês de dezembro, pelo qual não
somos contratados, ainda estão fazendo reuniões, muitos ensaios ainda não foram
entregues e, com frequência, as horas de trabalho são ultrapassadas para se dar
conta das demandas “descoladas”, sem prejudicar os processos artísticos e seus
desdobramentos.
No atual contexto do vocacional, me
pergunto se para a Divisão de Formação (SMC), o ensaio não acaba substituindo a
concretude da cena, uma “prestação de contas” distante da realidade, um documento
enviado e catalogado junto com tantas outras planilhas no blog. Pergunto-me se
essa “concretude”, “visualização” não substitui a concretude de tantas
materialidades artísticas criadas em seus processos, essas sim, resultados de
um constante formular e reformular de inquietações de artistas-vocacionados e
artistas-orientadores.
Uma vez numa reunião de equipe, uns
anos atrás, comentei que o ensaio era o próprio processo artístico, que se
pensa, que se lança a deslocar referências, a encontrar a pergunta síntese que
pulsa dentro de um determinado agrupamento, que relaciona as referências novas
e as já conhecidas. Mas a questão não reverberou e continuo achando que o
ensaio está no contexto do vocacional para catalogar, aferir, ou avaliar
(quando lido) se o artista-orientador “fez um bom trabalho ou não”, se “tem
consciência ou não” do processo artístico que está orientando. Mesmo que esta
não seja a intenção primeira, a configuração do programa corre o risco de
delegar à escrita do ensaio a valoração do trabalho de determinado artista. A
materialidade da escrita corre o risco de se sobrepor às materialidades dos
processos artísticos e me pergunto do por que o medo de apostar na segunda
concretude, a dos processos, em consonância com o próprio material norteador do
programa. Será que não seria possível encontrar meios de catalisar, por parte
da Divisão de Formação, as materialidades/reflexões/proposições estéticas
geradas nos processos para muito além do ensaio, e que estivessem a favor do
trabalho com os vocacionados e da criação de diálogos entre os processos na
cidade?
A relação entre as materialidades
artísticas geradas ao longo dos processos e a necessidade da escritura de um
ensaio por cada um dos artistas-orientadores talvez exponha a dificuldade que,
no próprio corpo de artistas, encontramos de bancar a arte em sua concretude
que é antes, durante e após, fruto de experiência. O processo artístico para se
justificar precisa de um ensaio, um relatório, planilhas que “justifiquem a
arte”, que possam “aferir a arte”.
Essa necessidade de traduzir a arte
para uma língua “superior”, “culta”, que seja legitimada por um contexto outro
que não o da própria arte, em especial num programa no qual brigamos tanto para
que os processos tenham visibilidade para nós e para a cidade, me lembro das
propostas de Boaventura para o que chama de “Sociologia das Ausências”:
“O
olhar que vê uma pessoa cultivar a terra com uma enxada não consegue ver nela
senão o camponês pré-moderno. A isso se refere Koselleck quando fala da não
contemporaneidade do contemporâneo (1985), sem, no entanto, problematizar que
nessa assimetria se esconde uma hierarquia, a superioridade de quem estabelece
o tempo que determina a contemporaneidade. A contração do presente, esconde,
assim, a maior parte da riqueza inesgotável das experiências sociais no mundo.
Benjamin identificou o problema mas não as suas causas. A pobreza da
experiência não é expressão de uma carência, mas antes a expressão de uma
arrogância, a arrogância de não se querer ver e muito menos valorizar a
experiência que nos cerca, apenas porque está fora da razão com que podemos
identificar e valorizar.
A
crítica da razão metonímica é, pois, uma condição necessária para recuperar a
experiência desperdiçada. O que está em causa é a ampliação do mundo através da
ampliação do presente. Só através de um novo espaço-tempo será possível
identificar e valorizar a riqueza inesgotável do mundo e do presente.
Simplesmente, esse novo espaço-tempo pressupõe uma outra razão. (...)
Na
fase de transição em que nos encontramos, em que a razão metonímica, apesar de
muito desacreditada, é ainda dominante, a ampliação do mundo e a dilatação do
presente têm de começar por um procedimento que designo por sociologia das ausências. Trata-se de
uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade,
ativamente produzido como tal, isto é, como uma alternativa não-credível ao que
existe. O seu objeto empírico é considerado impossível à luz das ciências
sociais convencionais, pelo que a sua simples formulação representa já uma
ruptura com elas. O objetivo da sociologia das ausências é transformar objetos
impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças.
Fá-lo centrando-se nos fragmentos da experiência social não socializados pela
totalidade metonímica. O que é que existe no Sul que escapa à dicotomia
Norte/Sul? O que é que existe na medicina tradicional que escapa à dicotomia
medicina moderna/medicina tradicional? O que é que existe na mulher que é
independente da sua relação com o homem? É possível ver o que é subalterno sem
olhar à relação de subalternidade?
Não
há uma maneira única ou unívoca de não existir, porque são vários as lógicas e
os processos através dos quais a razão metonímica produz a não-existência do
que não cabe na sua totalidade e no seu tempo linear. Há produção de
não-existência sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada
invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível.”
(Boaventura,
2002, p. 245)
Inspirada pelas propostas de
Boaventura, no contexto atual do Programa Vocacional, pergunto-me como dar voz
aos processos artísticos e suas materialidades? Como dar voz a tantas
reflexões/criações, que considero elas mesmas “ensaios” de muitos
corpos-cabeças no espaço-tempo?
Para finalizar, olho para o
“problema” do ensaio sobre um outro recorte que perpassa todo o programa: a difícil
tarefa que nós, artistas-orientadores e artistas-coordenadores, temos de enfrentar
ao sermos sociedade civil e estado ao mesmo tempo no vocacional.
É complicado enxergar com lucidez,
em que medidas a responsabilidade pela distancia das esferas de coordenação é
dos artistas do programa, o quanto é do estado. Muitas vezes estamos a serviço
de demandas que são muito mais institucionais, que partem da necessidade do
estado de catalogar, organizar e não das reais necessidades do programa e não
conseguimos nos libertar dessa ciranda.
O quanto nós mesmos não acabamos
repetindo o estado, o quanto ele entra em nós e nos confunde e paralisa – a
obrigatoriedade da escrita de um ensaio me parece resultante disso. Onde estão
as brechas? O quanto nós mesmos não as tampamos, nos antecipando ao próprio
estado? Nos tornando estado?
Como criar uma estrutura que esteja
na ponta e na rede com a secretaria para que não sejamos mestres embrutecidos
de nós mesmos?
Penso que não podemos nos ausentar
de reinventar constantemente formas novas de ocupar o estado por suas margens, verticalizando
a própria história e princípios do programa.
Que brechas ainda não foram exploradas
por nós como artistas infiltrados no estado?
Que ações, num determinado tempo
espaço, bancam a radicalidade e a iminência estéticas, como forma inclusive de
tornar possíveis formas mais potentes de “ensaios”?
__________________________________________________
Marina Corazza: Em 2014 experimentou
a interessante vivência de ser artista-orientadora do CEU São Rafael (Teatro – Leste
2), e assumir, em setembro, a função de artista-coordenadora da Equipe Leste 2.
Referências
bibliográficas
BORGES,
Jorge Luís. La Muralla y lós Libros. In: Obras Completas. Buenos Aires, Emecé, 1994.
COELHO,
Teixeira. A cultura e seu contrário – Cultura, arte e política pós-2001. São Paulo:
Iluminuras:Itaú Cultural, 2008.
DAS,
Veena y POOLE, Deborah. El estado e sus márgenes.Etnografias comparadas. Santa
Fe: SAR Press, 2004.
GARCÍA
CANCLINI, Néstor. A sociedade sem relato – Antropologia e Estética da
iminência. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
RANCIÈRE,
Jacques. O mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
Marcadores: Teatro - Leste 2
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial