terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Construção do Ensaio – Gotas de um oceano - Artista Orientadora: Sheila de Sousa Leandro


Construção do Ensaio – Gotas de um oceano

Vocacional 2014 – memorial da experiência de uma artista orientadora em seu primeiro ano no Programa e a reflexão acerca da entrevista realizada com Celso Frateschi em agosto do mesmo ano.
  

Artista Orientadora: Sheila de Sousa Leandro (scheila_leandro@yahoo.com.br)
Equipamento: CEU Parelheiros
Grupo: Bosta? Tipo Merda no Teatro – Sábado das 10h ás 13h
Turma: Sábado das 14h ás 17h
Em meu primeiro ano como Artista Orientadora, dos treze já existentes do Programa, deparei-me com incômodos, desafios, conquistas e questionamentos acerca da proposta do programa - o lugar que ele ocupa na cidade de São Paulo (ou que deveria ocupar), assim como os entraves existentes no meio do caminho, principalmente os de caráter político e institucional.
De acordo com Celso Frateschi, em entrevista realizada em agosto de 2014, no Tendal da Lapa, a fim de resgatar um pouco da origem da instauração do programa na cidade, o mesmo relata que em 2002, ao tornar-se Secretário da Cultura, o que foi de extrema importância para “a ampliação e solidificação do projeto Vocacional” (apud Frateschi), existia um projeto de governo, não sendo assim uma ação isolada, pautada em interesses próprios. A proposta era “de privilégio do cidadão e das relações de cidadania” (apud Frateschi), esperava-se assim, que o indivíduo exercesse a sua “humanidade, cidadania e civilidade” (apud Frateschi). Segundo o ex-secretário, havia um tripé na área cultural, sendo: formar um cidadão (socialização das formas artísticas); favorecer os meios de produção artística (ideia não apenas de consumir, mas de ser o próprio individuo o produtor) e possibilitar a produção artística (sem interesse no mercado, poder se manifestar). Com este pensamento, no governo Marta, surgiram os CEU’s – Centro Educacional Unificado – que compreendia a educação como uma maneira de emancipação, em que se tinha como objetivo, proporcionar espaços em que as comunidades pudessem desfrutar e desenvolver as suas capacidades humanas. Tudo isso sendo dialogado entre as três Secretarias – a da Educação, da Cultura e do Esporte. Ou seja, o projeto Teatro Vocacional foi idealizado como parte de um conjunto de políticas para o teatro paulistano.
Diante desta breve contextualização da origem do que era ainda um projeto, tentarei articular um pouco neste primeiro momento, com as reflexões elaboradas á partir do material norteador, um disparador que, embora diante de toda a sua complexidade teórica, parece se aproximar em alguns pontos, com a fala de Celso, no que cerne ao objetivo artístico / pedagógico do material acerca do programa, que pretende desenvolver a criação de processos emancipatórios, instaurando uma metodologia de processos criativos, em que tal investigação constante de práticas emancipatórias tenha como objetivo central do programa, a instauração de novas formas de convivência coletiva, territórios de aprendizado e de transformações mútuas.

E por que o interesse em ressaltar as premissas pedagógicas do material norteador e articular com a entrevista de Celso Frateschi?

Inicialmente, a dúvida - sobre o que escrever, por que, para que, para quem, o que é importante / necessário ser expresso – foi grande. Construí, destruí, reconstruí várias vezes o meu ensaio, pois a pulsação mudava-se / moldava-se á cada nova experiência. E por se permitir estabelecer relações de afetos e ser movida pelas sensações, decidi escolher este caminho, diante de alguns desconfortos, questionamentos e ocorrências existentes no trajeto.   
Para tanto, antes de tentar responder, ou provocar ainda mais inquietações, diante da indagação suscitada, situarei minimamente o meu ingresso no Programa Vocacional, á iniciar pela convocação no edital de chamamento, que foi realizado aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, o que ocasionou a atuação no equipamento com os Vocacionados, somente no mês de Maio.

A chegada em solo desconhecido: Parelheiros - distrito localizado no extremo sul da cidade de São Paulo. É o segundo maior distrito da cidade em extensão territorial, embora seja pouco povoado. Tem a maior parte da área coberta por reservas ambientais de mata atlântica. Distancia-se de quinze a 25 quilômetros de Itanhaém (de um mirante situado no Parque Estadual da Serra do Mar é possível avistar Itanhaém – divisa de 10 km do mar) e de São Vicente - também no litoral - e de cinquenta a sessenta quilômetros do centro de São Paulo. Segundo dados do IBGE, uma área de 360,6 km², representando quase que 25% dos 1.523,278 km² da cidade de São Paulo, com muitas nascentes de água, que fizeram brotar vários pesqueiros e que alimentam as represas Billings e Guarapiranga.

Sendo assim era tudo novo, um caminho a ser descoberto, desde o primeiro contato com a instituição em que seria desenvolvida a orientação – CEU Parelheiros – um bairro afastado do centro de São Paulo, um trajeto distante, um lugar aparentemente esquecido e infelizmente ainda visto de forma preconceituosa e redutível por algumas pessoas. Parece que este bairro, ou distrito, como algumas fontes colocam, está tornando-se visível, principalmente por concentrar uma das maiores reservas ambientais urbanas do mundo – a Área de Proteção Ambiental Capivari Monos – tombada pela UNESCO como um patrimônio da humanidade, além das duas tribos indígenas existentes na região. Porém, ainda há muita precariedade ao que se refere aos serviços de educação, saúde e cultura.
Embora as questões institucionalizadas e burocráticas atravessem muitas vezes o processo, senti-me acolhida e aos poucos o sentimento de pertencimento foi sendo construído, assim como o desejo em realizar um belo trabalho. Interessante expor o quanto fui e permaneço sendo afetada por este novo lugar e pelas pessoas ás quais os vínculos foram criados. A afetação corpórea inicia-se no trajeto, uma viagem que permite a contemplação da natureza – árvores, animais – e impõe um ritmo outro. Me remete ao princípio de Espinosa (apud Deleuze) – em que coloca uma única Natureza para todos os corpos, todos os indivíduos, em que ela mesma é um individuo, dentro de suas variações de maneiras, ou seja, é um plano comum de imanência, em que estão todos os corpos, todas as almas e indivíduos. Expresso este pensamento de Espinosa (apud Deleuze) para contextualizar que para o autor, os corpos são modos e não substâncias e nem sujeitos. Entende-se como modo – “...uma relação complexa de velocidade e de lentidão, no corpo ou do pensamento, e é um poder de afetar e de ser afetado, do corpo ou do pensamento” (extraído do texto “Deleuze, Espinosa e Nós”, do livro Mil Platôs, vol 3). Segundo o pensador, nunca se sabe com antecedência os afetos de que é capaz, sendo assim, trata-se de uma construção de uma história de experimentação, no plano da imanência ou da consistência.
É um livro com as folhas em branco, esperando a construção de uma história. E foi deste jeito que cheguei, de forma tímida, sem saber por onde começar e sem se dar conta de que já havia começado. O vento já direcionava o barquinho!

Sigamos...
Depois de ter situado um pouco do meu trajeto, voltemos ao questionamento inicial, sobre os motivos pelos quais tento refletir uma articulação entre as premissas do material artístico pedagógico com a entrevista de Celso Frateschi.
O material norteador é algo muito bem escrito e embasado - em minha opinião - em que algumas reflexões fazem muito sentido, embora em alguns momentos, parece distanciar-se / destoar-se um pouco do trabalho realizado na prática, visto que, problemas emergentes durante o ano afetam aqueles que estão na ponta – vocacionados, artista orientador, artista coordenador, equipe – e que, em minha opinião, precisariam ser vistos e ouvidos com mais afago, pois são situações que podem ser ameaçadoras á continuidade do programa e que esbarram (de forma negativa) com a intencionalidade inicial á que veio.
Acredito que a lógica do sentido se faz do micro para o macro e não o contrário. As relações de conexões estabelecidas acontecem (ou deveriam acontecer) na ponta. Escrevo isso diante da forma esquizofrênica em que as situações ocorrem. Reuniões gerais em que se levantam muitas temáticas importantes e necessárias, inclusive para a permanência do programa, mas que logo se perde e se vai como uma breve chuva de verão. A impressão que tenho é a de que se congela na discussão, pela própria discussão, sem uma reflexão minuciosa e crítica, que propõe possíveis caminhos a serem traçados, experimentados, vivenciados, mudados... Parece que mais uma vez distancia-se do formato inicial do Programa, que segundo Celso, era zelado com discussões, reuniões de formação, conversas, em que se buscava a verticalização e, os encontros entre os artistas vocacionais eram recorrentes. Atualmente tem-se a sensação de uma cisão do programa com a estrutura administrativa.
Com isso, na visão macro, existe uma distancia gigante com o que está acontecendo na ponta, com os vocacionados, pois fala-se tanto em questões relacionadas inclusive á Políticas Públicas e se esquece de observar, analisar e acompanhar em uma relação mais próxima, as dificuldades existentes no micro, que muitas vezes parte de uma simples sala, um espaço para a realização do trabalho – difícil ocupar um espaço – que é público (ou que deveria ser). Situações absurdas ocorridas nos equipamentos, segundo relatos vivos dos próprios colegas da equipe, que vão desde a exigência do RG para entrada no espaço – que é (ou que deveria ser) público, à pedidos de um número de Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica - sim, um CNPJ para ocupar um espaço que é (ou que deveria ser) público.
Estas ocorrências me levam a pensar na fala de Frateschi frente ao programa, de que o foco inicial era pautado no desenvolvimento do cidadão. De que desenvolvimento e de que ou qual ser humano está se falando? Celso ainda menciona Brecht, que defende que a relação entre o cidadão e o teatro de forma pensada e realizada é tão necessária quanto respirar e comer. Ainda durante a entrevista, o ator, diretor e dramaturgo, discorre um pouco acerca da preocupação de grandes autores da Grécia até á atualidade, em que pautam suas pesquisas na compreensão das relações humanas e sociais, assim como suas transformações ao longo das épocas. O Teatro Vocacional surgiu com um entendimento de algo não comercial, em que o foco sempre era no cidadão e não no consumidor, em que pretendia-se á partir do teatro, desenvolver um processo de conhecimento criativo com a população da cidade.  
Ressalto aqui que não defendo partido algum e que meu ensaio – as gotas de um oceano - se faz á partir do meu olhar acerca da entrevista realizada com Celso Frateschi, que me afeta e faz sentido, pois ele parte de uma contextualização, que infelizmente não é mais a realidade de hoje. De acordo com Celso, á partir do governo de Serra, houve uma ruptura da ideia de pensar em teatro para o município, visto que, os CEU’s deixaram de fazer parte da Cultura, rompendo assim o projeto de Formação de Público, as ocupações dos teatros e a tentativa de findar com o Vocacional e com o Fomento. O mesmo ainda diz que se acreditava no Vocacional pela busca que se tinha em desenvolver o lado crítico do cidadão, á partir de seu processo criativo.
Frateschi conta que o diálogo dos artistas com os equipamentos, sempre foi algo bem difícil e lança a provocação de que a função do artista tende a se exercer de forma crítica e livre, tendo como grande função descobrir o que está encoberto. O mesmo expõe a sua felicidade diante da permanência do programa e diz que acredita que este ainda existe, possivelmente pela insistência dos artistas orientadores e dos artistas vocacionados.
Por ser o meu primeiro ano no Programa e por não ter tido nenhum contato anterior mais aprofundado com a proposta, pouco conhecia de sua militância. É importante e necessário explicitar isso aos novos artistas, visto que, nos deparamos com algo que vai além do que é escrito como disparadores no material norteador. Somos mais do que Artistas Orientadores – somos colocados em um lugar de educador ou des-educador e que constantemente precisa criar um jogo de cintura para lidar com todos os obstáculos que surgem no meio do caminho, principalmente relacionado ao equipamento. Incomodou-me muito a falta de espaço e de recursos para a realização das atividades. Ou seja, fala-se em uma proposta que parte de uma ideia de emancipação do sujeito, mas que não se tem a premissa, que acredito ser o pertencimento – o reconhecimento como ser pensante, pertencente á um espaço. Às vezes até parece existir um movimento por parte da instituição em contribuir com o Programa, mas penso que se faz necessário uma melhor compreensão sobre o que é o Vocacional, assim como os recursos necessários para a realização do trabalho na linguagem. Por exemplo – pensando em processos criativos e de experimentações é importante ter um espaço em que se possa ouvir o silêncio, ou que se tenham os ruídos, desde que isso seja uma escolha. Um aparelho de som, para o uso de músicas / sons como estímulos é outra questão – ou seja, parece ser o mínimo e tão óbvio. Como um professor de dança consegue desenvolver a sua proposta, se no equipamento não existe o recurso primordial para o desenvolvimento da orientação – um aparelho de som? Cabe ao Artista Orientador “se virar” e resolver o conflito ou, esta questão faz parte de uma falta de comunicação, de combinados, da Secretaria da Cultura / Prefeitura de São Paulo com os equipamentos? – Estas são algumas das situações que dificultam o próprio processo criativo do orientador e do orientando.
Compartilho da sensação de Frateschi, de que as Políticas Públicas de hoje parecem piores do que as de antes e que é uma característica de nossa cultura política, destruir o que veio antes. Tal dinâmica acaba reverberando em algumas propostas criadas para o município, como a descontinuidade do Programa Vocacional. Seria muito interessante a criação de políticas de Estado, como coloca Celso e acrescento a importância em ter espaços para a permanência de grupos no próprio equipamento, o que possibilitaria uma ideia de continuidade do processo “iniciado”, provocado no Vocacional, pelo menos ao que cerne ao trabalho / pesquisa / criação desenvolvida. Ainda sobre Celso - relata que a constituição de um grupo gera-se tensão e que o problema precisa ser resolvido, daí penso na autonomia que deveria ser desenvolvida, partindo de condições para os ensaios (principalmente na ausência do Artista Orientador), em que não ocupasse um lugar de “favor”, pois falamos de equipamentos públicos (ou que deveria ser).
E para encaminhar as últimas gotas para o oceano que se constrói, mesmo diante de algumas tempestades durante o percurso, o barco remou e construiu belos caminhos. A minha felicitação diante do processo realizado com o grupo e com a turma é grande. Estar com os Vocacionados transcende qualquer relação de contrato formal, parte dos encontros, das trocas e das relações de afetações. O meu pensamento se encontra com o de Frateschi quando este diz que não importa que seja um dia vivenciado de Teatro Vocacional, mas que este dia possa ter potencial de ser enriquecido para a existência de quem experimentou. A intencionalidade não é a montagem de um espetáculo e muito menos a formação de grupos. Valoriza-se o processo, o encontro, que pode alterar o indivíduo e possibilitar muitas descobertas, partindo dos estímulos, das provocações do Artista Orientador, que tem como compromisso, perceber as vontades dos grupos e tentar intervir da forma mais próxima possível.  


E em meio ao oceano, gotas foram se destacando e dando forma á escrita deste Ensaio... 

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