Construção do Ensaio – Gotas de um oceano - Artista Orientadora: Sheila de Sousa Leandro
Construção do Ensaio – Gotas de um oceano
Vocacional 2014 –
memorial da experiência de uma artista orientadora em seu primeiro ano no
Programa e a reflexão acerca da entrevista realizada com Celso Frateschi em
agosto do mesmo ano.
Artista Orientadora:
Sheila de Sousa Leandro (scheila_leandro@yahoo.com.br)
Equipamento: CEU
Parelheiros
Grupo: Bosta? Tipo Merda
no Teatro – Sábado das 10h ás 13h
Turma: Sábado das 14h ás
17h
Em meu primeiro ano como Artista
Orientadora, dos treze já existentes do Programa, deparei-me com incômodos,
desafios, conquistas e questionamentos acerca da proposta do programa - o lugar
que ele ocupa na cidade de São Paulo (ou que deveria ocupar), assim como os
entraves existentes no meio do caminho, principalmente os de caráter político e
institucional.
De acordo com Celso Frateschi, em
entrevista realizada em agosto de 2014, no Tendal da Lapa, a fim de resgatar um
pouco da origem da instauração do programa na cidade, o mesmo relata que em
2002, ao tornar-se Secretário da Cultura, o que foi de extrema importância
para “a ampliação e solidificação do projeto Vocacional” (apud
Frateschi), existia um projeto de governo, não sendo assim uma ação isolada,
pautada em interesses próprios. A proposta era “de privilégio do
cidadão e das relações de cidadania” (apud Frateschi), esperava-se
assim, que o indivíduo exercesse a sua “humanidade, cidadania e
civilidade” (apud Frateschi). Segundo o ex-secretário, havia um tripé
na área cultural, sendo: formar um cidadão (socialização das formas
artísticas); favorecer os meios de produção artística (ideia não apenas de
consumir, mas de ser o próprio individuo o produtor) e possibilitar a produção
artística (sem interesse no mercado, poder se manifestar). Com este pensamento,
no governo Marta, surgiram os CEU’s – Centro Educacional Unificado – que
compreendia a educação como uma maneira de emancipação, em que se tinha como
objetivo, proporcionar espaços em que as comunidades pudessem desfrutar e
desenvolver as suas capacidades humanas. Tudo isso sendo dialogado entre as
três Secretarias – a da Educação, da Cultura e do Esporte. Ou seja, o projeto
Teatro Vocacional foi idealizado como parte de um conjunto de políticas para o
teatro paulistano.
Diante desta breve contextualização da origem do que era ainda um
projeto, tentarei articular um pouco neste primeiro momento, com as reflexões
elaboradas á partir do material norteador, um disparador que, embora diante de
toda a sua complexidade teórica, parece se aproximar em alguns pontos, com a
fala de Celso, no que cerne ao objetivo artístico / pedagógico do material
acerca do programa, que pretende desenvolver a criação de processos
emancipatórios, instaurando uma metodologia de processos criativos, em que tal investigação
constante de práticas emancipatórias tenha como objetivo central do programa, a
instauração de novas formas de convivência coletiva, territórios de aprendizado
e de transformações mútuas.
E por que o interesse em ressaltar as premissas pedagógicas do material
norteador e articular com a entrevista de Celso Frateschi?
Inicialmente, a dúvida
- sobre o que escrever, por que, para que, para quem, o que é importante /
necessário ser expresso – foi grande. Construí, destruí, reconstruí várias vezes
o meu ensaio, pois a pulsação mudava-se / moldava-se á cada nova experiência. E
por se permitir estabelecer relações de afetos e ser movida pelas sensações,
decidi escolher este caminho, diante de alguns desconfortos, questionamentos e
ocorrências existentes no trajeto.
Para tanto, antes de tentar responder, ou provocar ainda mais
inquietações, diante da indagação suscitada, situarei minimamente o meu
ingresso no Programa Vocacional, á iniciar pela convocação no edital de
chamamento, que foi realizado aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, o
que ocasionou a atuação no equipamento com os Vocacionados, somente no mês de
Maio.
A chegada em solo
desconhecido: Parelheiros - distrito localizado no extremo sul da cidade de São
Paulo. É o segundo maior distrito da cidade em extensão territorial, embora
seja pouco povoado. Tem a maior parte da área coberta por reservas
ambientais de mata atlântica. Distancia-se de quinze a 25 quilômetros
de Itanhaém (de um mirante situado no Parque Estadual da Serra do Mar é
possível avistar Itanhaém – divisa de 10 km do mar) e de São Vicente - também
no litoral - e de cinquenta a sessenta quilômetros do centro de São Paulo.
Segundo dados do IBGE, uma área de 360,6 km², representando quase que 25%
dos 1.523,278 km² da cidade de São Paulo, com muitas nascentes de água, que
fizeram brotar vários pesqueiros e que alimentam as represas Billings e
Guarapiranga.
Sendo assim era tudo novo, um caminho a ser descoberto, desde o primeiro
contato com a instituição em que seria desenvolvida a orientação – CEU
Parelheiros – um bairro afastado do centro de São Paulo, um trajeto distante,
um lugar aparentemente esquecido e infelizmente ainda visto de forma
preconceituosa e redutível por algumas pessoas. Parece que este bairro, ou
distrito, como algumas fontes colocam, está tornando-se visível, principalmente
por concentrar uma das maiores reservas ambientais urbanas do mundo – a Área de
Proteção Ambiental Capivari Monos – tombada pela UNESCO como um patrimônio da
humanidade, além das duas tribos indígenas existentes na região. Porém, ainda
há muita precariedade ao que se refere aos serviços de educação, saúde e
cultura.
Embora as questões institucionalizadas e burocráticas atravessem muitas
vezes o processo, senti-me acolhida e aos poucos o sentimento de pertencimento
foi sendo construído, assim como o desejo em realizar um belo trabalho.
Interessante expor o quanto fui e permaneço sendo afetada por este novo lugar e
pelas pessoas ás quais os vínculos foram criados. A afetação corpórea inicia-se
no trajeto, uma viagem que permite a contemplação da natureza – árvores,
animais – e impõe um ritmo outro. Me remete ao princípio de Espinosa (apud
Deleuze) – em que coloca uma única Natureza para todos os corpos, todos os
indivíduos, em que ela mesma é um individuo, dentro de suas variações de
maneiras, ou seja, é um plano comum de imanência, em que estão todos os corpos,
todas as almas e indivíduos. Expresso este pensamento de Espinosa (apud
Deleuze) para contextualizar que para o autor, os corpos são modos e não
substâncias e nem sujeitos. Entende-se como modo – “...uma relação
complexa de velocidade e de lentidão, no corpo ou do pensamento, e é um poder
de afetar e de ser afetado, do corpo ou do pensamento” (extraído do
texto “Deleuze, Espinosa e Nós”, do livro Mil Platôs, vol 3). Segundo o
pensador, nunca se sabe com antecedência os afetos de que é capaz, sendo assim,
trata-se de uma construção de uma história de experimentação, no plano da
imanência ou da consistência.
É um livro com as folhas em branco, esperando a construção de uma
história. E foi deste jeito que cheguei, de forma tímida, sem saber por onde
começar e sem se dar conta de que já havia começado. O vento já direcionava o
barquinho!
Sigamos...
Depois de ter situado
um pouco do meu trajeto, voltemos ao questionamento inicial, sobre os motivos
pelos quais tento refletir uma articulação entre as premissas do material
artístico pedagógico com a entrevista de Celso Frateschi.
O material norteador é algo muito bem escrito e embasado - em minha
opinião - em que algumas reflexões fazem muito sentido, embora em alguns
momentos, parece distanciar-se / destoar-se um pouco do trabalho realizado na
prática, visto que, problemas emergentes durante o ano afetam aqueles que estão
na ponta – vocacionados, artista orientador, artista coordenador, equipe – e
que, em minha opinião, precisariam ser vistos e ouvidos com mais afago, pois
são situações que podem ser ameaçadoras á continuidade do programa e que
esbarram (de forma negativa) com a intencionalidade inicial á que veio.
Acredito que a lógica do sentido se faz do micro para o macro e não o
contrário. As relações de conexões estabelecidas acontecem (ou deveriam
acontecer) na ponta. Escrevo isso diante da forma esquizofrênica em que as situações
ocorrem. Reuniões gerais em que se levantam muitas temáticas importantes e
necessárias, inclusive para a permanência do programa, mas que logo se perde e
se vai como uma breve chuva de verão. A impressão que tenho é a de que se congela
na discussão, pela própria discussão, sem uma reflexão minuciosa e crítica, que
propõe possíveis caminhos a serem traçados, experimentados, vivenciados,
mudados... Parece que mais uma vez distancia-se do formato inicial do Programa,
que segundo Celso, era zelado com discussões, reuniões de formação, conversas,
em que se buscava a verticalização e, os encontros entre os artistas vocacionais
eram recorrentes. Atualmente tem-se a sensação de uma cisão do programa com a
estrutura administrativa.
Com isso, na visão macro, existe uma distancia gigante com o que está
acontecendo na ponta, com os vocacionados, pois fala-se tanto em questões
relacionadas inclusive á Políticas Públicas e se esquece de observar, analisar
e acompanhar em uma relação mais próxima, as dificuldades existentes no micro,
que muitas vezes parte de uma simples sala, um espaço para a realização do
trabalho – difícil ocupar um espaço – que é público (ou que deveria ser).
Situações absurdas ocorridas nos equipamentos, segundo relatos vivos dos
próprios colegas da equipe, que vão desde a exigência do RG para entrada no
espaço – que é (ou que deveria ser) público, à pedidos de um número de Cadastro
Nacional de Pessoa Jurídica - sim, um CNPJ para ocupar um espaço que é (ou que
deveria ser) público.
Estas ocorrências me levam a pensar na fala de Frateschi frente ao
programa, de que o foco inicial era pautado no desenvolvimento do cidadão. De
que desenvolvimento e de que ou qual ser humano está se falando? Celso ainda
menciona Brecht, que defende que a relação entre o cidadão e o teatro de forma
pensada e realizada é tão necessária quanto respirar e comer. Ainda durante a
entrevista, o ator, diretor e dramaturgo, discorre um pouco acerca da
preocupação de grandes autores da Grécia até á atualidade, em que pautam suas
pesquisas na compreensão das relações humanas e sociais, assim como suas
transformações ao longo das épocas. O Teatro Vocacional surgiu com um
entendimento de algo não comercial, em que o foco sempre era no cidadão e não
no consumidor, em que pretendia-se á partir do teatro, desenvolver um processo
de conhecimento criativo com a população da cidade.
Ressalto aqui que não defendo partido algum e que meu ensaio – as gotas
de um oceano - se faz á partir do meu olhar acerca da entrevista realizada com
Celso Frateschi, que me afeta e faz sentido, pois ele parte de uma
contextualização, que infelizmente não é mais a realidade de hoje. De acordo
com Celso, á partir do governo de Serra, houve uma ruptura da ideia de pensar
em teatro para o município, visto que, os CEU’s deixaram de fazer parte da
Cultura, rompendo assim o projeto de Formação de Público, as ocupações dos
teatros e a tentativa de findar com o Vocacional e com o Fomento. O mesmo ainda
diz que se acreditava no Vocacional pela busca que se tinha em desenvolver o lado
crítico do cidadão, á partir de seu processo criativo.
Frateschi conta que o diálogo dos artistas com os equipamentos, sempre
foi algo bem difícil e lança a provocação de que a função do artista tende a se
exercer de forma crítica e livre, tendo como grande função descobrir o que está
encoberto. O mesmo expõe a sua felicidade diante da permanência do programa e
diz que acredita que este ainda existe, possivelmente pela insistência dos
artistas orientadores e dos artistas
vocacionados.
Por ser o meu primeiro ano no Programa e por não
ter tido nenhum contato anterior mais aprofundado com a proposta, pouco
conhecia de sua militância. É importante e necessário explicitar isso aos novos
artistas, visto que, nos deparamos com algo que vai além do que é escrito como
disparadores no material norteador. Somos mais do que Artistas Orientadores –
somos colocados em um lugar de educador ou des-educador e que constantemente
precisa criar um jogo de cintura para lidar com todos os obstáculos que surgem
no meio do caminho, principalmente relacionado ao equipamento. Incomodou-me
muito a falta de espaço e de recursos para a realização das atividades. Ou
seja, fala-se em uma proposta que parte de uma ideia de emancipação do sujeito,
mas que não se tem a premissa, que acredito ser o pertencimento – o reconhecimento
como ser pensante, pertencente á um espaço. Às vezes até parece existir um
movimento por parte da instituição em contribuir com o Programa, mas penso que
se faz necessário uma melhor compreensão sobre o que é o Vocacional, assim como
os recursos necessários para a realização do trabalho na linguagem. Por exemplo
– pensando em processos criativos e de experimentações é importante ter um
espaço em que se possa ouvir o silêncio, ou que se tenham os ruídos, desde que
isso seja uma escolha. Um aparelho de som, para o uso de músicas / sons como
estímulos é outra questão – ou seja, parece ser o mínimo e tão óbvio. Como um
professor de dança consegue desenvolver a sua proposta, se no equipamento não
existe o recurso primordial para o desenvolvimento da orientação – um aparelho
de som? Cabe ao Artista Orientador “se virar” e resolver o conflito ou, esta
questão faz parte de uma falta de comunicação, de combinados, da Secretaria da
Cultura / Prefeitura de São Paulo com os equipamentos? – Estas são algumas das
situações que dificultam o próprio processo criativo do orientador e do
orientando.
Compartilho da sensação de Frateschi, de que as Políticas
Públicas de hoje parecem piores do que as de antes e que é uma característica
de nossa cultura política, destruir o que veio antes. Tal dinâmica acaba reverberando
em algumas propostas criadas para o município, como a descontinuidade do
Programa Vocacional. Seria muito interessante a criação de políticas de Estado,
como coloca Celso e acrescento a importância em ter espaços para a permanência de
grupos no próprio equipamento, o que possibilitaria uma ideia de continuidade
do processo “iniciado”, provocado no Vocacional, pelo menos ao que cerne ao trabalho
/ pesquisa / criação desenvolvida. Ainda sobre Celso - relata que a constituição
de um grupo gera-se tensão e que o problema precisa ser resolvido, daí penso na
autonomia que deveria ser desenvolvida, partindo de condições para os ensaios
(principalmente na ausência do Artista Orientador), em que não ocupasse um
lugar de “favor”, pois falamos de equipamentos públicos (ou que deveria ser).
E para encaminhar as últimas
gotas para o oceano que se constrói, mesmo diante de algumas tempestades durante
o percurso, o barco remou e construiu belos caminhos. A minha felicitação
diante do processo realizado com o grupo e com a turma é grande. Estar com os
Vocacionados transcende qualquer relação de contrato formal, parte dos
encontros, das trocas e das relações de afetações. O meu pensamento se encontra
com o de Frateschi quando este diz que não importa que seja um dia vivenciado
de Teatro Vocacional, mas que este dia possa ter potencial de ser enriquecido
para a existência de quem experimentou. A intencionalidade não é a montagem de
um espetáculo e muito menos a formação de grupos. Valoriza-se o processo, o
encontro, que pode alterar o indivíduo e possibilitar muitas descobertas, partindo
dos estímulos, das provocações do Artista Orientador, que tem como compromisso,
perceber as vontades dos grupos e tentar intervir da forma mais próxima possível.
E em meio ao oceano,
gotas foram se destacando e dando forma á escrita deste Ensaio...
Marcadores: Parelheiros; Vocacioanal; Celso Frateschi;Bosta?Tipo merda no Teatro;Oceano
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial