domingo, 30 de novembro de 2014

ensaio luciano

A ESCRITA DE SI COMO OBJETO DE PESQUISA

PROGRAMA VOCACIONAL – Edição 2014
Equipe LESTE 04 – Projeto Teatro
Luciano Gentile

Preâmbulo... deve ser lido como COMPLETAMENTE INCOMPLETO...

O que tenho em mãos é somente um objeto imaterial. Nada mais.
Mas é fato que o que tenho vem das materialidades que observei ao longo desta edição do Programa Vocacional. Tenho uma OBSERVAÇÃO em mãos: a observação sobre as expressividades, não só daquelas vistas durante minhas visitas como coordenador de equipe em aulas, encontros, mostras; mas também as expressividades de uma equipe, dos corpos/seres no momento equipe.
E esse agora meu objeto imaterial me proporcionou uma ideia: será possível desenvolvermos uma metodologia para expormos os mecanismos que organizam a expressividade de cada um de nós? E tal exposição com uma perspectiva cênica? Eis meu ponto, eis minha tentativa.
A minha primeira especulação gira no óbvio que a expressividade está relacionada à formação, às experiências, às vivências, etc., enfim... aquilo tudo que pode compor um sujeito. Então pensei: e se fosse possível ver a expressividade de alguém logo após este mesmo alguém já ter exposto toda a sua expressividade? O que seria expresso? Claro que o que me interessava era observar para além das atitudes e pensamentos expressos, para além da expressividade condizente a um mundo onde tudo é vendido ou comprado. Penso agora que foi essa a minha atitude frente as atividades do programa, ainda mais quando penso que esta edição foi para mim como a LISBOA REVISITADA do Fernando Pessoa. Permaneci tantos anos no extremo leste da cidade de São Paulo... Fui artista-orientador na Penha, em São Miguel, na Vila Curuçá, fui coordenador no Jardim Romano, no Veredas, no Parque São Carlos, tudo que para mim parecia já sabido, não era. Sorte minha ter as lindas pessoas que comigo estiveram e me fizeram ver que Lisboa nunca é a mesma Lisboa. Essa situação nova sempre expõe velhas questões com roupas novas em constante ajuste e reajuste de cores.
Enfim... só reafirmo que tal condição, ter uma equipe nova em um velho lugar já conhecido, fez com que o objeto que tenho em mãos ficasse mais à vista. Meu interesse cresceu mais ainda. Subitamente, alguns restos de pensamentos em mim começaram a se articular como quando o mercúrio de espalha pelo chão: a expressividade é construída, daí, ela pode ser legítima e não, ao mesmo tempo.
É pena somente que tenhamos ainda dois problemas/desafios:
- nossas quatros horas mensais foram uma conquista para estudarmos, sem a necessidade de postagem;
- não encontramos ainda o espaço para articular o passado, o presente e o futuro: precisamos sempre ser propositivos, como se as propostas surgissem de um nada idílico;

O que me cabe... um resumo... até onde pude chegar...

O presente ensaio visa apontar para uma metodologia de trabalho artística por meio da qual o ator possa ter consciência de seu próprio processo criativo, de sua própria maneira de criar, de seu conceber cenicamente algo, de seu próprio se relacionar com o mundo em que ele vive de uma forma estética. Para tanto, parte de uma investigação sobre a técnica da Escrita de Si, especificamente sobre os hupomnêmata (cadernetas de anotações) e as correspondências, segundo texto homônimo do filósofo francês Michel Foucault. Assim, pretende desenvolver a noção de Escritura Cênica de Si como uma perspectiva de treinamento para o ator das artes da cena ao vivo. Se no texto do estudioso francês a escrita se manifesta no papel, aqui a escrita necessitará se manifestar como escritura do aqui e agora da cena viva.
Claro que não darei conta disso aqui. Mas nem é esse o intuito. Tive cunhar antes um operador... daí veio a ideia de ESCRITURA CÊNICA.

O ponto a ser visto... MELHOR SERIA SER AO PARA TAL EMPRESA

A escritura (ou arte) cênica é o modo de usar o aparelho cênico para pôr em cena – “em imagens e em carne” – as personagens, o lugar e a ação que aí se desenrola. Esta “escritura” (no sentido atual de estilo ou maneira pessoal de exprimir-se) evidentemente nada tem comparável com a escritura do texto: ela designa, por metáfora, a prática da encenação, a qual dispõe de instrumentos, materiais e técnicas específicos para transmitir um sentido ao espectador.

Do verbete ESCRITURA CÊNICA – Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis.

Há um texto escrito por Michel Foucault em 1983 intitulado A Escrita de Si. Nesse material, logo em seu início, o filósofo francês nos indica que as reflexões que virão a seguir fazem parte de uma série de estudos sobre “as artes de si mesmo”; conceito este que o próprio autor defini como “a estética da existência e o domínio de si e dos outros”. Cabe lembrar que esses estudos fazem parte de um período do trabalho de Foucault onde ele se dedica a uma investigação histórica das relações entre subjetividade e verdade. E que, para tanto, ele parte da noção de Cuidado de Si na filosofia greco-romana para descrever técnicas por meio das quais um sujeito poderia construir uma determinada relação consigo mesmo para dar forma a sua existência, e assim estabelecer sua relação com o mundo e com os outros, de uma forma regrada, que implicaria um treino contínuo.
Esse texto do início da década de 80 do século passado inicia sua reflexão citando um antigo escrito da literatura cristã que versa sobre a necessidade da escrita como algo indispensável para uma vida ascética. E dentro dessa perspectiva há uma certa ênfase não somente para a descrição das ações do indivíduo, mas também sobre a descrição de seus próprios pensamentos: “o constrangimento que a presença de outro exerce na ordem da conduta a escrita o exercerá na ordem dos movimentos interiores da alma”, ou, “a escrita constitui uma experiência e uma espécie de pedra de toque: revelando os movimentos do pensamento...”.
No entanto, não é objetivo de Foucault permanecer nesse clássico do cristianismo, mas o utilizar tão somente para ressaltar aspectos desse trabalho cristão que o ajudarão a refletir sobre a técnica da Escrita de Si como um possível procedimento para o exercício do Cuidado de Si na antiguidade greco-romana. São esses os aspectos: a relação com o outro, a aplicação aos movimentos do pensamento, e a possível função como prova da verdade.
Evidentemente que esses pontos aparecerão no período que antecede o cristianismo de maneira diferente, no entanto, eles já contém o mesmo princípio do exemplo cristão: a estética da existência.
Nesse ponto o estudo sobre a Escrita de Si realizado por Foucault irá se deter até seu fim em apenas duas técnicas específicas que envolvem o ato da escrita, e que problematizam ambas a relação entre subjetividade e verdade: os hupomnêmata (ou cadernetas de anotações) e as correspondências.
Os dois procedimentos, como técnicas que existem desde a antiguidade, apontam para uma tentativa de dar forma, clareza e verdade para a própria existência. Se os hupomnêmata são escritos que necessitam não serem encarados como “uma espécie de armário de lembranças”, mas sim serem vistos como algo importante para a subjetivação do discurso; também a correspondência, a carta, precisa ser vista da mesma forma, como um mote para o próprio movimento do sujeito: “a carta que se envia age, por meio do próprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia, assim como, pela leitura e releitura, ela age sobre aquele que a recebe”. E, “a carta que é enviada para ajudar seu correspondente”, por exemplo, “aconselhá-lo, exortá-lo, admoestá-lo, consolá-lo – constitui para aquele que escreve uma espécie de treino: um pouco como os soldados em tempos de paz se exercitam no manejo de armas, os conselhos que são dados aos outros na urgência de sua situação são uma forma de preparar a si próprio para uma eventualidade semelhante”.

De fato, agora minha ESPECULAÇÃO... por tudo que presencie nesta edição...
Cabe aqui incluir reuniões/encontros com Eduardo Sena, Mica, outros coordenadores de diferentes projetos e a incrível mise-en-scène na câmara dos vereadores...

Posto tal contexto acima, a ideia deste ensaio é verificar a possibilidade de realizar escritas de si para além do papel, realizar escritas de si na própria cena, um escrever a cena na própria cena; com o mesmo caráter de subjetivação do discurso. Para tanto o verbete ESCRITURA CÊNICA do Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis, pode ser utilizado como um conceito operador para dar dimensão do que pode vir a ser um Escritura Cênica de Si. Noção esta que poderá ser tanto hupomnêmata como correspondência que se utilizarão não da palavra escrita no papel, mas que acionarão todos os possíveis elementos que compõem a cena ao vivo. Nesse sentido, a cena não precisa ser vista com um início, meio e fim, como algo acabado. Ou como uma unidade de tempo, espaço e ação. Também o fragmento, a imagem cênica, poderão servir como um caminho para a revelação do processo criativo do próprio ator. Assim, o ponto é como escrever os movimentos do próprio pensamento, da “alma”, não se utilizando de papel, mas da materialidade cênica.

Há relevância isso?
Vamos levar em consideração a tanto políticas públicas eventuais, essas sabemos que existem, quantos as políticas públicas processuais...

O Cuidado de Si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência.

Do curso A Hermenêutica do Sujeito ministrado por Michel Foucault entre o fim de 1981 e o começo de 1982.

No prólogo do livro O teatro pós-dramático, do alemão Hans-Thies Lehmann, há uma premissa fundamental para se compreender sobre o que o autor pretende discernir no decorrer de seu trabalho e, ao mesmo tempo, essa premissa poderá ser aqui vista como o início de uma questão para o ator contemporâneo, especificamente no que tange a que tipo de preparo deve ter esse atuante dos dias de hoje então. A premissa de Lehmann é: o modo de percepção se deslocou, “a percepção simultânea e multifocal substituiu a linear-sucessiva; uma percepção ao mesmo tempo mais superficial e mais abrangente tomou o lugar da percepção centrada, mais profunda, cujo paradigma era a leitura do texto literário”. Se no texto alemão a intenção a partir dessa constatação é “desenvolver uma lógica estética do novo teatro”, que ele defini como a prática cênica desenvolvida a partir dos anos 1970, para este projeto de pesquisa a mesma premissa servirá para investigar que metodologia de trabalho para o ator poderia dar conta de uma percepção simultânea e multifocal.
Esse fenômeno da percepção mais abrangente não é algo dos anos recentes, faz já mais de um século que se observa seu desenvolvimento. Se olharmos para as pesquisas de Jerzy Grotowski, especificamente registradas no texto O treinamento do ator (1959 – 1962), o diretor polonês já aponta para uma percepção multifocal do mundo quando este afirma que estava procurando, naqueles anos, “uma técnica positiva ou, em outras palavras, um determinado método de formação capaz de dar conta objetivamente ao ator uma técnica criativa que se enraizasse na sua imaginação e em suas associações pessoais”. Sim, de certa forma, essas associações pessoais podem ser vistas hoje como uma percepção simultânea quando postas enfoque. No entanto, a continuação do raciocínio de Grotowski pode sugerir uma saída do entorno, uma fuga do que seria a relação com o outro. Pois diz o investigador polonês que “o ator deve descobrir as resistências e obstáculos que o prendem na sua forma criativa. Assim, os exercícios adquirem a possibilidade de sobrepujar os impedimentos pessoais”, e Grotowski ainda acrescenta que “através de uma adaptação pessoal dos exercícios, deve-se encontrar solução para a eliminação desses obstáculos, que variam de ator para ator”. Mas o ponto é que o obstáculo na sociedade contemporânea parece ser justamente o outro. Retornando à reflexão de Foucault, agora em sua Hermenêutica do Sujeito, o ser é em si uma relação com os outros, ou melhor, o sujeito pode ser visto como uma série de relações com seu entorno. Então, se caminharmos pela reflexão do diretor polonês, é possível chegarmos a duas conclusões, sobre o superar obstáculos: ou eliminar o outro, ou fugir da sociedade, quase como um misantropo. Evidentemente que há um certo sarcasmo nesses conclusões, pois significam ignorar uma reflexão mais profunda sobre o contexto que gerou tal movimento em Grotowski. Porém, o instigante está em olhar também para os obstáculos, também para os impedimentos, não para serem dissipados, mas como partes de uma visão multifocal, partes de um caleidoscópio. Como se fosse possível abrir mais duas janelas do programa Windows: uma chamada obstáculo, e outra chamada impedimento, não para eliminá-las, mas para se navegar por elas. Eis aqui uma perspectiva que justifica um trabalho sobre o procedimento da Escrita de Si.
O que é interessante de uma percepção de mundo simultânea e multifocal é justamente a possibilidade de construir um saber por meio do contato com a superfície, por meio do contato com o que é recebido, e com o que é vivenciado como experiência, como um aguilhão que tem a capacidade de suspender aquilo que se tem de mais certo, de mais estruturante do ser, para assim, reestruturar esse ser, ou, no mínimo, problematizar esse mesmo ser. Nesse sentido, o estudo de Foucault sobre a Escrita de Si, quando o filósofo francês fala que a escrita constitui “a elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de ação, e complementa que a escrita “é a operadora da transformação da verdade em éthos”, pode significar dizer que antes de uma intenção de superação de obstáculos, há a possibilidade de construção de um saber. Seria algo como que dizer por meio de um questionamento o que há de poesia em uma dificuldade, seja ela de qual ordem for. Como fazer do impedimento sua cena poética?
Dentro desse contexto, pensar sobre a possibilidade de uma Escritura Cênica de Si é pensar sobre a subjetivação do discurso cênico como metodologia de trabalho para o ator, como uma espécie de treino, independentemente desse atuante estar ou não dentro de um processo de montagem, ou, se dentro de um processo de montagem, independentemente de qual processo de montagem ele possa estar inserido.
Assim, a ideia de utilizar os mesmos princípios de uma Escrita de Si, segundo o texto homônimo de Foucault, para a elaboração de uma Escritura Cênica de Si, pode significar uma tentativa de treino contínuo para o atuante que, por sua vez, está inserido em um mundo agenciado por uma percepção simultânea e multifocal, sem que com isso se perda sua relação com o outro, sua relação com o entorno, sua relação com suas próprias dificuldades, que poderão talvez ganhar um estatuto poético.
Acredita-se que tal perspectiva de trabalho, que tal possível metodologia a partir da técnica da Escrita de Si, poderá também sistematizar o processo criativo do ator, clareando primeiramente qual o momento de sua trajetória artística e, em seguida, ajude-o a reunir o que se pôde ouvir ou ler, vivenciar ou perceber, conscientemente ou não com a única finalidade que nada mais é que a constituição de si, um cuidado de si.

...a escrita aparece regularmente associada à meditação, ao exercício do pensamento sobre ele mesmo que reativa o que ele sabe, torna presentes um princípio, uma regra ou um exemplo, reflete sobre eles, assimila-os, e assim se prepara para encarar o real.

Do estudo A Escrita de Si, de Michel Foucault


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