ensaio luciano
A ESCRITA DE SI COMO OBJETO DE PESQUISA
PROGRAMA VOCACIONAL – Edição 2014
Equipe LESTE 04 – Projeto Teatro
Luciano Gentile
Preâmbulo...
deve ser lido como COMPLETAMENTE INCOMPLETO...
O que tenho em mãos é somente
um objeto imaterial. Nada mais.
Mas é fato que o que tenho vem
das materialidades que observei ao longo desta edição do Programa Vocacional.
Tenho uma OBSERVAÇÃO em mãos: a observação sobre as expressividades, não só daquelas
vistas durante minhas visitas como coordenador de equipe em aulas, encontros,
mostras; mas também as expressividades de uma equipe, dos corpos/seres no
momento equipe.
E esse agora meu objeto
imaterial me proporcionou uma ideia: será possível desenvolvermos uma
metodologia para expormos os mecanismos que organizam a expressividade de cada
um de nós? E tal exposição com uma perspectiva cênica? Eis meu ponto, eis minha
tentativa.
A minha primeira especulação
gira no óbvio que a expressividade está relacionada à formação, às
experiências, às vivências, etc., enfim... aquilo tudo que pode compor um
sujeito. Então pensei: e se fosse possível ver a expressividade de alguém logo
após este mesmo alguém já ter exposto toda a sua expressividade? O que seria
expresso? Claro que o que me interessava era observar para além das atitudes e pensamentos
expressos, para além da expressividade condizente a um mundo onde tudo é
vendido ou comprado. Penso agora que foi essa a minha atitude frente as
atividades do programa, ainda mais quando penso que esta edição foi para mim
como a LISBOA REVISITADA do Fernando Pessoa. Permaneci tantos anos no extremo
leste da cidade de São Paulo... Fui artista-orientador na Penha, em São Miguel,
na Vila Curuçá, fui coordenador no Jardim Romano, no Veredas, no Parque São
Carlos, tudo que para mim parecia já sabido, não era. Sorte minha ter as lindas
pessoas que comigo estiveram e me fizeram ver que Lisboa nunca é a mesma
Lisboa. Essa situação nova sempre expõe velhas questões com roupas novas em
constante ajuste e reajuste de cores.
Enfim... só reafirmo que tal
condição, ter uma equipe nova em um velho lugar já conhecido, fez com que o
objeto que tenho em mãos ficasse mais à vista. Meu interesse cresceu mais
ainda. Subitamente, alguns restos de pensamentos em mim começaram a se
articular como quando o mercúrio de espalha pelo chão: a expressividade é
construída, daí, ela pode ser legítima e não, ao mesmo tempo.
É pena somente que tenhamos
ainda dois problemas/desafios:
- nossas quatros horas mensais foram uma
conquista para estudarmos, sem a necessidade de postagem;
- não encontramos ainda o espaço para articular
o passado, o presente e o futuro: precisamos sempre ser propositivos, como se
as propostas surgissem de um nada idílico;
O que
me cabe... um resumo... até onde pude chegar...
O presente ensaio visa apontar
para uma metodologia de trabalho artística por meio da qual o ator possa ter
consciência de seu próprio processo criativo, de sua própria maneira de criar,
de seu conceber cenicamente algo, de seu próprio se relacionar com o mundo em
que ele vive de uma forma estética. Para tanto, parte de uma investigação sobre
a técnica da Escrita de Si,
especificamente sobre os hupomnêmata (cadernetas
de anotações) e as correspondências, segundo texto homônimo do filósofo francês
Michel Foucault. Assim, pretende desenvolver a noção de Escritura Cênica de Si como uma perspectiva de treinamento para o
ator das artes da cena ao vivo. Se no texto do estudioso francês a escrita se
manifesta no papel, aqui a escrita necessitará se manifestar como escritura do
aqui e agora da cena viva.
Claro que não darei conta disso aqui. Mas nem é
esse o intuito. Tive cunhar antes um operador... daí veio a ideia de ESCRITURA
CÊNICA.
O
ponto a ser visto... MELHOR SERIA SER AO PARA TAL EMPRESA
A escritura (ou arte) cênica é o modo de usar o aparelho cênico para pôr em cena – “em
imagens e em carne” – as personagens, o lugar e a ação que aí se desenrola.
Esta “escritura” (no sentido atual de estilo ou maneira pessoal de exprimir-se)
evidentemente nada tem comparável com a escritura do texto: ela designa, por
metáfora, a prática da encenação, a qual dispõe de instrumentos, materiais e
técnicas específicos para transmitir um sentido ao espectador.
Do verbete ESCRITURA CÊNICA – Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis.
Há um texto escrito por Michel
Foucault em 1983 intitulado A Escrita de
Si. Nesse material, logo em seu início, o filósofo francês nos indica que
as reflexões que virão a seguir fazem parte de uma série de estudos sobre “as
artes de si mesmo”; conceito este que o próprio autor defini como “a estética
da existência e o domínio de si e dos outros”. Cabe lembrar que esses estudos
fazem parte de um período do trabalho de Foucault onde ele se dedica a uma
investigação histórica das relações entre subjetividade e verdade. E que, para
tanto, ele parte da noção de Cuidado de
Si na filosofia greco-romana para descrever técnicas por meio das quais um
sujeito poderia construir uma determinada relação consigo mesmo para dar forma
a sua existência, e assim estabelecer sua relação com o mundo e com os outros,
de uma forma regrada, que implicaria um treino contínuo.
Esse texto do início da década
de 80 do século passado inicia sua reflexão citando um antigo escrito da
literatura cristã que versa sobre a necessidade da escrita como algo
indispensável para uma vida ascética. E dentro dessa perspectiva há uma certa
ênfase não somente para a descrição das ações do indivíduo, mas também sobre a
descrição de seus próprios pensamentos: “o constrangimento que a presença de
outro exerce na ordem da conduta a escrita o exercerá na ordem dos movimentos
interiores da alma”, ou, “a escrita constitui uma experiência e uma espécie de
pedra de toque: revelando os movimentos do pensamento...”.
No entanto, não é objetivo de
Foucault permanecer nesse clássico do cristianismo, mas o utilizar tão somente
para ressaltar aspectos desse trabalho cristão que o ajudarão a refletir sobre
a técnica da Escrita de Si como um
possível procedimento para o exercício do Cuidado
de Si na antiguidade greco-romana. São esses os aspectos: a relação com o
outro, a aplicação aos movimentos do pensamento, e a possível função como prova
da verdade.
Evidentemente que esses pontos
aparecerão no período que antecede o cristianismo de maneira diferente, no
entanto, eles já contém o mesmo princípio do exemplo cristão: a estética da
existência.
Nesse ponto o estudo sobre a Escrita de Si realizado por Foucault irá
se deter até seu fim em apenas duas técnicas específicas que envolvem o ato da
escrita, e que problematizam ambas a relação entre subjetividade e verdade: os hupomnêmata (ou cadernetas de anotações)
e as correspondências.
Os dois procedimentos, como
técnicas que existem desde a antiguidade, apontam para uma tentativa de dar
forma, clareza e verdade para a própria existência. Se os hupomnêmata são escritos que necessitam não serem encarados como
“uma espécie de armário de lembranças”, mas sim serem vistos como algo
importante para a subjetivação do discurso; também a correspondência, a carta,
precisa ser vista da mesma forma, como um mote para o próprio movimento do
sujeito: “a carta que se envia age, por meio do próprio gesto da escrita, sobre
aquele que a envia, assim como, pela leitura e releitura, ela age sobre aquele
que a recebe”. E, “a carta que é enviada para ajudar seu correspondente”, por exemplo,
“aconselhá-lo, exortá-lo, admoestá-lo, consolá-lo – constitui para aquele que
escreve uma espécie de treino: um pouco como os soldados em tempos de paz se
exercitam no manejo de armas, os conselhos que são dados aos outros na urgência
de sua situação são uma forma de preparar a si próprio para uma eventualidade
semelhante”.
De
fato, agora minha ESPECULAÇÃO... por tudo que presencie nesta edição...
Cabe aqui incluir reuniões/encontros com
Eduardo Sena, Mica, outros coordenadores de diferentes projetos e a incrível mise-en-scène
na câmara dos vereadores...
Posto tal contexto acima, a ideia
deste ensaio é verificar a possibilidade de realizar escritas de si para além
do papel, realizar escritas de si na própria cena, um escrever a cena na
própria cena; com o mesmo caráter de subjetivação do discurso. Para tanto o
verbete ESCRITURA CÊNICA do Dicionário de
Teatro, de Patrice Pavis, pode ser utilizado como um conceito operador para
dar dimensão do que pode vir a ser um Escritura
Cênica de Si. Noção esta que poderá ser tanto hupomnêmata como correspondência que se utilizarão não da palavra
escrita no papel, mas que acionarão todos os possíveis elementos que compõem a
cena ao vivo. Nesse sentido, a cena não precisa ser vista com um início, meio e
fim, como algo acabado. Ou como uma unidade de tempo, espaço e ação. Também o
fragmento, a imagem cênica, poderão servir como um caminho para a revelação do
processo criativo do próprio ator. Assim, o ponto é como escrever os movimentos
do próprio pensamento, da “alma”, não se utilizando de papel, mas da
materialidade cênica.
Há
relevância isso?
Vamos levar em consideração a tanto
políticas públicas eventuais, essas sabemos que existem, quantos as políticas
públicas processuais...
O Cuidado de Si é
uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens, cravado na
sua existência, e constitui um princípio de agitação, um princípio de
movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência.
Do curso A Hermenêutica do Sujeito ministrado por Michel Foucault entre o
fim de 1981 e o começo de 1982.
No prólogo do livro O teatro pós-dramático, do alemão
Hans-Thies Lehmann, há uma premissa fundamental para se compreender sobre o que
o autor pretende discernir no decorrer de seu trabalho e, ao mesmo tempo, essa
premissa poderá ser aqui vista como o início de uma questão para o ator
contemporâneo, especificamente no que tange a que tipo de preparo deve ter esse
atuante dos dias de hoje então. A premissa de Lehmann é: o modo de percepção se
deslocou, “a percepção simultânea e multifocal substituiu a linear-sucessiva;
uma percepção ao mesmo tempo mais superficial e mais abrangente tomou o lugar
da percepção centrada, mais profunda, cujo paradigma era a leitura do texto
literário”. Se no texto alemão a intenção a partir dessa constatação é
“desenvolver uma lógica estética do
novo teatro”, que ele defini como a prática cênica desenvolvida a partir dos
anos 1970, para este projeto de pesquisa a mesma premissa servirá para
investigar que metodologia de trabalho para o ator poderia dar conta de uma
percepção simultânea e multifocal.
Esse fenômeno da percepção
mais abrangente não é algo dos anos recentes, faz já mais de um século que se
observa seu desenvolvimento. Se olharmos para as pesquisas de Jerzy Grotowski,
especificamente registradas no texto O
treinamento do ator (1959 – 1962), o diretor polonês já aponta para uma
percepção multifocal do mundo quando este afirma que estava procurando,
naqueles anos, “uma técnica positiva ou, em outras palavras, um determinado
método de formação capaz de dar conta objetivamente ao ator uma técnica
criativa que se enraizasse na sua imaginação e em suas associações pessoais”.
Sim, de certa forma, essas associações pessoais podem ser vistas hoje como uma
percepção simultânea quando postas enfoque. No entanto, a continuação do
raciocínio de Grotowski pode sugerir uma saída do entorno, uma fuga do que
seria a relação com o outro. Pois diz o investigador polonês que “o ator deve
descobrir as resistências e obstáculos que o prendem na sua forma criativa.
Assim, os exercícios adquirem a possibilidade de sobrepujar os impedimentos
pessoais”, e Grotowski ainda acrescenta que “através de uma adaptação pessoal
dos exercícios, deve-se encontrar solução para a eliminação desses obstáculos,
que variam de ator para ator”. Mas o ponto é que o obstáculo na sociedade
contemporânea parece ser justamente o outro. Retornando à reflexão de Foucault,
agora em sua Hermenêutica do Sujeito,
o ser é em si uma relação com os outros, ou melhor, o sujeito pode ser visto
como uma série de relações com seu entorno. Então, se caminharmos pela reflexão
do diretor polonês, é possível chegarmos a duas conclusões, sobre o superar
obstáculos: ou eliminar o outro, ou fugir da sociedade, quase como um
misantropo. Evidentemente que há um certo sarcasmo nesses conclusões, pois
significam ignorar uma reflexão mais profunda sobre o contexto que gerou tal
movimento em Grotowski. Porém, o instigante está em olhar também para os
obstáculos, também para os impedimentos, não para serem dissipados, mas como
partes de uma visão multifocal, partes de um caleidoscópio. Como se fosse
possível abrir mais duas janelas do programa Windows: uma chamada obstáculo, e outra chamada impedimento, não
para eliminá-las, mas para se navegar por elas. Eis aqui uma perspectiva que
justifica um trabalho sobre o procedimento da Escrita de Si.
O que é interessante de uma
percepção de mundo simultânea e multifocal é justamente a possibilidade de
construir um saber por meio do contato com a superfície, por meio do contato
com o que é recebido, e com o que é vivenciado como experiência, como um
aguilhão que tem a capacidade de suspender aquilo que se tem de mais certo, de
mais estruturante do ser, para assim, reestruturar esse ser, ou, no mínimo, problematizar
esse mesmo ser. Nesse sentido, o estudo de Foucault sobre a Escrita de Si, quando o filósofo francês
fala que a escrita constitui “a elaboração dos discursos recebidos e
reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de ação, e complementa
que a escrita “é a operadora da transformação da verdade em éthos”, pode significar dizer que antes de uma intenção de
superação de obstáculos, há a possibilidade de construção de um saber. Seria
algo como que dizer por meio de um questionamento o que há de poesia em uma
dificuldade, seja ela de qual ordem for. Como fazer do impedimento sua cena
poética?
Dentro desse contexto, pensar
sobre a possibilidade de uma Escritura
Cênica de Si é pensar sobre a subjetivação do discurso cênico como
metodologia de trabalho para o ator, como uma espécie de treino,
independentemente desse atuante estar ou não dentro de um processo de montagem,
ou, se dentro de um processo de montagem, independentemente de qual processo de
montagem ele possa estar inserido.
Assim, a ideia de utilizar os
mesmos princípios de uma Escrita de Si,
segundo o texto homônimo de Foucault, para a elaboração de uma Escritura Cênica de Si, pode significar
uma tentativa de treino contínuo para o atuante que, por sua vez, está inserido
em um mundo agenciado por uma percepção simultânea e multifocal, sem que com
isso se perda sua relação com o outro, sua relação com o entorno, sua relação
com suas próprias dificuldades, que poderão talvez ganhar um estatuto poético.
Acredita-se que tal
perspectiva de trabalho, que tal possível metodologia a partir da técnica da Escrita de Si, poderá também
sistematizar o processo criativo do ator, clareando primeiramente qual o
momento de sua trajetória artística e, em seguida, ajude-o a reunir o que se
pôde ouvir ou ler, vivenciar ou perceber, conscientemente ou não com a única
finalidade que nada mais é que a constituição de si, um cuidado de si.
...a escrita aparece regularmente associada à meditação, ao
exercício do pensamento sobre ele mesmo que reativa o que ele sabe, torna
presentes um princípio, uma regra ou um exemplo, reflete sobre eles,
assimila-os, e assim se prepara para encarar o real.
Do estudo A Escrita de Si, de Michel Foucault
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