domingo, 30 de novembro de 2014

Dois Processos, Um processo | Processo Cheio, Processo Vazio - CEU Perus, Artes Integradas por Josefa Pereira


Dois Processos, Um processo
Processo Cheio, Processo Vazio

Depois de esboçar diferentes idéias sobre vários aspectos do programa, percebo que é campo do meu interesse dedicar-me a refletir, ainda que de forma breve, sobre o processo criativo desenvolvido junto aos Artistas Vocacionados, ao invés de debruçar uma analize a respeito da estrutura do programa, que se encontra cada vez mais frágil e problemático em tantos aspectos. Afinal assim foi o percurso deste ano, uma interessante imersão na experiência com os artistas vocacionados e o local dessa atuação já que não conhecia o CEU Perus e seu bairro,  contexto social, político e histórico extremamente forte e determinante na experiência tão viva que lá se desenvolveu.

Tem bastante gente frequentando este CEU, bastante gente jovem e em busca de suas primeiras experiências artísticas. Muitos deles, já bastante engajados em diversas atividades do local e ativos em relação ao Quilombaque e outras iniciativas da região, uma grande porção desses jovens já passaram pelo Programa Vocacional em momentos anteriores e agora se dedicam a criar possibilidades de ativação artística e cultural cada vez mais fortalecidas no bairro, gerando caminhos e possibilidades próprias e autonomas.  Vejo que neste momento, como provavelmente em outros, o Programa Vocacional, como uma política pública de contexto institucional, teve como função ser uma das primeiras portas de contato de adolescentes que ainda não participam ativamente da vida pública deste lugar, com um processo criativo e artístico, e ali uma porta de entendimento e conscientização a respeito deste entorno habitam.

Em maio, mês com as turmas já em funcionamento e em conjunto com as novas explorações sobre Perus e seus meandros, articulamos, eu e Rita (artista orientadora no mesmo equipamento), uma primeira ação das turmas com o 1” Ato pela Reapropriação da Fábrica de Cimento Portland Perus. Pauta tão fundamental daquele lugar e para a cidade de São Paulo como um todo, nos deparamos com uma importante militância política, entramos em contato com os principais articuladores da comunidade. Tanta possibilidade a ser desbabravada, e o desejo de que o processo artístico desenvolvido ali, estivesse em diálgo efetivo com esta efervescência toda.

Movidas por duas provocações, de um lado a idéia de Guerrilha Poética de Hakim Bey. E da discussão de David Harvey sobre o direito a cidade:

A cidade pode ser julgada e entendida apenas em relação àquilo que eu, você, nós e (para que não nos esqueçamos) “eles” desejamos. Se a cidade não se encontra alinhada a esses direitos, então ela precisa ser mudada. O direito à cidade “não pode ser concebido como um simples direito de visita a ou um retorno às cidades tradicionais”. ao contrário, “ele pode apenas ser formulado como um renovado e transformado direito à vida urbana”2. A liberdade da cidade é, por tanto, muito mais que um direito de acesso àquilo que já existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo com o desejo de nossos corações.
Como primeiro plano de ação, além de articular um chamado para oficina/laboratório para uma produção visual de sensibilização para o ato, e para ação durante o ato a fixação de cartazes e stencil. Propusemos uma ação para co-habitar a praça com as outras diversas ações da comunidade que ali estariam em andamento. Um gesto simbólico: conectar rede, estabelecer relação. Um fazer bem simples e que legitime a presença, o simples estar ali, e assim, poder conversar, conhecer, trocar, tecer.











Foi um momento extremamente importante, e principalmente, disparador de características e reflexões que permearam todo o processo criativo dali por diante. Um outro experimento de mundo, de integrar um processo artístico considerando o lugar em que se está,  uma invetigação de valores. Estar em provocação, ser cada vez mais um sujeito testando idéias próprias, percebendo as contradições da vida, experimentando os próprios modos de existência em relação ao que se vê, pensa, ouve e faz. E permeando isso, a questão colocada no início: Qual a cidade que desejamos? Qual a cidade que desejo fazer?
Este foi o contexto da turma, desde o início, e que desenrolou durante todo o ano.

Ali, um processo foi contaminando outro. Duas turmas, uma cheia outra vazia, ou uma um pouco mais vazia, e outra passando de cheia pra vazia, a outra sendo cheia e a outra quase cheia novamente, e assim por diante, em movimentos de transferência de fluídos [fluxo de idéias e pessoas]. Da turma cheia emanam, com urgência, essas reflexões em torno da vida, da cidade, dos nossos hábitos. E o pressuposto de que a arte pode ser o nosso meio de invenção de mundo. Começar cada encontro é primeiro conversar e discutir as coisas que nos passam no dia a dia, um compartilhamento informal afetivo. E desta troca nos martelam entendimentos sobre a vida, senso comum e moral. Vamos detectando certas forças que nos armazenam em categorias, nos impreme pertencimentos e identificações, e a constante sensação de que é necessário expandir, de que é impossível caber,  e que todo esse incomodo pode ser material da arte. Nós jogamos, bricamos, encenamos, dançamos, musicamos, narramos, pintamos, o sete. Na empolgação de estarmos ali no contexto de Artes Integradas, experimentamos materialidades e procedimentos que presam um estar em experiência mais do que o desenvolvimento de alguma linguagem artística específica.

Fundamental diálogo com este processo criativo que ali emergia, foram as provocações geradas pelo trabalho da equipe em que a idéia de Programa proposto pela artista e pesquisadora Eleonora Fabião poderia ser uma âncora para estabelecer esta experiência em Artes Integradas. Os encontros são mobilizados  através da invenção de procedimentos criativos, compreendidos como enunciados claros que possam ser o campo disparador da experiência.

Assim, fluindo pro espaço vazio da turma vazia, eu me proponho, provocada pela turma cheia, a pensar neste campo de afeto que a arte provoca sobre a vida. Tomo como hipótese para ação, o contrário do que necessariamente costumaria reforçar e rebater: por que não olhar para arte como um veículo de mensagens sobre a vida? Óbvio que complexo, intenso, e muito mais amplo que um processo de comunicação, de emissão e recepção, a arte não é redutível a isso por operar muitos outros campos de força. Mas é fato que, a arte opera com forças que atuam sobre a vida. Considerando isso, ela pode conter mensagens que falam com a vida, ou sobre a vida, e se prestarmos atenção pode ser que ela nos dê ótimos conselhos que escapam bem longe do senso comum da auto-ajuda. Dou atenção, para o meu programa, a esse olhar primeiro de que muitas vezes vem embuído o Artista Vocacionado, do universo de referências simples a partir de seu cotidiano o utiliza como primeiro recurso para compreender manifestações artísticas.

Vou para o meu plano de divulgação das atividades no equipamento, tentando fazer desta “tarefa” ponto fraco do Programa Vocacional, um elemento integrado ao processo artístico em andamento, provocação que me faço já em edições anteriores, toda vez que me deparo com esta função. Como manter-me atuante como artista nas diversas estratégias que pedem a prática deste projeto?
Proposta: trocar na feira, neste lugar popular do cuidado com a vida (o lugar onde adquirimos os alimentos saudáveis e frescos), local da troca por excelência, da barganha.
Vou à feira para trocar conselhos sugeridos (de modo colaborativo), por inúmeras obras da arte contemporânea que selecionei a partir do meu próprio campo de interesse, obras que falam com a minha vida, e que falam com a vida de todos.

“Se essa obra falasse, o que ela sugeriria como conselho de vida”?

Semear, lançar um campo de ativação de reverberação poética, e poder assim, divulgar o programa pra além das paredes do equipamento. Negociando trocas, gerando diálogos, e provocando uma zona de interesse extraordinário neste local. Onde há vida habitando este entorno do equipamento? A feira de rua.

“Se conselho fosse bom a gente vendia. Sendo assim, troco conselhos por vegetais”










A Nanda, que aparece nas fotos, foi Artista Vocacionada da turma de sexta-feira de manhã, que não formava quórum por nada. Ela se envolveu comigo na elaboração e execução do Programa.

As preocupações com as possíveis mensagens da arte, com os interesses que através da arte mobilizam a vida e vice-versa, permaneceu em discussão durante todo o processo com as turmas. Na turma cheia, o processo se encaminhou em discussões e experiências com a cidade. E se minha rua, minha praça for material da minha arte? E partir daí, onde estou? Quem sou eu? Como atuo em relação ao lugar que ocupo? Qual o meu contexto? Quais são os gestos que fazem parte da minha vida, e que poderiam fazer parte da minha arte? Quais os gestos da arte que poderiam fazer parte da minha vida?

Ações que guiaram os procedimentos artísticos:
Olhar Pela Janela / Olhar-me no Espelho / Olhar o Outro / Refletir / Caminhar / Coletar/ Descrever / Apontar / Relatar / Encenar / Conversar / Observar / Interferir / Projetar / Atuar / Falar / Depor / Alterar

A partir dessas palavras  diversos procedimentos foram se desenhando como campo da experimentação. E em torno da idéia de Programa proposto por Eleonora Fabião e trabalhado em equipe, fomos desenvolvendo compreensões em torno de enunciados como instrução e tensionamento da ação artística. As relações e diferenças entre a idéia de interpretação, de jogo, de intervenção urbana, e as relações dos diferentes enunciados em relação ao tempo e lugar das ações. E as inúmeras ferramentas e recursos de criação em arte.

Geramos, na reta final dos encontros, um encaminhamento mais didático e direcionado, estruturando o processo de tantas experimentações do seguinte modo:

- Caminhar em silêncio no entorno do CEU Perus e coletar pensamentos, impressões e 3 objetos de interesse;
- A partir destes objetos criar narrativas/cenas/propostas explorando os sentindos simbólicos desses objetos;
- Após a caminhada responder às seguintes questões: O que você viu? O que você pensou sobre o que viu? O que você gostaria de ter visto?
- Criar um programa que de alguma maneira compartilhe estes pensamentos com este entorno explorado | Proposta gerada foi um compartilhar em forma de depoimento essas impressões numa importante passarela da região.






- Em 3 grupos, a partir dessas questões observadas e compartilhadas, que detectam aspectos de Perus, criar projetos que intervenham diretamente nas reflexões apontadas.

Os projetos, elaborados de acordo com os apontamentos escolhidos, foram:

- A respeito das pessoas caladas, que não olham para os lados, não conversam entre si, e vivem fechadas,  a proposição de refazer o programa de Eleonora Fabião  “CONVERSO SOBRE QUALQUER ASSUNTO”.




- Distribuir mensagens previamente elaboradas que de alguma maneira possam trazer reflexões e momentos poéticos para os moradores que descem na estação Perus do trem. Ou ainda, distribuir essas mensagens por postes e muros da região.

- Criar uma meneira de elogiar as pessoas. Abordar diretamente questões da auto-estima, do sentir-se bem.

Após a execução da primeira proposta a turma teve necessidade de rever as propostas seguintes e reelaboraram criando um novo projeto para ser executado que botava fricção as duas propostas seguintes. Culminando na “Passarela da Auto-Estima”, e ao invés de uma abordagem corpo a corpo, gerar um produção textual e visual que produzisse sobre a passarela o efeito de sentir-se elogiado, de ter sobre a passarela, local de alguma intervenções da turma durante o ano. Ao passar pela passarela ela fala com você, ressalta suas boas qualidades e tenta faze-lo sentir melhor. A proposta tem tom leve e de brincadeira, tras à tona um grupo de palavras em tom um pouco erudito como recurso poético.







Na turma menos cheia, ou mais vazia, ainda que com dificuldade de quórum e sem possibilidade de conclusão do processo, as relações com a vida permaneceram através de experimentos sensoriais que isolavam os sentidos, especialmente a visão em relação ao tato, paladar, audição e olfato. E partir daí desdobramentos sobre uma percepção super sutil foi se desdobrando. Conjuntamente, materiais  foram sendo explorados, como penas, bexigas, algodão, que geravam tanto estímulos e sensações táteis, como também um léxico para improvisações e jogos.  
Esses objetos, que começamos a chamar de mágicos, revelavam um universo corpóreo e sensorial microperceptivo, como também jogos imaginativos.
Neste mesmo processo contamos com a elaboração de pequenos programas “antídoto” para sensações, sentimentos, emoções e fatos que nos atravessava cotidianamente e para os quais não existe modo de tratamento direto. Deste modo, pequenas tarefas eram inventadas e aplicadas como “pequenos conselhos” que atuariam diretamente sobre determinados aspectos da vida.
Posteriormente, no caminho desses direcionamentos, a partir do conto de fadas “A Princesa e a Ervilha” [onde um objeto mágico sutil revela a nobreza da princesa] continuamos desdobrando esses materiais para narrativas pessoais que entrecruzavam jogo, objeto e sensação para criação de cenas, danças, instalações ou programas performativos.

Independentemente dos rumos desses processos enquanto resoluções formais, me interessou observar e manter em trânsito um processo criativo onde a experiência artística partia constantemente de elementos que integram o campo afetivo da turma. A vida comum como campo disparador criativo. Que esta produção gerada, tivesse no cerne de seu acontecimento, o contato direto com este mesmo contexto em que se vive.
Ressignificar lugares e práticas de vida, entendedo o meio ao qual se pertence como disparador de processos criativos, e partir daí inventar novos pertencimentos novas identificações. Entender este meio em que se vive como parte de um processo constituído coletivamente e que é passível de alteração, de transformação, e de novas relações e significados.

Estar este ano junto à equipe de Artes Integradas trouxe à tona rumos possíveis e extremamente interessantes ao quais o Programa Vocacional poderia se debruçar a refletir como base de uma reestruturação urgente e necessária. Sem apontar aqui os diversos aspectos dessa colocação pois teríamos aqui motivo para um novo ensaio, penso ser possível destacar a natureza do nosso projeto artístico pedagógico como uma fazer em experiência, em pesquisa, em descoberta, e não tecnicista, que reverbera profundamente no tipo de prática que pode desenvolver este ano. Estar em um funcionamento experimental, criativo, que se apropria e inventa ferramentas, sejam quais forem elas, de acordo com a vivacidade do curso artístico que se instaura, gerando um processo mais fluído, mais aberto às trocas e potências que esse tipo de prática pode gerar.

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