domingo, 30 de novembro de 2014

Menino Alagado

Menino Alagado

              Tento escrever o retorno do menino distante da casa, tento descrever o menino que se perdeu no quintal de casa, eu artista orientador do programa Vocacional no Ceu Três Pontes, eu desorientado por meus caminhos, tento criar nestas linhas o chão por onde percorri. Mas quando leio, descrevo as nuvens do CEU que me fizeram perder o rumo, me fizeram sonhar, sentir medo, lembrar e devanear.


Eu menino alagado que sempre fui, perdido e distante de mim mesmo por anos a fio. Me vi assim entre ruas e becos na busca por ser, por encontrar um bote que me levasse, que me salvasse e me fizesse sonhar.

 Lembro do primeiro dia que passei a existir. Que conheci o teatro. Minha primeira vivência onde ouvi “ator é bicho que quer viver muito, é bicho incansável que acha que uma vida só, é pouca, quer ser rei, ladrão, santo, puta, pássaro, quer ser peixe, ser homem que senti o tempo no corpo, que ouve o vento, quer ser de tudo um pouco, quer ser muito mais.” Logo eu que não queria ser nada. Perdido...Perdido...Procurando uma casa. Um CEU que pudesse voar. Um lar neste mundo grande onde as crianças sentam na calçada, festejam na rua e se encontram nas esquinas do Jardim Romano.

Eita que lembro das tantas caminhadas distantes que fiz, tantas janelas onde eu pintava minha imaginação, onde encontrei meu oficio, onde vivia outra realidade. Onde encontrei espaço para me descobrir pássaro. Depois de tantos anos venho eu voar sobre este CEU. Este erguido sobre as pontes do rio, este mesmo rio que me acompanhou debaixo de sol e chuva. Que quando moleque fugia da mãe para pescar girinos com as mãos, girinos que nasciam na beira do rio. Venho conhecer o CEU. Estrangeiro CEU que assim caiu nas margens do rio. Como barco grande naufragado em tempo de maré cheia, que todos observam de fora, o lendário barco que guarda tesouro precioso, pedra rara, barras d’ouro, segredos ao pé do ouvido, mistério nebuloso, promessas.

Eu que pensei que o CEU era casa do povo, praça popular, casinha da árvore que todo menino sonha construir, onde mora a fantasia, as brincadeiras, a invenção, o primeiro beijo, o encontro do clã, o piquenique, a festa que convidamos os vizinhos para dançar e onde tiramos fotos para guardar no peito e recordar. Eu que pensei que o CEU era de todos, caminho da salvação, paraíso, lugar onde podíamos pedir aos sábados e domingos um pouco de açúcar para adoçar o suco amargo dos dias da semana. Pensei, pensei, pensei...e entre as nuvens me perdi...

Meu Deus por onde andei esse tempo todo?
 Eu estou aqui tentando entender!!!



Ontem ouvi Maria Bethânia dizer: Mas música é perfume, é sensorial. Como diz os pequenos deuses do Jardim Romano que navegam pelo rio esquecido, mas cheio de memória naufragada “Tem um cheiro forte de merda que não dá para explicar.” E nem precisa, tem gente que quer entender demais e não senti nada.

Tá ai... Não vê que os meninos tão na rua, não vê a dança na espreita, a canção que brota do alto da laje, a poesia cravada na parede, a rua que vira encontro, o chão que vira água, a menina moleca que decorou o texto, o caminho da imaginação, o beco colorido da criação, o menino dizer agora eu entendo o rio que invadiu a minha casa, o trajeto, a estirada/caminhada longa que é a própria vida...
Assistindo “A Cidade dos Rios Invisíveis” espetáculo do grupo teatral Estopô Balaio que atua no Jardim Romano, me fez ouvir a canção da rua, do rio que virou lar, que transformou o menino em peixe, o sonho em água escura que invadi as casas, sem pedir licença, que muitas vezes lembra a todos que seu espaço é maior do que deixaram para ele. Que não tem grade, nem urubu fardado com cara brava que o impeça de entrar. Estes meninos que nadam como peixe no rio, que há tempos ouviram dizer que depois das pontes construíram o CEU para os meninos voar. 

Promessa boba, palavra que se perde na ação. Tem casa que tá virando prisão, com guarda no portão, gente certa para entrar, não pode isso, não pode aquilo, tem dono sem escritura, tem uns que pode mais, outros que tem que obedecer, tem regalias, funcionários, desacordos, planos por debaixo dos panos, não tem projeto, é chacina violenta que mata as possibilidades da multidão. Grade, portão, falta relação, AFETO.

Quem chega novo assim que nem eu estou, se senti perdido no próprio quintal. Não sou vítima não. Eu também imaginei errado. Pensei que fazer teatro era coisa simples, para todo mundo. Era que nem brincar de pega-pega, que nem fazer bolha de sabão. Estou aqui refletindo, sentindo ao invés de entender. Estou só tentando mergulhar. É que faz tempo que não nado neste rio sujo, que não caminho sobre este mar, que tento fugir do anzol, da rede de pesca. Faz tempo que também construí minha casa sobre rodas onde muita gente pode entrar. Faz tempo que não me sinto só. De mãos atadas. Que não me sinto com vontade de brigar, não de porrada porque sempre fui menino medroso. Minha briga sempre foi outra e mais lenta como dos pequenos deuses do Jardim Romano, minha luta sempre foi com poesia. Só a poesia para inventar outros modos de existir...

Sinto vontade de voar no ponto mais alto do Jardim Romano e dizer:

Ei menino sapeca, menina sereia. Todos vocês pequenos deuses que guardam os segredos nas asas, no passinho do romano, no nado diário. Na inocência e na coragem de se aventurar. Que ainda resistem na brincadeira, que tem a missão de nos fazer sonhar, voar por terras outras, e fazer a gente esquecer deste chão de asfalto negro que conduz o nosso destino. Vocês que neste instante podem fazer todos nós sentir o vento lá do alto, e transformar o CEU em casa azul onde moram os sonhos. Chega de tantos sonhos perdidos, esquecidos, soltos como uma bexiga que escapa da mão do homem cansado. Do homem que ainda olha para CEU com saudade, mas na esperança de encontrar o que perdeu. Este homem que espera caminhar sem rumo certo, sem saber onde os pés os levarão, sem saber o que pode acontecer, com vontade de ser livre, menino vem ensinar o homem a voar, a ser pássaro, a transformar o CEU em imaginação, em criação, em lugar onde podemos pescar a memória empoeirada que flutua no espaço.

Estes devaneios me fazem ter fé em meio a escuridão. E tenho fé que hei de encontrar tantos pássaros disfarçados por ai... Pássaros procurando lugar para ser. Para voar como pássaros pequenos, para voar pelo Céu, o Céu é tão grande e desconhecido.
   
Vocês sabem o que é o Céu pra mim? O Céu é cada ser. E nosso CEU tá precisando ser outro. Nosso CEU precisa deixar de ser gaiola.

Anderson Maurício – Ensaio Vocacional

São Paulo, 17 de novembro de 2014.

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