Menino Alagado
Menino Alagado
Tento escrever o retorno do menino
distante da casa, tento descrever o menino que se perdeu no quintal de casa, eu
artista orientador do programa Vocacional no Ceu Três Pontes, eu desorientado
por meus caminhos, tento criar nestas linhas o chão por onde percorri. Mas
quando leio, descrevo as nuvens do CEU que me fizeram perder o rumo, me fizeram
sonhar, sentir medo, lembrar e devanear.
Eu menino alagado que sempre fui, perdido e distante de mim
mesmo por anos a fio. Me vi assim entre ruas e becos na busca por ser, por
encontrar um bote que me levasse, que me salvasse e me fizesse sonhar.
Lembro do primeiro dia que passei a existir.
Que conheci o teatro. Minha primeira vivência onde ouvi “ator é bicho que quer viver muito, é bicho incansável que acha que uma
vida só, é pouca, quer ser rei, ladrão, santo, puta, pássaro, quer ser peixe, ser
homem que senti o tempo no corpo, que ouve o vento, quer ser de tudo um pouco,
quer ser muito mais.” Logo eu que não queria ser nada. Perdido...Perdido...Procurando
uma casa. Um CEU que pudesse voar. Um lar neste mundo grande onde as crianças
sentam na calçada, festejam na rua e se encontram nas esquinas do Jardim
Romano.
Eita que lembro das tantas caminhadas
distantes que fiz, tantas janelas onde eu pintava minha imaginação, onde
encontrei meu oficio, onde vivia outra realidade. Onde encontrei espaço para me
descobrir pássaro. Depois de tantos anos venho eu voar sobre este CEU. Este
erguido sobre as pontes do rio, este mesmo rio que me acompanhou debaixo de sol
e chuva. Que quando moleque fugia da mãe para pescar girinos com as mãos,
girinos que nasciam na beira do rio. Venho conhecer o CEU. Estrangeiro CEU que
assim caiu nas margens do rio. Como barco grande naufragado em tempo de maré
cheia, que todos observam de fora, o lendário barco que guarda tesouro
precioso, pedra rara, barras d’ouro, segredos ao pé do ouvido, mistério
nebuloso, promessas.
Eu que pensei que o CEU era casa do
povo, praça popular, casinha da árvore que todo menino sonha construir, onde
mora a fantasia, as brincadeiras, a invenção, o primeiro beijo, o encontro do
clã, o piquenique, a festa que convidamos os vizinhos para dançar e onde
tiramos fotos para guardar no peito e recordar. Eu que pensei que o CEU era de
todos, caminho da salvação, paraíso, lugar onde podíamos pedir aos sábados e
domingos um pouco de açúcar para adoçar o suco amargo dos dias da semana.
Pensei, pensei, pensei...e entre as nuvens me perdi...
Meu Deus por onde andei esse tempo
todo?
Eu estou aqui tentando entender!!!
Ontem ouvi Maria Bethânia dizer: Mas
música é perfume, é sensorial. Como diz os pequenos deuses do Jardim Romano que
navegam pelo rio esquecido, mas cheio de memória naufragada “Tem um cheiro forte de merda que não dá
para explicar.” E nem precisa, tem gente que quer entender demais e não
senti nada.
Tá ai... Não vê que os meninos tão na
rua, não vê a dança na espreita, a canção que brota do alto da laje, a poesia
cravada na parede, a rua que vira encontro, o chão que vira água, a menina
moleca que decorou o texto, o caminho da imaginação, o beco colorido da
criação, o menino dizer agora eu entendo o rio que invadiu a minha casa, o
trajeto, a estirada/caminhada longa que é a própria vida...
Assistindo “A Cidade dos Rios
Invisíveis” espetáculo do grupo teatral Estopô Balaio que atua no Jardim
Romano, me fez ouvir a canção da rua, do rio que virou lar, que transformou o
menino em peixe, o sonho em água escura que invadi as casas, sem pedir licença,
que muitas vezes lembra a todos que seu espaço é maior do que deixaram para
ele. Que não tem grade, nem urubu fardado com cara brava que o impeça de
entrar. Estes meninos que nadam como peixe no rio, que há tempos ouviram dizer
que depois das pontes construíram o CEU para os meninos voar.
Promessa boba, palavra que se perde
na ação. Tem casa que tá virando prisão, com guarda no portão, gente certa para
entrar, não pode isso, não pode aquilo, tem dono sem escritura, tem uns que
pode mais, outros que tem que obedecer, tem regalias, funcionários, desacordos,
planos por debaixo dos panos, não tem projeto, é chacina violenta que mata as
possibilidades da multidão. Grade, portão, falta relação, AFETO.
Quem chega novo assim que nem eu
estou, se senti perdido no próprio quintal. Não sou vítima não. Eu também imaginei
errado. Pensei que fazer teatro era coisa simples, para todo mundo. Era que nem
brincar de pega-pega, que nem fazer bolha de sabão. Estou aqui refletindo,
sentindo ao invés de entender. Estou só tentando mergulhar. É que faz tempo que
não nado neste rio sujo, que não caminho sobre este mar, que tento fugir do
anzol, da rede de pesca. Faz tempo que também construí minha casa sobre rodas
onde muita gente pode entrar. Faz tempo que não me sinto só. De mãos atadas.
Que não me sinto com vontade de brigar, não de porrada porque sempre fui menino
medroso. Minha briga sempre foi outra e mais lenta como dos pequenos deuses do
Jardim Romano, minha luta sempre foi com poesia. Só a poesia para inventar
outros modos de existir...
Sinto vontade de voar no ponto mais
alto do Jardim Romano e dizer:
Ei menino sapeca, menina sereia.
Todos vocês pequenos deuses que guardam os segredos nas asas, no passinho do
romano, no nado diário. Na inocência e na coragem de se aventurar. Que ainda
resistem na brincadeira, que tem a missão de nos fazer sonhar, voar por terras
outras, e fazer a gente esquecer deste chão de asfalto negro que conduz o nosso
destino. Vocês que neste instante podem fazer todos nós sentir o vento lá do
alto, e transformar o CEU em casa azul onde moram os sonhos. Chega de tantos
sonhos perdidos, esquecidos, soltos como uma bexiga que escapa da mão do homem
cansado. Do homem que ainda olha para CEU com saudade, mas na esperança de
encontrar o que perdeu. Este homem que espera caminhar sem rumo certo, sem
saber onde os pés os levarão, sem saber o que pode acontecer, com vontade de
ser livre, menino vem ensinar o homem a voar, a ser pássaro, a transformar o
CEU em imaginação, em criação, em lugar onde podemos pescar a memória
empoeirada que flutua no espaço.
Estes devaneios me fazem ter fé em
meio a escuridão. E tenho fé que hei de encontrar tantos pássaros disfarçados
por ai... Pássaros procurando lugar para ser. Para voar como pássaros pequenos,
para voar pelo Céu, o Céu é tão grande e desconhecido.
Vocês sabem o que é o Céu pra mim? O Céu
é cada ser. E nosso CEU tá precisando ser outro. Nosso CEU precisa deixar de
ser gaiola.
Anderson Maurício – Ensaio Vocacional
São Paulo, 17 de novembro de 2014.
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