Uma mestre ignorante e uma artista aprendendo a aprender
“Pergunta aos melhores que tu
ouviu
sobre as influencias de onde vem”
MC Marechal.
Cheguei ao CEU Navegantes e ao
Programa Vocacional já no fim do
ano. Tempo em que os processos já começam a se encerrar, em outubro, pós -
Copa, pós eleições, pós -quasetudoquesepassouem2014. Me sobraram dois meses. Aqueles dois meses em que começamos a
avaliar o que se passou , e o que se passou foi muito! Quase que tudo o que
posso escrever aqui se refere ao futuro, coisas que se gestaram ao longo de
2014 e das quais eu não faço
parte, já que cheguei pós- tudo, mas que se projetam para um futuro.
O lugar onde cheguei e as pessoas
que encontrei mudaram meu caminho, criaram um buraco no tempo e me possibilitaram
atravessar pra traz e pra frente a trajetória do Programa Vocacional. Investigando
seus riscos de instrumentalização e as tensões instauradas pelo Programa, que
permeiam desde a relação com os equipamentos públicos e com a Secretaria de Cultura quanto as relações pessoais entre
artistas orientadores, artistas-vocacionados e gestores, que buscam atuar de
modo a produzir novos lugares de trocas artísticas, tive a certeza (ainda que
efêmera) de que o papel
fundamental de um programa público para a
cultura é o de potencializar as trocas e os diálogos.
Quando eles disseram “a gente vai
te sugar” como uma piada carinhosa de quem quer muito aprender até fiquei
feliz, pois eu queria muito passar tudo pra eles, o que eu sei e o que não
sei... mas aos poucos eu percebi que eu não tinha nada que eles pudessem “sugar”,
já que a única coisa que podíamos fazer era construir juntos um pensamento. De
principio fui chegando sem saber ao certo meu lugar como Artista – Orientadora,
tentando me aproximar por todas as portas que encontrei. Que eram muitas. A inquietação deles me trazia sempre
mais e mais perguntas e escutá-las me levava sempre a refletir especialmente
sobre meu papel. Fui percebendo que deveria estar como uma artista, como uma
parceira daquele grupo de artistas, tentando ensinar a eles algo que nem eu
sabia, fazendo perguntas que nem sempre eu tinha a resposta.
Os modelos que eu tinha quase não serviam em nada e tive que
reinventar cada exercício, cada
proposta, cada pensamento (errando muitas vezes e aprendendo com eles o porque
do erro). Conceitos que eu já
conhecia eram partilhados por eles, mas tinham outras palavras, a linguagem se
tornou a questão central, o que resultou em uma experiência maravilhosa,
pois o que tínhamos em comum era a
linguagem teatral, através da qual pudemos trocar intensamente nossos
conhecimentos. Quando nos propúnhamos a ler uma cena eu ia percebendo quais
eram as questões centrais para eles: preconceito, trabalho, a imagem das coisas como algo que se
torna mais importante do que as próprias coisas, relações com interesses
obtusos e monetários, vontade de
mudar, vontade de gritar para o mundo que ele está errado e que as relações
humanas estão ficando pra trás, vontade de voar, atravessar isso tudo, sem
esquecer de onde se está. Isso tudo ia aparecendo enquanto eles procuravam
criar o seu “ O Produto” - uma
peça que busca questionar a forma mercadoria. – Ao mesmo tempo ter um produto,
uma peça, algo pra se mostrar, para dizer o que eles queriam se tornava cada
minuto mais urgente, como já transparecia desde o primeiro encontro e esta
ambigüidade entre um produto teatral e a mercadoria cultural passou a motivar
mais e mais nossos experimentos.
Por fim, o mês de outubro foi enorme.
As margens de atuação dentro do Programa nos levaram a marcar encontros extra,
assistir peças, a ensaiar na rua, a nos encontrar para conversas na casa deles
e acabamos por estabelecer um lugar extrapolava o espaço institucional. Nestas
perambulações fomos assistir ao espetáculo “ A Margem” – da Cia.
Humbalada, em que o grupo de
antigos vocacionados comemora 10 anos de trabalho na região. Nos encontramos
antes, à margem da represa que une aqueles artistas da Sul 3 e o olhar foi pouco pra ver como tudo
aquilo faz sentido. Chegando no local, procuramos uma área onde pudéssemos
ficar e nos acomodamos em uma área seca da represa. Acabamos tomando um tempo
para observar, sentir os cheiros, ouvir os sons deixar as imagens entrarem
pelos olhos e se formarem no fundo da imaginação. Ouvi um diálogo, mais ou
menos assim:
-Do lado de lá da represa é limpo.
-Não, do lado de lá é rico, a
represa é uma só!
Não sei se eram estas as
palavras, mas isso é o que eu me lembro e ficou ressoando na minha cabeça. A peça propunha um novo olhar sobre o
local, sobre histórias das pessoas dali, com um respeito muito delicado e com
crítica também. Tentava meios de
superar a condição por vezes
precária de subsistência, mas criticava nos pontos certos os artifícios que
dificultavam a organização e a
luta. Por fim não era moralista quanto à realidade representada, mesmo na crítica
cabia o respeito a cada figura criticada. O grupo alem disso, tratava sua
relação com aquele local e com aquelas pessoas como questão de escolha. Eles
escolhiam falar com elas, para elas, propor novas imagens para aquele ambiente,
o que era de uma beleza sem igual. Eles não buscavam sair dali, buscavam mudar
o local onde vivem. Nesta experiência o Núcleo Pele me ajudou a ver que as
imagens, as maneiras como a vida daquelas pessoas está representada por todos
os lados, não condizem com a realidade da vida delas, não são representações
delas, são marcadas por preconceitos de classe que eu não conseguia ter
dimensão. A maneira como o Humbalada apresentara o Jd. Gaivotas nos ajudou a
refletir sobre a marginalização daquelas pessoas e sobre a imagem que é feita de
nossa cidade e de nós mesmos.
- - Como
dizem que São Paulo é cinza, olha a quantidade de cores que vemos aqui!
Pensava em como as imagens ajudam
a gente a se construir, a ter autonomia, a se sentir existindo no mundo. As
imagens e representações de nós são parte essencial de quem somos. Por isso é
tão importante produzir novas imagens de si, novas imagens dos negros,
diferentes das da televisão, novas imagens dos pobres, novas imagens do mundo
que está à margem do capitalismo. IMAGENS que não são só fotos, mas são
narrativas que mostram como há mais coisas que compõem nossa identidade, nossa realidade, mais coisas do
que cabe em uma imagem, Como há luta, resistência, identidade e escolha, mesmo
onde dizem que não cabe a escolha. O Humbalada, saído do Vocacional, comemorava
10 anos ali, e servia de inspiração para o Núcleo Pele projetar um futuro, também ali, criando cultura, produzindo novas imagens, novas
narrativas.
A represa é uma só e ela não tem só o lado de lá e o lado de cá.
Como podemos investigar isso?
Como podemos evitar que nós queiramos simplesmente atravessar de uma margem
para a outra, esquecendo de toda a sujeira que está no meio?
Neste dia encontramos um caminho
para continuar o trabalho.
Procurar “O Produto”, investigar naquilo que eles já tinham uma
estrutura que desse base para eles subirem e voarem. Eu queria ouvir a voz
deles. ( Aline aceita cantar uma música no meu teatro! ) Eles precisam dizer o
que querem dizer e logo.
Eu pensava em perguntas para o
processo que apontassem meios de compreender a forma, como quando assistimos “A
Margem”, primeiro pensava em levantar questões sobre a itinerância, a relação
cenográfica com o espaço, muito ousada por sinal, mas não era isso que tornava
a peça tão impactante. Também fomos assistir também “Pau No Cú” – Com um núcleo
que juntava o Humbalada e vocacionados da região, o Núcleo Divinas Tetas - Outra paulada formal – nunca tinha
visto algo que se inspirasse em Heiner Muller, ou que conversasse com ele
ganhar tanto sentido. Ponto pra eles. O Cabaré que assisti ali trazia o
essencial, o discurso era o deles e a forma estava precisa. A esta altura eu
não tinha percebido ainda o que agora me parece quase obvio: O Teatro ali não
era uma mercadoria para ser degustada, nem era campo de malabarismos formais,
nem deveria se tornar isso. O Teatro era um espaço de compartilhamento e de
encontro para conversas e debates.
As reuniões entre os
artistas-orientadores foram fundamentais para que certas questões ficassem mais
claras. Nós discutíamos o programa, os processos, a presença de tantos grupos
na Região Sul 3 - e preparávamos a mostra de processos que
aconteceria em breve. O objetivo de ter um produto acabado, e os prejuízos disso
eram amplamente debatidos e a angústia às vezes presente, de ter que apresentar
um “produto pronto”, levantava
mais reflexões. Um produto pronto para que? Para ser comercializado? O que é um
produto, senão o resultado de um processo? Mas um processo se encerra em si, no
produto? Todavia o Programa Vocacional se encerra e se reinicia anualmente, o
que nos obriga a fechar certos nós, interromper processos, lidar com as
diversas contradições de um Programa de Estado para a Cultura. A Cultura não
acaba no fim do ano e volta em meados de 2015.
“É a Voz é a vez. É a vez é a
voz.”
Muitas vezes esperamos mais tempo
do que o necessário para falar, até que nos ensinam como calar e já não sabemos
mais o que queríamos dizer, por isso nos calamos. Fazer teatro é uma fala ao mundo, causa fricções que
precisam ser ouvidas pelos interlocutores e é nessa fricção que existimos. Se
não ocuparmos os lugares que são nossos, outros ocuparão e o espaço público é
nosso, o CEU, a Secretaria de Cultura, a rua. Temos que ocupar com nossos
corpos, nossos discursos, nossa arte e fazer com que sejam nossos. A Cultura é
meio para produzirmos imagens de nós, imagens diferentes das que nos são dadas. Percebi também a importância de que a
cidade veja estas novas imagens e o Poder Público reconheça e respeite essas novas imagens que se constituem e
se espalham. Ainda que haja uma certa resistência em reconhecer que
culturalmente a periferia já não é dependente do centro. Não à toa os
“rolezinhos” assustaram, não à toa
o grafiti foi mercantilizado e o pixo criminalizado, não à toa o capital esta
correndo atrás do Rap, dos poetas da quebrada pra tentar conter a emancipação
que pode insurgir com estas novas imagens. A estrutura resiste tentando evitar
que estas novas imagens, emancipadas e autônomas ocupem o nosso imaginário,
pois se isso acontecer não pouco vai acontecer. Não é pouco o que já
está acontecendo.
Todavia, não há autonomia
possível sem o reconhecimento por parte do outro. Novas subjetividades vão
sendo forjadas em novas objetividades – novas práticas - e o processo dialético – que vai e
vem - entre fazer e pensar, entre o processo e produto, só pode ser
emancipatório se puder contar com o diálogo efetivo com o público, com a
cidade, com os nossos parceiros e principalmente com o poder público, para
manter o movimento pulsante. Trata-se de um falar e ouvir, e isso não vem apenas pelo discurso, mas pela atitude – É procedimento.
O Produto - processos emancipatórios ou sujeitos de sua própria história.
Assim chegamos à reta final do
processo. Desde o primeiro encontro com o Núcleo Pele além da questão de O
PRODUTO, a saída da antiga orientadora permeou nossas conversas e inquietações
grande parte do tempo. O significado da saída da Marina para o grupo era amplo
e passava desde a injustiça trabalhista à qual fora exposta até a dificuldade
com a qual tiveram que lidar, ao ficar sem orientação e sem uma
conclusão para o processo que estavam desenvolvendo com ela. O trabalho até ali tinha
claramente transformado o pensamento daqueles artistas, mobilizado perguntas
extremamente profundas e trazido
uma dimensão ética para o trabalho do grupo que os tornava desejosos de falar
sobre isso. Nos debruçamos sobre
este tema ao colocar em cheque a dramaturgia de “O Produto” e fizemos descobertas
maravilhosas.
A primeira cena mostrava uma
fábrica – onde os trabalhadores preparavam os logos de um produto que seria
lançado em breve. Todos os trabalhadores, grávidos – do produto, quem sabe? –
tinham seu cordão umbilical que os ligava ao chefe rompido antes da hora e
iniciava-se aí uma revolta.
A revolta era contida com um
pouco de música para descontrair as massas mas logo, no momento seguinte, o
chefe mostrava com muita ironia que o produto estava pronto para ser lançado,
graças ao trabalho de todos – todos? O grupo indignado questionava a
participação do chefe na construção do produto, afinal de contas, ele não havia
trabalhado para que aquilo fosse feito, apenas dava ao produto sua marca?
O grupo
de trabalhadores indignado questionava até que o chefe mostrou a eles O
Produto. Todos ficaram imóveis, todos desejavam um daqueles e acreditavam que
poderiam ter, afinal, trabalharam para isso! Neste momento o Chefe dizia: Claro!
Desde que paguem por ele, fazemos
em 12x sem juros. O que levava o
grupo a se envolver nas mais diferentes empreitadas para conseguir o dinheiro
para comprar o produto que eles mesmo haviam criado.
O produto deles ia nascendo, o
trabalho do parto, o cordão umbilical,
o envolvimento ético, político e estético com suas experiências, cada um
dos movimentos presentes neste processo artístico vivenciado por eles ao longo
de 2014 ia começando a ganhar uma forma teatral. Com muito orgulho pude partilhar essa trajetória e
persistência do grupo em dizer o que queriam dizer, em encontrar formas para
colocar na rua suas inquietações. Pude aprender com eles que o produto de seus
processos artísticos não pode ser retirados tão facilmente de suas mãos – a
menos que você deixe – mas que pode passar para outras mãos, sem deixar de te pertencer – é uma troca em
que ninguém perde nada. Aprendi também e vivi na pele o fato de que ninguém faz
nada sozinho, ou ninguém faz cultura sozinho. Aprendi com cada um deles: Rafa,
Lidia, Frank, Aline, Ro, Deni, Vini,
com a Marina, pelo que ela passou para eles, com o Marcio, Fabio, Tati, com o Ferruge
e com o Humbalada. Aprendi com cada umas das pessoas que passaram por eles, e
também com as que passaram por mim, na equipe Sul-3 deste ano a importância das
parcerias neste mundão. Só assim podemos fazer teatro. Aprendi com eles a aprender teatro e a
não deixar esmorecer.
Marcadores: CEU Navegantes, Ensaio 2014, equpe sul3, grupos de teatro da zona sul, Núcleo Pele, Paula Bellaguarda, Sul 3
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