sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Uma mestre ignorante e uma artista aprendendo a aprender

“Pergunta aos melhores que tu ouviu
sobre as influencias de onde vem”
MC Marechal.

Cheguei ao CEU Navegantes e ao Programa Vocacional  já no fim do ano. Tempo em que os processos já começam a se encerrar, em outubro, pós - Copa, pós eleições, pós -quasetudoquesepassouem2014.  Me sobraram dois meses. Aqueles dois meses em que começamos a avaliar o que se passou , e o que se passou foi muito! Quase que tudo o que posso escrever aqui se refere ao futuro, coisas que se gestaram ao longo de 2014  e das quais eu não faço parte, já que cheguei pós- tudo, mas que se projetam para um futuro.

O lugar onde cheguei e as pessoas que encontrei mudaram meu caminho, criaram um buraco no tempo e me possibilitaram atravessar pra traz e pra frente a trajetória do Programa Vocacional. Investigando seus riscos de instrumentalização e as tensões instauradas pelo Programa, que permeiam desde a relação com os equipamentos públicos e com a Secretaria de Cultura  quanto as relações pessoais entre artistas orientadores, artistas-vocacionados e gestores, que buscam atuar de modo a produzir novos lugares de trocas artísticas, tive a certeza (ainda que efêmera) de que   o papel fundamental de um programa público para a cultura é o de potencializar as trocas e os diálogos.

Quando eles disseram “a gente vai te sugar” como uma piada carinhosa de quem quer muito aprender até fiquei feliz, pois eu queria muito passar tudo pra eles, o que eu sei e o que não sei... mas aos poucos eu percebi que eu não tinha nada que eles pudessem “sugar”, já que a única coisa que podíamos fazer era construir juntos um pensamento. De principio fui chegando sem saber ao certo meu lugar como Artista – Orientadora, tentando me aproximar por todas as portas que encontrei. Que eram muitas.  A inquietação deles me trazia sempre mais e mais perguntas e escutá-las me levava sempre a refletir especialmente sobre meu papel. Fui percebendo que deveria estar como uma artista, como uma parceira daquele grupo de artistas, tentando ensinar a eles algo que nem eu sabia, fazendo perguntas que nem sempre eu tinha a resposta.

 Os modelos que eu tinha quase não serviam em nada e tive que reinventar  cada exercício, cada proposta, cada pensamento (errando muitas vezes e aprendendo com eles o porque do erro).  Conceitos que eu já conhecia eram partilhados por eles, mas tinham outras palavras, a linguagem se tornou a questão central, o que resultou em uma experiência maravilhosa, pois  o que tínhamos em comum era a linguagem teatral, através da qual pudemos trocar intensamente nossos conhecimentos. Quando nos propúnhamos a ler uma cena eu ia percebendo quais eram as questões centrais para eles: preconceito, trabalho,  a imagem das coisas como algo que se torna mais importante do que as próprias coisas, relações com interesses obtusos e  monetários, vontade de mudar, vontade de gritar para o mundo que ele está errado e que as relações humanas estão ficando pra trás, vontade de voar, atravessar isso tudo, sem esquecer de onde se está. Isso tudo ia aparecendo enquanto eles procuravam criar o seu “ O Produto”  - uma peça que busca questionar a forma mercadoria. – Ao mesmo tempo ter um produto, uma peça, algo pra se mostrar, para dizer o que eles queriam se tornava cada minuto mais urgente, como já transparecia desde o primeiro encontro e esta ambigüidade entre um produto teatral e a mercadoria cultural passou a motivar mais e mais nossos experimentos.

Por fim, o mês de outubro foi enorme. As margens de atuação dentro do Programa nos levaram a marcar encontros extra, assistir peças, a ensaiar na rua, a nos encontrar para conversas na casa deles e acabamos por estabelecer um lugar extrapolava o espaço institucional. Nestas perambulações fomos assistir ao espetáculo “ A Margem” – da Cia. Humbalada,  em que o grupo de antigos vocacionados comemora 10 anos de trabalho na região. Nos encontramos antes, à margem da represa que une aqueles artistas da Sul 3  e o olhar foi pouco pra ver como tudo aquilo faz sentido. Chegando no local, procuramos uma área onde pudéssemos ficar e nos acomodamos em uma área seca da represa. Acabamos tomando um tempo para observar, sentir os cheiros, ouvir os sons deixar as imagens entrarem pelos olhos e se formarem no fundo da imaginação. Ouvi um diálogo, mais ou menos assim:

-Do lado de lá  da represa é limpo.
-Não, do lado de lá é rico, a represa é uma só! 

Não sei se eram estas as palavras, mas isso é o que eu me lembro e ficou ressoando na minha cabeça.  A peça propunha um novo olhar sobre o local, sobre histórias das pessoas dali, com um respeito muito delicado e com crítica também.  Tentava meios de superar a condição  por vezes precária de subsistência, mas criticava nos pontos certos os artifícios que dificultavam  a organização e a luta. Por fim não era moralista quanto à realidade representada, mesmo na crítica cabia o respeito a cada figura criticada. O grupo alem disso, tratava sua relação com aquele local e com aquelas pessoas como questão de escolha. Eles escolhiam falar com elas, para elas, propor novas imagens para aquele ambiente, o que era de uma beleza sem igual. Eles não buscavam sair dali, buscavam mudar o local onde vivem. Nesta experiência o Núcleo Pele me ajudou a ver que as imagens, as maneiras como a vida daquelas pessoas está representada por todos os lados, não condizem com a realidade da vida delas, não são representações delas, são marcadas por preconceitos de classe que eu não conseguia ter dimensão. A maneira como o Humbalada apresentara o Jd. Gaivotas nos ajudou a refletir sobre a marginalização daquelas pessoas e sobre a imagem que é feita de nossa cidade e de nós mesmos.  

-       -  Como dizem que São Paulo é cinza, olha a quantidade de cores que vemos aqui! 

Pensava em como as imagens ajudam a gente a se construir, a ter autonomia, a se sentir existindo no mundo. As imagens e representações de nós são parte essencial de quem somos. Por isso é tão importante produzir novas imagens de si, novas imagens dos negros, diferentes das da televisão, novas imagens dos pobres, novas imagens do mundo que está à margem do capitalismo. IMAGENS que não são só fotos, mas são narrativas que mostram como há mais coisas  que compõem nossa identidade, nossa realidade, mais coisas do que cabe em uma imagem, Como há luta, resistência, identidade e escolha, mesmo onde dizem que não cabe a escolha. O Humbalada, saído do Vocacional, comemorava 10 anos ali, e servia de inspiração para o  Núcleo Pele projetar um futuro,  também ali, criando cultura, produzindo novas imagens, novas narrativas.

A represa é uma só e ela não tem só o lado de lá e o lado de cá.

Como podemos investigar isso? Como podemos evitar que nós queiramos simplesmente atravessar de uma margem para a outra, esquecendo de toda a sujeira que está no meio?

Neste dia encontramos um caminho para continuar o trabalho.  Procurar “O Produto”, investigar naquilo que eles já tinham uma estrutura que desse base para eles subirem e voarem. Eu queria ouvir a voz deles. ( Aline aceita cantar uma música no meu teatro! ) Eles precisam dizer o que querem dizer e logo.

Eu pensava em perguntas para o processo que apontassem meios de compreender a forma, como quando assistimos “A Margem”, primeiro pensava em levantar questões sobre a itinerância, a relação cenográfica com o espaço, muito ousada por sinal, mas não era isso que tornava a peça tão impactante. Também fomos assistir também “Pau No Cú” – Com um núcleo que juntava o Humbalada e vocacionados da região, o Núcleo Divinas Tetas -  Outra paulada formal – nunca tinha visto algo que se inspirasse em Heiner Muller, ou que conversasse com ele ganhar tanto sentido. Ponto pra eles. O Cabaré que assisti ali trazia o essencial, o discurso era o deles e a forma estava precisa. A esta altura eu não tinha percebido ainda o que agora me parece quase obvio: O Teatro ali não era uma mercadoria para ser degustada, nem era campo de malabarismos formais, nem deveria se tornar isso. O Teatro era um espaço de compartilhamento e de encontro para conversas e debates.

As reuniões entre os artistas-orientadores foram fundamentais para que certas questões ficassem mais claras. Nós discutíamos o programa, os processos, a presença de tantos grupos na Região Sul 3  -  e preparávamos a mostra de processos que aconteceria em breve. O objetivo de ter um produto acabado, e os prejuízos disso eram amplamente debatidos e a angústia às vezes presente, de ter que apresentar um “produto pronto”,  levantava mais reflexões. Um produto pronto para que? Para ser comercializado? O que é um produto, senão o resultado de um processo? Mas um processo se encerra em si, no produto? Todavia o Programa Vocacional se encerra e se reinicia anualmente, o que nos obriga a fechar certos nós, interromper processos, lidar com as diversas contradições de um Programa de Estado para a Cultura. A Cultura não acaba no fim do ano e volta em meados de 2015.

“É a Voz é a vez. É a vez é a voz.”

Muitas vezes esperamos mais tempo do que o necessário para falar, até que nos ensinam como calar e já não sabemos mais o que queríamos dizer, por isso nos calamos.  Fazer teatro é uma fala ao mundo, causa fricções que precisam ser ouvidas pelos interlocutores e é nessa fricção que existimos. Se não ocuparmos os lugares que são nossos, outros ocuparão e o espaço público é nosso, o CEU, a Secretaria de Cultura, a rua. Temos que ocupar com nossos corpos, nossos discursos, nossa arte e fazer com que sejam nossos. A Cultura é meio para produzirmos imagens de nós, imagens diferentes  das que nos são dadas.  Percebi também a importância de que a cidade veja estas novas imagens e o Poder Público  reconheça e respeite essas novas imagens que se constituem e se espalham. Ainda que haja uma certa resistência em reconhecer que culturalmente a periferia já não é dependente do centro. Não à toa os “rolezinhos” assustaram,  não à toa o grafiti foi mercantilizado e o pixo criminalizado, não à toa o capital esta correndo atrás do Rap, dos poetas da quebrada pra tentar conter a emancipação que pode insurgir com estas novas imagens. A estrutura resiste tentando evitar que estas novas imagens, emancipadas e autônomas ocupem o nosso imaginário, pois se isso acontecer não pouco vai acontecer. Não  é pouco  o que já está acontecendo.

Todavia, não há autonomia possível sem o reconhecimento por parte do outro. Novas subjetividades vão sendo forjadas em novas objetividades – novas práticas -  e o processo dialético – que vai e vem  - entre fazer e pensar,  entre o processo e produto, só pode ser emancipatório se puder contar com o diálogo efetivo com o público, com a cidade, com os nossos parceiros e principalmente com o poder público, para manter o movimento pulsante. Trata-se de um  falar e ouvir, e isso não vem  apenas pelo discurso, mas pela atitude – É procedimento.

O Produto - processos emancipatórios ou sujeitos de sua própria história.

Assim chegamos à reta final do processo. Desde o primeiro encontro com o Núcleo Pele além da questão de O PRODUTO, a saída da antiga orientadora permeou nossas conversas e inquietações grande parte do tempo. O significado da saída da Marina para o grupo era amplo e passava desde a injustiça trabalhista à qual fora exposta até a dificuldade com  a qual tiveram que lidar,  ao ficar sem orientação e sem uma conclusão para o processo que estavam desenvolvendo com ela.   O trabalho até ali tinha claramente transformado o pensamento daqueles artistas, mobilizado perguntas extremamente profundas e  trazido uma dimensão ética para o trabalho do grupo que os tornava desejosos de falar sobre isso.  Nos debruçamos sobre este tema ao colocar em cheque a dramaturgia de “O Produto”  e fizemos descobertas maravilhosas. 




A primeira cena mostrava uma fábrica – onde os trabalhadores preparavam os logos de um produto que seria lançado em breve. Todos os trabalhadores, grávidos – do produto, quem sabe? – tinham seu cordão umbilical que os ligava ao chefe rompido antes da hora e iniciava-se aí uma revolta.
A revolta era contida com um pouco de música para descontrair as massas mas logo, no momento seguinte, o chefe mostrava com muita ironia que o produto estava pronto para ser lançado, graças ao trabalho de todos – todos? O grupo indignado questionava a participação do chefe na construção do produto, afinal de contas, ele não havia trabalhado para que aquilo fosse feito, apenas dava ao produto sua marca? 
O grupo de trabalhadores indignado questionava até que o chefe mostrou a eles O Produto. Todos ficaram imóveis, todos desejavam um daqueles e acreditavam que poderiam ter, afinal, trabalharam para isso! Neste momento o Chefe dizia: Claro! Desde que paguem por ele,  fazemos em 12x sem juros.  O que levava o grupo a se envolver nas mais diferentes empreitadas para conseguir o dinheiro para comprar o produto que eles mesmo haviam criado.  

O produto deles ia nascendo, o trabalho do parto, o cordão umbilical,  o envolvimento ético, político e estético com suas experiências, cada um dos movimentos presentes neste processo artístico vivenciado por eles ao longo de 2014 ia começando a ganhar uma forma teatral.  Com muito orgulho pude partilhar essa trajetória e persistência do grupo em dizer o que queriam dizer, em encontrar formas para colocar na rua suas inquietações. Pude aprender com eles que o produto de seus processos artísticos não pode ser retirados tão facilmente de suas mãos – a menos que você deixe – mas que pode passar para outras mãos, sem  deixar de te pertencer – é uma troca em que ninguém perde nada. Aprendi também e vivi na pele o fato de que ninguém faz nada sozinho, ou ninguém faz cultura sozinho. Aprendi com cada um deles: Rafa, Lidia, Frank,  Aline, Ro, Deni, Vini, com a Marina, pelo que ela passou para eles, com o Marcio, Fabio, Tati, com o Ferruge e com o Humbalada. Aprendi com cada umas das pessoas que passaram por eles, e também com as que passaram por mim, na equipe Sul-3 deste ano a importância das parcerias neste mundão. Só assim podemos fazer teatro.  Aprendi com eles a aprender teatro e a não deixar esmorecer.




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