NOSSAS CRUZADAS
O caminho que não se
faz só
A
partir do momento em que o homem se serve da linguagem para estabelecer uma
relação viva consigo mesmo ou com seus semelhantes, a linguagem não é mais um
instrumento, não é mais um meio, ela é manifestação, uma revelação do ser
íntimo e do psíquico que nos une ao mundo e aos nossos semelhantes. (MERLEAU-PONTY)
Sou
moradora da zona leste desde que nasci e de onde nunca saí. Quando me inscrevi
no Vocacional, a minha ideia era atuar na zona leste. Desejava compreender mais
esse ciclo de vivência e criação artística dentro desse bairro imenso da
extrema periferia – o Itaim Paulista.
E
apesar das minhas projeções pessoais serem feitas de linhas retas, encontrei
algumas curvas que me puseram a fazer um caminho que não havia pensado antes.
Não,
eu não passei na primeira listagem e aquela ânsia criadora teria que ser adiada
por mais um ano. Contudo, os meses se passaram e foi em setembro que recebi uma
ligação para atuar no Vocacional. Fui chamada na prorrogação do 2º tempo!
E
para minha surpresa o equipamento em questão era o CEU Vila Rubi, que fica no
Grajaú e a ideia inicial de criar no meu bairro ficou para trás. Era preciso
pegar a mochila e seguir.
Estava
com duas turmas no meio do processo de descoberta e pesquisa e eu, estava
apenas no início. E, por estar na condição de principiante – tanto no aspecto
de pesquisa, quanto no que diz respeito ao próprio programa em si, vivenciei
tudo com o sabor de experimentar algo nunca provado.
Ônibus
errado, sala mudada, teatro novo, Chapeuzinho vermelho, comida nova, jogos
diferentes, energias potentes, Rapunzel, represas, marginais, faltas, bastão,
dedetização, bolinha, caminhada, príncipes, trens, café... muito café, irmãos Grimm,
Grajaú, Pinóquio, aniversários, Belmira Marin, Branca de Neve, reuniões,
rabisca papel, Teotônio Vilela, ônibus azuis, jornais do dia, Humbalada, políticos
e politicagem, Cinderelas, consumismo, Jardim Gaivotas, 011, internet,
Furiosas, eleição, princesas, pensamentos, caminhos...
O
material-vetor da pesquisa emergiu do desejo dos vocacionados de destrinchar os
contos de fadas. Não trazer apenas a sua relação com o hoje e
comteporanizá-los, mas por meio desses contos, expressar seu descontentamento
com os papeis sociais que a vida quer que sigamos.
Ser
Branca de neve na periferia, tem como ser? Menina negra do basquete nunca viu a
neve e não quer depender financeiramente de homem nenhum (muito menos de sete).
O território dos contos e fábulas deu espaço a um novo lugar nunca antes habitado
– os cantos e contos desencantados. Lugar esse, onde chapeuzinho vira lobo,
vovozinho controla a internet e caçador é pedófilo.
A
cada provocação lançada por mim e a cada pergunta feita pelos vocacionados, recorríamos
ao material norteador afim de encontrar uma bússola que nos orientasse nessa
travessia.
Eu
como jovem artista, sempre sonhei desbravar fronteiras, talvez para
descobrir-me e repensar caminhos, lugares que pudesse a cada instante reavivar
meu fazer artístico, conhecer pessoas, culturas e lugares. Sair da minha
fronteira e seguir para um lado totalmente inverso. Realizar cruzadas.
Entenda
que, as cruzadas das quais menciono não faz nenhuma referência àquelas
praticadas pelos militares para conquistar a Terra Santa. Aqui, coloco as
cruzadas como o ‘encontro-modificado’. Digo modificado, e posso ser redundante,
pois, quando duas ou mais pessoas se encontram, acontece a cruzada. Toda pessoa
tem seu repertório e possui um pensamento diferente, portanto, vê a vida sob
uma ótica singular. Desta forma é natural que após esse encontro cada pessoa
saia modificada: as ideias foram cruzadas.
E como
errante de primeira viagem, percebi que essas fronteiras estavam sendo
atravessadas a cada baldeação que eu fazia. O que eu tanto buscava em outro
país tinha encontrado do lado oposto da cidade. Ao saltar de um ônibus amarelo
e ao subir em uma lotação azul, ao deixar a linha vermelha e frequentar a linha
esmeralda.
E foi
com nomes trocados mesmo que tivemos nossas cruzadas. Encontros regados a café
e indagações. Trabalho duro, difícil e de muita persistência. Tentativa,
ensaios, proposições e desapegos. Processos criativos que além de emancipar,
empodera. Fluxos contínuos de devir, caminhos, encontros e cruzadas.
E
como caminhadora entendo que estamos apenas na jornada, não no começo, nem no
meio e muito menos no fim. E com essa certeza – apenas essa – prossigo (e
prosseguimos!) sempre formulando perguntas, contudo, sem a dureza da exigência
das respostas.
Vanessa de Oliveira Corrêa
Artista Orientadora do CEU Vila Rubi
Marcadores: Sul 3, Teatro Vocacional, Zona Sul
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