quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Esgotado, o nada.

2014 - Ensaio: Vocacional
Esgotado, de nada.
Por Gláucia Felipe (A. O. Teatro)
Estamos cansados do homem
Nietzsche
Estava-se cansado de algo; esgotado, de nada.
Deleuze
Eu tenho uma denúncia a fazer...
(Voz alta perdida no centro da cidade, da atriz Lucienne Guedes, personagem no meio da multidão – Peça: “A Última Palavra é a Penúltima”)

Primeiro encontro no dia 24 de agosto de 2014, entre uma turma de iniciação ao teatro de 13 pessoas, que trabalharam juntas há apenas 13 encontros presenciais no CEU Alvarenga, periferia da zona sul de São Paulo, dentro do tempo de três meses somente, que iniciou essa conversa apresentando cenas improvisadas a A. O. de Teatro. Elegemos numa votação democrática, que daríamos continuidade a cena improvisada proposta pela vocacionada Mazé, que ali, no seu nascedouro, já identificava vida pulsante: a personagem Marie. No encontro seguinte, o texto escrito veio de suas mãos. Uma menina ainda. A filha mais velha de uma típica família brasileira. Com suas partituras embaixo dos braços. Ser pianista, o sonho de sua mãe. Até que um dia, por desobediência, se depara, nas ruas da periferia da zona sul de São Paulo, com palhaços. O mundo imaginário se instaura. Perdem-se as partituras e o tempo se esvai. O público: seus parceiros neste caminho. Transeuntes que ouvem e são vistos.
No início do processo teatral propus uma reflexão com olhares “plásticos” à 31ª Bienal de São Paulo. Buscar a nossa Marie neste lugar. E a encontramos. No instante em que entramos em contato com o título desta Bienal: “Como encontrar coisas que não existem” já houve a primeira identificação: por um ato de desobediência, Marie entra em contato com o mundo mágico dos palhaços e se depara em seu desespero e pressa, tendo que correr para chegar a casa pro jantar, e se depara com uma destruição das casas e avista uma casa restante, com apenas sua irmã, mais nova, já crescida, que não a reconhece, pois ela é bem jovem. O primeiro passo desta identificação já tinha sido dado. Outros viriam.
Entrar em contato com sua “... invocação poética do potencial da arte e de sua capacidade de agir e intervir em locais e comunidades onde ela se manifesta. O leque de possibilidades para essa ação e intervenção está aberto – o motivo da constante alteração do primeiro dos dois verbos do título”.
A expectativa é de todos que entrarem em contato com a 31ª Bienal os “acompanhassem em uma jornada para explorar algumas possibilidades lá presentes antes de seguir os seus próprios caminhos. Espera-se que esse momento compartilhado seja transformador para todos os envolvidos. Isso dependeria de que os projetos artísticos, as palavras e ideias surgidas nas discussões, eventos e situações que acontecerem enquanto durar o evento sejam confrontados, apropriados, usados e abusados. Ao longo desses encontros dentro e em torno da 31ª Bienal, as coisas que não existem podem ser trazidas à existência e, assim, contribuir para um mundo diferente” (Trecho do Folder distribuído na entrada da exposição).
Fomos, então, assistir um exercício teatral instaurado, intitulado: “A última Palavra é a Penúltima”. Feitura: Grupo: Teatro da Vertigem para a 31ª Bienal de são Paulo, com direção de Antônio Araújo. Processo Colaborativo de Teatro.
“Propõe revisar o já feito. Agora, em um outro tempo, refletir um mesmo espaço de outrora: o acesso subterrâneo da Rua Xavier de Toledo, no centro da cidade... Questões relativas ao esgotamento. Às condições sociais e suas perspectivas de futuro, aos horizontes de expectativas do que é possível. Um momento de problematizar a ideia de que no próprio esgotamento seria possível encontrar um força de transformação. Público, transeuntes e atores se misturam. Todos são colocados em relação, veem e são vistos, ao mesmo tempo em que ocupam um espaço de passagem atualmente inutilizado.” (Programa do trabalho do Teatro da Vertigem para 31ª Bienal São Paulo, 2014).
E aqui encontramos a conexão. Marie é também uma esgotada. “Esgota o que não se realiza no possível” (DELEUZE, O Esgotado, p. 68). Aqui, Marie também vislumbra os personagens de Beckett, brinca com o possível sem realizá-lo. Como diz o próprio Deleuze, “eles têm muito a fazer, com um possível cada vez mais restrito em seu gênero, para ainda se preocupar com o que ocorre”. Assim, também como diz, Silvia Balestreri Nunes, se referindo a que eu comparo a trajetória de Marie: “Podemos dizer que o tema principal é o esgotamento do possível” ... “Muito simplificadamente, pode-se dizer que o esgotamento do possível é a exaustão de toda história, das finalidades e objetivos, daí as combinatórias “para nada” e a riqueza que nos trazem as personagens de Beckett.”.
Em Beckett, o personagem Hamm é subitamente assaltado por uma dúvida: “Não estamos a caminho de...de...significar alguma coisa?, pergunta com emoção. E Clov tranquiliza-o imediatamente: Significar? Nós, significar! (breve sorriso.) Ah! Essa é boa!”. Neste fragmento, destacado do livro “Fim de Partida” (BECKETT, 2002, p.81) por Alain Robb-Grillet (1965, p.133), está implicado com uma política que nada quer ou comunicar. Segundo, Henz, um fio delgado, quase imperceptível na trama da sensibilidade contemporânea, e que ganha força com a noção de esgotamento. O esgotamento é ação e invenção, para nada. E de novo é, nesse estágio que reside a nossa personagem Marie. O esgotamento que pode constituir órgãos do tato para muitas espécies de encontro. Diferente do cansaço é a capacidade de dizer sim à vida em suas variações. “Não é apenas o cansaço, não estou apenas cansado, apesar da subida”, referem Beckett e Deleuze (BECKETT, 2006, p.86; DELEUZE, 1992, p.57).  É menos isto que tem sido chamado de sujeito moderno, do eu, e mais que a mudança de um conceito, é uma política com a vida que implica o intensivo, é talvez, uma nova formação histórica.”( ROBBE-GRILLET, 2010, p.77)”.
Assim como esta exposição da 31ª Bienal também pensa e age coletivamente para provar que é esse o modo mais poderoso e enriquecedor de trabalhar a lógica individualista que nos é geralmente imposta, que no caso, é representada aqui, pelos pais de Marie, que apenas desejam fazer a filha ser uma grande pianista. A imaginação é vista como uma ferramenta para ir além na nossa situação atual, transformando-a: a arte tem a capacidade de ser perturbadora e de criar situações nas quais o recusado é reconhecido e valorizado pelo ato de imaginar as coisas de forma diferente. E por sua vez, a transformação das pessoas, destes esgotados, “pode então ser entendida por meio de obras que apresentam o potencial de mudança”, assim como os personagens do Teatro da Vertigem e a nossa Marie, “agindo contra a imposição de uma única e absoluta verdade. Esse momento de virada parece tentar afastar-se dos parâmetros estabelecidos, a fim de dar espaço à complexidade e a flexibilidade, sem receios de enfrentamentos”. (Folder informativo da 31ª Bienal de São Paulo). 
            Assim, falando com os Vocacionados das possibilidades de pesquisas teatrais que poderíamos desenvolver, decidimos juntos optar pela experiência do espaço alternativo de teatro, tantas vezes experimentado pelo grupo Teatro da Vertigem com direção de Antônio Araújo, vide espetáculos como “Apocalipse 1.11” no Presídio do Hipódromo na Mooca, o “BR-3”, no Rio Tietê, e tantos outros. Para uma turma de iniciação ao teatro, ter o espaço do CEU Alvarenga todo, perceber que falar numa sala MULTIUSO é bem diferente de improvisar o texto lá fora (ora na rua, ora no estacionamento, ora na piscina e o tempo todo ter o público junto, indo e vindo e interagindo com os atores, sendo questionados e respondendo, etc.) e ter pessoas sempre alguém os assistindo. Todo o trabalho vocal, o trabalho de memorização de texto e a feitura destas improvisações revelaram-se numa nova utilização deste espaço: O CEU Alvarenga, a quem somos bem gratos pela parceria.
            Costurando tudo isto, houve os contatos com as imagens dos grafiteiros irmãos Gêmeos, que fizeram parte do nosso imaginário por três meses. A construção deste imaginário simples, de uma personagem do dia a dia, comum, que perambula todos os dias pela periferia da zona sul, mas que carrega nas suas roupas o desejo de sonhar. O estudo destas cabeças, contidas na expressão dos seus chapéus, destes mundos que revelam o seus sonhos/pensamentos/ e tormentos. Em suma, milhares de esgotados espalhados pelos lugares mais comuns desta periferia e centros da cidade grande, São Paulo.

Glaucia Felipe. Artista Orientadora do Programa Vocacional de Teatro, região sul 3. Mestre em Artes pela área de Teatro Educação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Atriz e Diretora Teatral formada pela mesma instituição. Professora efetiva da rede Estadual de Ensino em Artes em São Paulo.

Bibliografia
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Graal, 1988;

DELEUZE, Gilles. Sobre o teatro: Um manifesto de menos; O esgotado/ Gilles
Deleuze. Trad. Fátima Saadi, Ovídio Abreu, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Zahar,
2010. 112 p.;

HENZ, Alexandre. L’épuisé Uma política em Beckett e Deleuze, Artefilosofia, Ouro Preto, n.9, p.77-92, out.2010;

NUNES, Silvia Balestreri. “Um Deleuze a menos”. Revista Cena - Número 8 -ISSN 1519-275X. Periódico do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas. Instituto de Artes. Departamento de Arte Dramática, Universidade Federal do Rio Grande do Sul;
SILVA, Maria José. “O Circo Mágico”. Texto narrativo produzido como experimento para improvisações coletivas em espaços alternativos da turma de teatro do CEU ALVARENGA/2014.


  
Grafite dos Irmãos Gêmeos

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