Pérolas aos Poucos- Artista orientadora: Fernanda Faria- Vocacional Teatro - Ceu Capão Redondo- Equipe Sul 2
Pérolas aos Poucos
“Eu
jogo ao fogo todo o meu sonhar
Eu
quero ver o fogo se queimar
E até
no breu reconhecer
A flor
que o acaso nos dá
Eu
jogo pérolas ao Deus dará.”
( José Miguel Wisnik)
Percebi, logo no início, que
minhas propostas não estavam ecoando
nos corpos dos participantes. Eles, muito polidamente, realizavam todas,
esforçavam-se, mas não havia sido instaurada uma paixão. As propostas, apesar
de pensadas com todo cuidado para que fossem suficientemente abertas de forma a
contemplar todas as subjetividades, pareciam não dizer respeito a eles, que
tentavam criar o certo, o dentro do esperado, o material para ser aceito. Tudo
isso era muito sutil e difícil de ser percebido. Seria perfeitamente possível
seguir assim, se não houvesse uma microscópica areia dentro dos olhos
incomodando. Percebia-se um discurso querendo sair, mas ele só tinha vazão nos
intervalos, nos momentos de dispersão em que as histórias pessoais surgiam.
“Eu já fui em mais velórios do que festas.”(Kadu- 15 anos)
“Eu trabalhava como garçom no Hotel Transamérica. As pessoas que
frequentam o hotel são estranhas. Elas comem em silêncio. Parece um velório.
Aquele salão enorme do restaurante, tudo quieto. Vários supervisores ficam em
volta do salão vigiando o trabalho dos garçons. Eu tinha que atravessar aquele
deserto com uma bandeja de copos de cristal caríssimos nas mãos. Eu chegava a
suar de tão nervoso que ficava porque esses copos eram muito caros. Cada passo
era ouvido e olhado. Eu tentava me equilibrar no meu nervosismo. Tentava ter um
pensamento positivo e me manter concentrado, mas em certo momento algum
pensamento me atravessou e eu me desconcentrei. A bandeja foi escorregando da
minha mão e caiu no chão. Cada copo que caía, fazia ir embora meu salário e a
minha paz e a paz de cada um daqueles senhores que me olhavam com olhos de
desaprovação. Todos os olhos se voltaram para mim, contra mim. Meu rosto
fervia, me sentia oprimido naquela situação. Era muita pressão; uma sobremesa
custava 50 reais, um copo custava 100 reais, qualquer erro poderia ser fatal.
Era muita cobrança. Bom, eu não sabia o que fazer. Abaixei para pegar os cacos
, mas na verdade tentava ganhar tempo para pensar. Quando levantei, a única
atitude que consegui tomar foi chamar o tio da limpeza.”(Wesley Pereira
Rodrigues- 20 anos)
Essas frases e histórias não saíam da minha cabeça e eu não
conseguia entender por que elas não apareciam nas cenas, já que as propostas
tinham um caráter completamente aberto. Elas surgiam nas fissuras, nos momentos
inesperados. Não podia simplesmente ignorar essas histórias e não sabia como
fazer com que aparecessem deliberadamente como objeto do trabalho. Percebi que
eles precisavam gritar, não precisavam de um ponto de partida; eles sabiam o
que dizer apesar não valorizarem o que eles mesmos diziam.
Percebi que o meu ponto de partida tinha sido fundamental como
apenas um ponto de partida, mas que dali tinha de surgir algo diferente e que
realmente dissesse respeito a eles. Poderia ter insistido nas minhas propostas
e sentia que esse seria um caminho possível. Eles estariam comigo de qualquer
maneira e também surgiria uma criação, mas era necessário o desprendimento:
largar a pesada mala das minhas expectativas, ansiedades e pré-requisitos e me
colocar como criadora em risco.
Pedi, então, que cada um
trouxesse uma proposição cênica com algo que quisessem gritar, dizer para o
mundo, na forma que mais se sentissem à vontade. Chamamos isso de pérola
intuitivamente. Só depois fomos realmente entender que o termo cabia
perfeitamente para o que nos propusemos.
Esses ferimentos, essa invasão do mundo ou mesmo de um processo
artístico, eram elaboradas por esses participantes que conseguiam transformar
tal invasão em algo estético, em um objeto artístico, em poesia em pérolas aos
poucos.
Eu não
imaginava, porém, os rumos que o processo tomaria com esta proposta. No
encontro seguinte, pude perceber que estávamos trilhando um caminho real,
palpável, porém sem destino certo. Apareceram múltiplas formas e conteúdos:
depoimentos pessoais, cenas, músicas, poesia. Eu não me sentia pronta para
lidar com o material que surgiu. Eu também tinha sido ferida. Não dormia à
noite, tentando pensar em como transformaria esse material em cena. Como essas
histórias, muitas vezes pesadas e que não tinham em sua forma um caráter
teatral, poderiam ser trabalhadas? Como juntar todas as pérolas em uma
materialização coletiva do processo? Como manter viva a criação, depois de
várias apresentações das pérolas, quando o que era uma poética pessoal se
transformava em um texto decorado? Em que medida esses textos não refletiam uma
vontade individual de apenas se mostrar? Com o lidar com referências de
diferentes naturezas e que muitas vezes eram uma reiteração da indústria
cultural? Tentei, o tempo todo, trazer
essas propostas para a linguagem teatral. Oferecia diferentes elementos
teatrais para cada uma das pérolas, tentando friccioná-los com a proposta
inicial. Percebi meu papel como mediadora entre as
experiências de vida, os gritos de cada um e a transformação disso em cena.
Cada pérola foi trabalhada individualmente e coletivamente estabelecendo um
movimento entre criar, ver e ser visto pelo outro. Faziam parte também desse
movimento de transformação do material
inicial referências
externas de outros artistas que alimentavam,
inspiravam, criavam fricções e atritos através dos quais a faísca era
produzida.
Esse processo de
transformação do material-ferida em material-pérola passou por diversas etapas.
Cada material apresentado exigia um olhar específico, sempre aberto, cuidadoso
e que demandava muito tempo dentro e fora do ensaio. Foi necessário
inicialmente criar no grupo uma abertura para a recepção do material de cada
um, gerando um ambiente de acolhimento para que fosse possível a exposição.
Eles tocavam em questões extremamente delicadas e precisavam ser
segurados, para que não caíssem direto no chão. Para além da questão estética,
estavam em jogo aquelas subjetividades que encontraram no vocacional, um espaço
para serem ouvidas. Percebi
que muitas vezes aquelas histórias não apareciam em cena porque eles não as
achavam relevantes e dignas de serem ouvidas. Aqueles artistas, no início do
processo, ao recortarem algo para transformarem em objeto estético, fizeram
escolhas que não respeitavam seus verdadeiros afetos. Foi necessário tempo para
que percebessem que o grito de cada um era sim relevante, que cada voz ali
naquele espaço deveria ser ouvida.
Agora tínhamos um rico material em mãos e cada encontro era uma
descoberta, um caminho trilhado na direção do outro. Havia, porém, uma
ansiedade em fechar algo coletivamente, em juntar todas as pérolas. A cada
encontro, tentávamos estabelecer uma ordem para a realização das pérolas e
encontrar um fio condutor entre elas.
“A conexão entre as
nossas pérolas é como uma incessante busca pela perfeição, e por isso ela não
existe. Durante todo percurso tentamos criar uma conexão entre nossas histórias
numa tentativa frustrada de conectá-las. Até o dia em que, juntos, descobrimos
que isso seria impossível, já que cada um tem um desejo e uma maneira
particular de expor suas ideias e acontecimentos vivenciados. Juntar isso faria
com que algum de nós abrisse mão dessa exposição e com isso nos perderíamos
pelo meio do caminho. Quando pensei no divisor de águas e falei sobre a
maternidade, na verdade dividi com meu grupo somente a minha experiência.
Quando resolvi olhar de fora o que cada um tinha pra falar, percebi que aqui
nesse palco todos nós descobrimos o grande divisor de águas em nossa
experiência de vida. Porque nos permitimos compartilhar nossa história de uma maneira aberta, livre de preconceitos e culpas. E talvez por
isso o resultado tenha sido tão especial”. (Mauricéia Tavares Duarte-46 nos)
As
soluções encontradas para a junção do material de cada um empobreciam o
discurso, fazia com que perdessem toda a força e vivacidade. Foi de extrema
importância, para o processo, o contato com o
projeto Desobra Deja Vu, que consistia em um trabalho com a dança Butô e a
técnica de
Feldenkrais. O trabalho foi oferecido ao Vocacional pela coordenadora de Cultura Bruna que muito sensivelmente percebeu a relação entre o projeto mencionado e o processo desenvolvido com os vocacionados. O grupo de dança fez um trabalho prático com os artistas vocacionados e apresentou sua criação ainda em processo. O trabalho do grupo também contemplava a dança pessoal de cada dançarino e as soluções encontradas pelos mesmos para juntarem todas elas sem perder a essência de cada uma, sem uma preocupação com um fio narrativo e iluminou o nosso processo. A linguagem e as escolhas do grupo incomodaram profundamente os artistas vocacionados: o tempo dilatado do butô, a ausência de preocupação com um entendimento racional, a ausência de uma narrativa que apaziguasse aquelas subjetividades em cena. A conversa com o grupo mostrou que eles também haviam passado pelas mesmas questões e tinham aprendido a lidar com a ansiedade e respeitar o tempo.
Feldenkrais. O trabalho foi oferecido ao Vocacional pela coordenadora de Cultura Bruna que muito sensivelmente percebeu a relação entre o projeto mencionado e o processo desenvolvido com os vocacionados. O grupo de dança fez um trabalho prático com os artistas vocacionados e apresentou sua criação ainda em processo. O trabalho do grupo também contemplava a dança pessoal de cada dançarino e as soluções encontradas pelos mesmos para juntarem todas elas sem perder a essência de cada uma, sem uma preocupação com um fio narrativo e iluminou o nosso processo. A linguagem e as escolhas do grupo incomodaram profundamente os artistas vocacionados: o tempo dilatado do butô, a ausência de preocupação com um entendimento racional, a ausência de uma narrativa que apaziguasse aquelas subjetividades em cena. A conversa com o grupo mostrou que eles também haviam passado pelas mesmas questões e tinham aprendido a lidar com a ansiedade e respeitar o tempo.
Seria
possível ainda doar muito tempo para o trabalho com cada uma das pérolas
individualmente e coletivamente, mas o tempo acabou dando a sensação de algo
interrompido sem que o ciclo estivesse completo. Vamos mostrar o nosso processo
ainda nas ostras na esperança de que possamos retomar as nossas descobertas, apreciar
nossas pérolas, alçar vôos para outras
possibilidades e acolher novos gritos.
(Fernanda
Faria)
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