quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Pérolas aos Poucos- Artista orientadora: Fernanda Faria- Vocacional Teatro - Ceu Capão Redondo- Equipe Sul 2

Pérolas aos Poucos




“Eu jogo ao fogo todo o meu sonhar
Eu quero ver o fogo se queimar
E até no breu reconhecer
A flor que o acaso nos dá
Eu jogo pérolas ao Deus dará.”
 ( José Miguel Wisnik)






O presente ensaio pretende se debruçar sobre uma delicada transição entre a realidade e a ficção e a sua transformação em objeto artístico, tendo como fio condutor o processo de criação realizado junto aos artistas vocacionados do CEU Capão Redondo de maio a novembro de 2014.
A transformação em questão esteve, o tempo todo, “ferida-aberta” durante a criação. Não fica difícil captar a relação entre o tema proposto e a escolha do título deste ensaio. Em algum momento, difícil de precisar, escolhemos o termo pérola para designar a proposição cênica trazida pelos artistas. 
Percebi, logo no início, que
minhas propostas não estavam ecoando nos corpos dos participantes. Eles, muito polidamente, realizavam todas, esforçavam-se, mas não havia sido instaurada uma paixão. As propostas, apesar de pensadas com todo cuidado para que fossem suficientemente abertas de forma a contemplar todas as subjetividades, pareciam não dizer respeito a eles, que tentavam criar o certo, o dentro do esperado, o material para ser aceito. Tudo isso era muito sutil e difícil de ser percebido. Seria perfeitamente possível seguir assim, se não houvesse uma microscópica areia dentro dos olhos incomodando. Percebia-se um discurso querendo sair, mas ele só tinha vazão nos intervalos, nos momentos de dispersão em que as histórias pessoais surgiam.
“Eu já fui em mais velórios do que festas.”(Kadu- 15 anos)
“Eu trabalhava como garçom no Hotel Transamérica. As pessoas que frequentam o hotel são estranhas. Elas comem em silêncio. Parece um velório. Aquele salão enorme do restaurante, tudo quieto. Vários supervisores ficam em volta do salão vigiando o trabalho dos garçons. Eu tinha que atravessar aquele deserto com uma bandeja de copos de cristal caríssimos nas mãos. Eu chegava a suar de tão nervoso que ficava porque esses copos eram muito caros. Cada passo era ouvido e olhado. Eu tentava me equilibrar no meu nervosismo. Tentava ter um pensamento positivo e me manter concentrado, mas em certo momento algum pensamento me atravessou e eu me desconcentrei. A bandeja foi escorregando da minha mão e caiu no chão. Cada copo que caía, fazia ir embora meu salário e a minha paz e a paz de cada um daqueles senhores que me olhavam com olhos de desaprovação. Todos os olhos se voltaram para mim, contra mim. Meu rosto fervia, me sentia oprimido naquela situação. Era muita pressão; uma sobremesa custava 50 reais, um copo custava 100 reais, qualquer erro poderia ser fatal. Era muita cobrança. Bom, eu não sabia o que fazer. Abaixei para pegar os cacos , mas na verdade tentava ganhar tempo para pensar. Quando levantei, a única atitude que consegui tomar foi chamar o tio da limpeza.”(Wesley Pereira Rodrigues- 20 anos)

Um pequeno momento de digressão antes de prosseguir: o Wesley se afastou do processo por ter ido morar em outra cidade, mas continua extremamente presente em nossa memória. Quando tentei reproduzir suas palavras já comecei um processo de transição entre a realidade dele e esse relato que ganhou um pouco de ficção. Uma história quando recontada, recortada, repetida, colocada em outra boca, friccionada com um elemento teatral como a iluminação, um objeto de cena, palavras de outro autor, misturadas ao relato original, passa por um processo de transformação e, aos poucos, ganha contornos estéticos enquanto se afasta do depoimento pessoal e se aproxima da cena. Torna-se pérola aos poucos.
Essas frases e histórias não saíam da minha cabeça e eu não conseguia entender por que elas não apareciam nas cenas, já que as propostas tinham um caráter completamente aberto. Elas surgiam nas fissuras, nos momentos inesperados. Não podia simplesmente ignorar essas histórias e não sabia como fazer com que aparecessem deliberadamente como objeto do trabalho. Percebi que eles precisavam gritar, não precisavam de um ponto de partida; eles sabiam o que dizer apesar não valorizarem o que eles mesmos diziam.
Percebi que o meu ponto de partida tinha sido fundamental como apenas um ponto de partida, mas que dali tinha de surgir algo diferente e que realmente dissesse respeito a eles. Poderia ter insistido nas minhas propostas e sentia que esse seria um caminho possível. Eles estariam comigo de qualquer maneira e também surgiria uma criação, mas era necessário o desprendimento: largar a pesada mala das minhas expectativas, ansiedades e pré-requisitos e me colocar como criadora em risco.
Pedi, então, que cada um trouxesse uma proposição cênica com algo que quisessem gritar, dizer para o mundo, na forma que mais se sentissem à vontade. Chamamos isso de pérola intuitivamente. Só depois fomos realmente entender que o termo cabia perfeitamente para o que nos propusemos.

Uma pérola é um material orgânico duro e geralmente esféricoproduzido por alguns moluscos, as ostras, em reação a corpos estranhos que invadem o seu organismo, como vermes ou grãos de areia. Esses corpos estranhos machucam seu organismo . O manto, então, secreta uma série de substâncias que envolvem totalmente o invasor transformando-o em pérola.
Esses ferimentos, essa invasão do mundo ou mesmo de um processo artístico, eram elaboradas por esses participantes que conseguiam transformar tal invasão em algo estético, em um objeto artístico, em poesia em pérolas aos poucos.

Eu não imaginava, porém, os rumos que o processo tomaria com esta proposta. No encontro seguinte, pude perceber que estávamos trilhando um caminho real, palpável, porém sem destino certo. Apareceram múltiplas formas e conteúdos: depoimentos pessoais, cenas, músicas, poesia. Eu não me sentia pronta para lidar com o material que surgiu. Eu também tinha sido ferida. Não dormia à noite, tentando pensar em como transformaria esse material em cena. Como essas histórias, muitas vezes pesadas e que não tinham em sua forma um caráter teatral, poderiam ser trabalhadas? Como juntar todas as pérolas em uma materialização coletiva do processo? Como manter viva a criação, depois de várias apresentações das pérolas, quando o que era uma poética pessoal se transformava em um texto decorado? Em que medida esses textos não refletiam uma vontade individual de apenas se mostrar? Com o lidar com referências de diferentes naturezas e que muitas vezes eram uma reiteração da indústria cultural?  Tentei, o tempo todo, trazer essas propostas para a linguagem teatral. Oferecia diferentes elementos teatrais para cada uma das pérolas, tentando friccioná-los com a proposta inicial.  Percebi meu papel como mediadora entre as experiências de vida, os gritos de cada um e a transformação disso em cena. Cada pérola foi trabalhada individualmente e coletivamente estabelecendo um movimento entre criar, ver e ser visto pelo outro. Faziam parte também desse movimento de transformação do material inicial referências externas de outros artistas que alimentavam,  inspiravam, criavam fricções e atritos através dos quais a faísca era produzida.

Esse processo de transformação do material-ferida em material-pérola passou por diversas etapas. Cada material apresentado exigia um olhar específico, sempre aberto, cuidadoso e que demandava muito tempo dentro e fora do ensaio. Foi necessário inicialmente criar no grupo uma abertura para a recepção do material de cada um, gerando um ambiente de acolhimento para que fosse possível a exposição.
Eles tocavam em questões extremamente delicadas e precisavam ser segurados, para que não caíssem direto no chão. Para além da questão estética, estavam em jogo aquelas subjetividades que encontraram no vocacional, um espaço para serem ouvidas. Percebi que muitas vezes aquelas histórias não apareciam em cena porque eles não as achavam relevantes e dignas de serem ouvidas. Aqueles artistas, no início do processo, ao recortarem algo para transformarem em objeto estético, fizeram escolhas que não respeitavam seus verdadeiros afetos. Foi necessário tempo para que percebessem que o grito de cada um era sim relevante, que cada voz ali naquele espaço deveria ser ouvida.
Agora tínhamos um rico material em mãos e cada encontro era uma descoberta, um caminho trilhado na direção do outro. Havia, porém, uma ansiedade em fechar algo coletivamente, em juntar todas as pérolas. A cada encontro, tentávamos estabelecer uma ordem para a realização das pérolas e encontrar um fio condutor entre elas.
“A conexão entre as nossas pérolas é como uma incessante busca pela perfeição, e por isso ela não existe. Durante todo percurso tentamos criar uma conexão entre nossas histórias numa tentativa frustrada de conectá-las. Até o dia em que, juntos, descobrimos que isso seria impossível, já que cada um tem um desejo e uma maneira particular de expor suas ideias e acontecimentos vivenciados. Juntar isso faria com que algum de nós abrisse mão dessa exposição e com isso nos perderíamos pelo meio do caminho. Quando pensei no divisor de águas e falei sobre a maternidade, na verdade dividi com meu grupo somente a minha experiência. Quando resolvi olhar de fora o que cada um tinha pra falar, percebi que aqui nesse palco todos nós descobrimos o grande divisor de águas em nossa experiência de vida. Porque nos permitimos compartilhar nossa história de uma maneira aberta, livre de preconceitos e culpas. E talvez por isso o resultado tenha sido tão especial”. (Mauricéia Tavares Duarte-46 nos)
As soluções encontradas para a junção do material de cada um empobreciam o discurso, fazia com que perdessem toda a força e vivacidade. Foi de extrema importância, para o processo, o contato com o projeto Desobra Deja Vu, que consistia em um trabalho com a dança Butô e a técnica de
Feldenkrais. O trabalho foi oferecido ao Vocacional pela coordenadora de Cultura Bruna que muito sensivelmente percebeu a relação entre o projeto mencionado e o processo desenvolvido com os vocacionados. O grupo de dança fez um trabalho prático com os artistas vocacionados e apresentou sua criação ainda em processo. O trabalho do grupo também contemplava a dança pessoal de cada dançarino e as soluções encontradas pelos mesmos para juntarem todas elas sem perder a essência de cada uma, sem uma preocupação com um fio narrativo e iluminou o nosso processo. A linguagem e as escolhas do grupo incomodaram profundamente os artistas vocacionados: o tempo dilatado do butô, a ausência de preocupação com um entendimento racional, a ausência de uma narrativa que apaziguasse aquelas subjetividades em cena. A conversa com o grupo mostrou que eles também haviam passado pelas mesmas questões e tinham aprendido a lidar com a ansiedade e respeitar o tempo.
Percebemos que grande parte de nossas propostas trabalhavam com a luminosidade e era possível estabelecer um percurso da total escuridão à luz geral, passando por velas, por cenas que só tinham a duração de um fósforo aceso, lanternas, luzes de natal, sombras... Percebemos que, apesar da ansiedade de cada um em apresentar no palco, eles precisavam, acima de tudo, de um espaço de acolhimento, um espaço protegido e pequeno para que aquelas pérolas fossem expostas olho no olho. Precisavam, ainda, de suas ostras. Cada um, então, criou para si uma cápsula/ostra onde sua pérola seria mostrada. Era ao mesmo tempo um espaço de proteção e um espaço cênico/ instalação criado para materializar o ambiente da sua pérola.
Seria possível ainda doar muito tempo para o trabalho com cada uma das pérolas individualmente e coletivamente, mas o tempo acabou dando a sensação de algo interrompido sem que o ciclo estivesse completo. Vamos mostrar o nosso processo ainda nas ostras na esperança de que possamos retomar as nossas descobertas, apreciar nossas pérolas,  alçar vôos para outras possibilidades e acolher novos gritos.
(Fernanda Faria)



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