Padrões do Sol
Artista Orientadora Andressa Ferrarezi
Zona Sul
CEU Vila do Sol
Uma cadeia sucessiva de cegueira se forma...Uma cegueira branca, como
um mar de leite e jamais conhecida, alastra-se rapidamente em forma de
epidemia.
José Saramago (Ensaio sobre a Cegueira)
Uma terra onde o sol tarda a
chegar e lá, me parece, ele nasce no sul...
O tempo frio da Vila do Sol
afasta relações humanas pela simples dureza de se existir e insistir em
existir.
Meu primeiro ano como Artista Orientadora
do Programa Vocacional Teatro me fez repensar todos os meus anos na arte.
Depois de quase duas horas para o trajeto, a expectativa do que encontrar na Avenida
dos Funcionários Públicos se desfez na decepção do perceber que a vila onde
mora o sol era desértica.
Dias de espaços vazios e a
criatividade se traduzindo em divulgação, me davam a sensação de “caminho
errado”. Onde estavam pessoas que tanto me disseram que passaram por lá à
procura da orientação? Estavam com os orientadores de música e dança. Cômico se
não fosse triste. Um pequeno e simples cartaz impresso em P/B (sem nenhuma
técnica de designer) convidava: QUER FAZER TEATRO? Foram dezenas espalhadas, já
que o material gráfico, nada convidativo, produzido pela SMC não dizia “a que
veio”, muito menos era suficiente para uma divulgação no “patinho feio” dos
CEUS.
Apesar da coordenação de cultura
do espaço ser bastante atuante e receptiva, não sabíamos por onde começar.
Falei com Associações, militantes, mães e avós, crianças: tragam, pelo amor
divino, alguém para o teatro!
Então, ao verem o cartaz na
biblioteca, a resposta começou a chegar: Sim, queremos fazer teatro!
Que maravilha! Primeiro uma, na
outra semana mais três, nove, doze...uma turma! Turma iniciante. Mas é esse o
foco do vocacional? Iniciantes? Não, mas vamos lá...
Exercícios e jogos básicos
mostravam corpos, novos copros, com a repressão herdada operando como velhos.
Risos nervosos característicos das excitação contida expressada em “não quero
fazer, não consigo”, no passar das semanas, me surpreendiam na presença, sem
quase nenhuma falta.
Algo acontecia, em tão pouco
tempo, dentro daqueles jovens que não resultava em nada no trabalho e técnica
de ator ou atriz, mas em percepção de existência.
“...O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somos
realmente, isto é, “um conhece-te a ti mesmo” como produto do processo
histórico até hoje desenvolvido que deixou em ti uma infinidade de traços
recebidos sem benefício do inventário.” (Gramsci, A. Concepção dialética da
História, p. 12)
Filmes,
leituras, conversar, produção de textos e desenhos, o teatro crítico, visão de
mundo... Kyogen (O Cego que admirava a Lua) traduzido em realidade. Abrir
espaços críticos dentro desses corpos prontos para entrar na ebulição da libido
reprimida, desperta o olhar para tudo aquilo que os cercavam, mas que estavam
tão naturalizados que mal podiam admirar a lua da terra do sol.
Essa que vos
fala tem sua trajetória artística construída pelo teatro épico, dialético e
político, tão acostumada a jogar olhar sensível à miséria humana e
transformá-la em arte crítica, muitas vezes não sustentou o espanto ao ouvir
relatos de violência do pequeno microcosmo representativo do macro que
intensificava a violência em linchamento na porta do CEU, policiais dispersando,
com gás de pimenta, adolescentes da porta da escola estadual, reificação de
meninas, professores praticando bullying com seus alunos, abandono paterno,
entre outras questões não menos leves...
“ Os homens (e mulheres)
fazem sua própria história, mas não fazem como querem; não a fazem sob
circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com quem se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx, K. O 18 Brumário, p.
17)
Uso essa
frase como exemplo para quando coletivamente fui questionada: o que fazer se existe
um “padrão, modelo” a se seguir no nosso amadurecimento, mas, na verdade, a
vontade de romper com ele é muito maior? Partindo disso, em debate, concluíram que
os muito desejos suicidas que sentiam vinham da obrigação de seguir tal padrão
(estudar, se formar, arrumar emprego, casar, ter filhos e morrer...pobres, com
a ambição de ficarem ricos).
Então, após um
dos encontros regionais com orientadores e coordenadores, o que ficou
reverberando em mim foi o termo emancipação dos corpos. Poderia eu, com o corpo
emancipado pelo teatro, mas num estado pessimista mostrar para toda a turma que
meu corpo deliciosamente liberto pela arte encontrou tantas barreiras que num
movimento de recuo aceitou padrões como naturais? Mergulhou no mar de leite da
cegueira branca...
Penso comigo,
que aqueles meninos e meninas usam seus corpos como barricadas. Diferentes do
urubu, que depois de se alimentar de morte, pode fazer um dos voos mais bonitos
planando e olhando de cima, esses jovens se alimentam mas continuam nela, não
distanciam e isso não é nada poético, muito menos justo.
“Será que tudo que vivemos não passa de um sonho? Que amanhã de manhã você
pode acordar e descobrir que ainda tem cinco anos? Será mesmo que o mundo é
apenas uma ilusão, todos somos uma ilusão, tudo que vivemos aqui não passa de
um sonho? Isso tudo aqui não vale a pena e logo será destruído...eu tenho meus
motivos para achar que não” (trecho do texto Lembranças de uma vida da vocacionada Kellen Miranda)
Mais tardar
aparece um grupo para receber orientação, cerca de trinta pessoas, dentre eles
jovens e adultos (pais e mães) . Um grupo evangélico da Igreja Metodista que
dominavam algumas técnicas de música e dança e agora buscavam o teatro com o
intuito de evangelizar, levar a palavra de deus (não assustem, eu tenho o
frequente hábito de escrever com minúscula). Jogos e muitas brincadeiras, a
presença das crianças filhas dos vocacionados acompanhando o encontro e mais um
desafio da terra do sol.
O mais
importante deste trabalho foi estar aberta para aquilo que eles, mesmo sem
experiência, traziam: animes e mangas vindos das turmas e salmos e lições de
moral vindos do grupo me fizeram pesquisar e mergulhar em mundos que eu não
havia criado, mundos buscados pelos desterrados para construir seus muitos
territórios afetivos, geográficos e/ou críticos.
Agora já
perto do fim da orientação nublada, pouco vejo o sol e ele nem muito me aquece.
Olho para eles e elas mais maduros em tão poucos meses, tão mais seguros, mas
com corpos ainda expressando a opressão e não encontro palavras para finalizar
este pequeno ensaio/relato/desabafo, uso então, palavras alheias, degluto-as e
devoro-as ao mundo com um pouquinho de mim, transformada, mas com a visão turva
para encontrar o caminho:
“ Mas é nelas
(bocas e mãos, sonhos, greves e denúncias)
Que te vejo pulsando, mundo novo,
ainda que em estado de soluções e esperança.”
Ferreira Gullar
“Quem descobre o que sou descobrirá o que é”
Pablo Neruda
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