Por Andréa Tavares coordenadora de equipe Artes Visuais
Ateliê Contemporâneo e público: espaço/tempo de trabalho
Um ateliê é um espaço de trabalho. O espaço de trabalho do
artista. Um artista se forma e trabalha em um ateliê. O espaço da pesquisa e da
experimentação é um lugar de trabalho onde se guardam instrumentos e tempo. É
um território onde materialidades sugerem ideias e pensamentos se tornam
materiais. O ateliê é um centro social,
uma célula revolucionária, a igreja de uma nova religião, a sala de trabalho de
um comerciante, um continente convencional para ideias pré-estabelecidas, o lar
de um culto, uma fábrica de produtos, uma clínica, uma cozinha limpa, um sótão
caótico, um lugar de experimentação, o covil do artista solitário.[i]
Segundo o artista e crítico Brian O´Doherty desde o século XIX o ateliê é
tudo isso, e posso acrescentar que também é um local de formação, uma vez que é
o espaço privilegiado do fazer e da reflexão artística. O trabalho do artista
conjuga fazer e reflexão muitas vezes de modo indistinto, não podendo ser
percebido com clareza a diferença entre ambas; o fazer considerado como ação transformadora
na matéria é reflexão sobre sentidos possíveis enquanto a (re)significa, o ato
de refletir, ainda que mentalmente, por sua vez modificaria o modo de pensar e
o modo de agir sobre ela. O artista norte americano Robert Smithson escreveu
certa vez que o artista é capaz de fazer arte apenas com o olhar.[ii]
Seria a cabeça do produtor de arte o seu primeiro ateliê? Talvez.
Na prática artística contemporânea podemos pensar em
artistas e mesmos coletivos de arte que não precisam de bases físicas, como galpões
ou salas, o trabalho que antes acontecia desta forma pode se pulverizar na
interação digital, o celular, o tablete ou o computador podem fazer as vezes do
ateliê. Mas o que quero discutir aqui, apesar desta primeira divagação, é um
contexto de trabalho e produção artística específico, os ateliês instaurados
pelo Programa Vocacional de Artes Visuais. Digo instaurados porque antes da
ação do programa, dos encontros entre artista-orientador e vocacionados, os
ateliês não existia como tal são instauradas na prática cotidiana pelos
interesses dos artistas vocacionados. O presente texto parte da hipótese de que
o ateliê no Programa Vocacional é um lugar físico configurado por um desejo.
Assim necessitamos de salas e equipamentos para a experimentação das linguagens
da mesma forma que necessitamos de desejos, artistas vocacionados.
O objetivo geral do Programa Vocacional segundo o “Material
Norteador” é “a instauração de processos
criativos emancipatórios por meio de práticas artístico-pedagógicas” e o
especifico de artes visuais o de “provocar ações do pensamento criador e
imaginativo, fornecendo meios para a realização de pesquisas que levem a
experimentar novas linguagens e novos procedimentos de criação”. As
condições fornecidas para tanto se dão em encontros de 3hs por semana com cada
turma e um artista-orientador em equipamentos culturais do munícipio da cidade
de São Paulo. O programa organiza tempo, orientação e espaço para que os
sujeitos interessados em desenvolver uma produção em artes visuais o possam
fazer. Considerando os objetivos podemos concluir que se privilegia a produção
individual de sujeitos que pensam por si mesmos, que podem produzir segundo as
suas necessidades mas para os quais fornecemos a possibilidade de experimentar
linguagens e procedimentos que talvez desconhecessem. O papel do
artista-orientador, relacionado no Material Norteador do Programa, ao do
“mestre ignorante” defendido pelo filósofo Jacques Ranciere é de provocar uma
produção criando encontros. Na prática o artista orientador questiona e provoca
questionamentos através de proposições práticas e dialógicas.
O modelo de espaço de
trabalho que cabe então na nossa proposta é o de um espaço de experimentação e
risco, um lugar para a descoberta de mundos possíveis. Um lugar de encontro
onde a criação individual é estimulada através do diálogo coletivo que acontece
em equipamentos públicos; assim temos como espaço de trabalho um ateliê
coletivo e público.
Cabe discorrer sobre o que consideramos trabalho. Produção
de pensamento, compartilhamento de ideias, experimentação técnica tudo isso
configura trabalho. Não estamos falando simplesmente do exercício de um ofício
técnico, o Programa Vocacional não é profissionalizante, o que não exclui a
discussão do exercício da arte profissionalmente, mas nosso objetivo é outro. O
filósofo Nicolas Borriaud em seu livro “Estética Relacional” define o artista
como um produtor de tempo[iii],
no desenvolvimento de seu argumento o autor aponta a importância das
proposições artísticas suspenderem o tempo organizado da lógica capitalista
utilitarista, como uma situação que fornece meios para a existência de um
pensamento crítico sobre a sociedade, um tempo suspenso como um lugar onde
podemos nos ver em contexto e em outras funções. Embora Jacques Ranciere tenha
criticado muitas vezes seu conterrâneo, Borriaud, ele também defende que as
artes potencializam a capacidade dos sujeitos driblarem os papéis que lhes
foram outorgados pela sociedade utilitarista, assim o metalúrgico pode ser
cantor, o cobrador de ônibus um poeta, a dona de casa uma vídeo-maker, o
padeiro um pintor. Uma proposta artística suspende este tempo e abre mundos
possíveis. Assim também a produção artística possibilita esta suspensão, para
Borriaud a produção e a fruição da obra de arte são coincidentes, uma vez que a
proposição artística só se realiza no encontro com o outro. Artista, produtor,
espectador, fruidor se encontram em uma proposição, seja ela performance ou
cartaz, vídeo ou instalação, pintura ou desenho, e o tempo está suspenso, novos
mundos podem se configurar. Novos mundos são novas possibilidades, ou
possibilidades até mesmo imprevistas, segundo Ranciére de agir no mundo este
seria para ele o “regime estético” da arte[iv].
O trabalho nos encontros do Programa Vocacional de Artes Visuais é suspender o
tempo para perceber outras possibilidades de ação através da experimentação das
linguagens.
Lembrando que a experimentação das linguagens acontece em
espaços públicos, nos equipamentos culturais, Casas de Cultura, CEUS,
Bibliotecas, Centros Culturais. Cada equipamento determina um espaço físico
para nossos encontros. Uma parceria é estabelecida entre artista-orientador e
seu grupo de artistas vocacionados e a gestão dos equipamentos. O Artes Visuais
existe há 3 anos dentro do programa Vocacional, é um projeto recente. Saliento
isso porque acredito que esta parceria entre programa e equipamentos leve tempo
para acontecer, para que as necessidades de todos sejam identificadas e os
desejos reconhecidos. No cotidiano o equipamento nos fornece uma sala, com
mesas e cadeiras, não muito mais do que isso. Este espaço muitas vezes é usado
também para outras atividades, a princípio não temos um ateliê de artes
desenhado como tal. Como seria um ateliê de artes desenhado por um projeto de
arquitetura? Como o ateliê pressupõe exercícios práticos com materiais diversos
teríamos bancadas de trabalho fixas e fortes, pias, armários, boa iluminação,
boa ventilação. Podemos estender isso e pensar que a experimentação com
linguagens demanda ferramentas e materiais, que muitas vezes também não
encontramos nos equipamentos. Então os artistas-orientadores disponibilizam
suas ferramentas e materiais pessoais, pedem que os vocacionados também
contribuam. Daí a necessidade de buscar parcerias estreitas com os equipamentos
que auxiliam na instauração dos processos de trabalho. Coisas simples como a
necessidade de usar um martelo, uma fita crepe, ou de ter um armário na sala
são resolvidas nestas parcerias.
Um papel diferente fora do padrão sulfite e canson, um lápis
integral, uma caneta com ponta pincel, uma aquarela, tudo isso instiga o
vocacionado a testar sua produção e ver possibilidades para ela que antes não
percebia. Uma AO relatou que levou para seu encontro lápis grafite 6B, um lápis
mais mole e mais escuro do que o 2B ou HB que se costuma usar na escola para
escrever, e que este simples objeto causou uma comoção, o primeiro a usar
o lápis foi chamando os colegas para
mostrar o que poderia ser feito com ele e todos iam se empolgando em usar este
instrumento tão banal dentro do contexto artístico. O ateliê é um lugar de troca de informações, vou aos espaços um pouco como um artista
visitante. Sempre saio dos encontros com muita coisa para pesquisar,
ultimamente tenho sido levada a pesquisar animes, já que boa parte dos
vocacionados, entre a faixa etária de 14 e 24 tem me mostrado estas referências,
para eles muito cotidianas e para mim desconhecidas.
Várias maneiras de contornar as dificuldades materiais tem
sido encontradas, aqui gostaria de citar duas, as soluções encontradas na Casa
de Cultura do Itaim Paulista e na Biblioteca Nuto Santanna. Na Casa de Cultura
Itaim Paulista o Programa de Artes Visuais está em seu terceiro ano, e com o
mesmo artista-orientador, Flávio Camargo, a dois anos. Esta situação
possibilitou que pudesse ser instaurado ali um ateliê somente para o Vocacional
onde temos espaço para experimentar linguagens como o grafite, o stencil e a xilogravura,
pintando e colando papéis nas paredes. A administração da Casa de Cultura não
só permitiu mas forneceu material para uma intervenção em seus muros. O grupo
de vocacionados que se reúne ali, já se configura como coletivo de arte e
contribui também ao levar seu próprio material. As intervenções urbanas com
grafite instigaram o grupo a utilizar outras formas de criação de imagens e
intervenções, estão agora pesquisando vídeo mapping. Foi importante ali a
persistência, três anos consecutivos com a mesma linguagem, dois anos com o
mesmo AO. Conseguiram instaurar ali um ateliê onde os participantes administram
seu tempo, se o encontro tem 3 hs e o artista vocacionado pode ficar apenas 1h
isso não é um empecilho para a sua participação, já que o sujeito está
realmente implicado no trabalho. Os vocacionados se organizam para criar ações
de intervenção fora do horário dos encontros, que são percebidos por eles como
um momento de experimentação, planejamento, pesquisa e reflexão sobre estas
ações na rua. A uma clara percepção do grupo orientado pelo AO Flávio Camargo
que existe uma diferença de escala de trabalho, do que acontece no ateliê e do
que acontece na rua, o ateliê se torna uma espécie de central estratégica de
operações. Os primeiros exercícios do grupo acontecem nas paredes internas da
casa, hoje coberta por cartazes e stencils produzidos pelo grupo, e saem depois
pela rua, pelos muros. O tempo de permanência na casa e a mediação do AO
tornaram a ação deste grupo inteligível para o próprio equipamento que se abre
para a interação.
Em outra parte da cidade na Biblioteca Nuto Santanna outra
parceria bem sucedida está no seu segundo ano. A AO Talita Caselato com seus
artistas vocacionados e junto a administração da Biblioteca instaurar um
verdadeiro espaço de trabalho. A sala que poderíamos chamar de ateliê, guarda
os materiais e ferramentas, mas o espaço todo do jardim as salas de leitura é
usado pelos vocacionados. O trabalho iniciado no ano passado com o grupo de
vocacionados resultou em um projeto aprovado pelo VAI “ Confessa uma história
pra mim?”, de Bruna Edilamar e Isabella Carvalho. Agora a AO também as orienta
neste projeto e o ateliê se tornou um
pouco um escritório de produção, na medida em que elas precisam fazer a
divulgação, a produção, o registro e o relatório do projeto que envolve
performance, fotografia, vídeo, desenho, xilogravura. A administração do
equipamento, diante do comprometimento das vocacionadas, permitiu a utilização
da sala fora dos horários dos encontros do vocacional, assim um exercício
verdadeiro de emancipação se põe em processo. Tudo aconteceu porque um
tempo/espaço de trabalho foi instaurado. Um ateliê não é simplesmente um lugar
físico, ele precisa de produtores de tempo, mas os produtores de tempo também
precisam de um lugar físico que possibilite uma situação de encontro.
O artista Ricardo Basbaum defende “ a noção de artista como 'dispositivo de atuação' – ainda que só possa
ser inerente à própria condição de invenção e autonomia da arte a partir do
Renascimento e da modernidade, com a ênfase de sua atuação sendo gradativamente
deslocada do virtuosismo artesanal para a produção de dispositivos sensíveis de
pensamento.” (- BASBAUM, Ricardo.
Deslocamentos rítmicos: o artista como agenciador, como curador e como crítico.
IN: 27ª Bienal de São Paulo – Seminários. LAGNADO, Lisette. (org.). São Paulo,
Cobogó e Fundação Bienal de São Paulo, 2006. p. 57). O artista como
“dispositivo de atuação” tem posição mutante, é agenciador de propostas, não
apenas produtor de objetos, em suas diversas manifestações compõe o campo da
arte. Essa noção contemporânea é exercida na prática dentro do programa, tanto
na figura do AO quanto no vocacionado. No entanto o local de trabalho, como
local de encontro e experimentação se faz necessário como lugar de atrito entre
matéria e pensamento. No contexto da cidade a população pode se apropriar dos
espaços da cultura como produtores, e não apenas espectadores representados em
números de visitantes. Instaurar ateliês e equipa-los é potencializar as
possibilidades de apropriação do espaço público na ação dos cidadãos percebidos
como produtores emancipados.
Depois de um tempo, agora.
O texto acima foi finalizado por volta de setembro.
Depois dessas muitas outras questões foram se tornando importantes. Antes de se
pensar em implantar ateliês talvez precisemos contemplar o Programa Vocacional
de modo mais abrangente e desapegado. Abrangente no sentido de pensa-lo em
relação às políticas culturais implantadas na cidade, tanto na esfera municipal
como na estadual e sem desconsiderar o circuito cultural privado.
Acredito que o Programa Vocacional tenha se colocado
na cidade como um espaço importante de formação em arte, para além de propostas
utilitaristas ele promoveria a possibilidade dos sujeitos desenvolverem e
aprofundarem seus potenciais críticos e criativos. Escrevo promoveria porque
também percebo que o Programa ainda não alcançou seu pleno potencial, pelo
menos no que percebo da linguagem de Artes Visuais.
Não é apenas por não termos matérias e instalações,
mas porque permanecemos escondidos na malha da cidade, porque as relações de
trabalho estão confusas, porque não temos parâmetros de avaliação, e porquê...
Nossas ações são mal divulgadas, assim como os nossos objetivos nos próprios
canais de divulgação da secretaria, por um lado precisamos nos comunicar melhor
com a população em textos mais objetivos e por outro lado precisamos nos
inserir nos debates sobre formação e arte que já estão ocorrendo.
Nossas relações de trabalho são confusas não
simplesmente porque a equipe é contrata apenas por 8, 9 ou 10 meses, outros
problemas foram bem apontados nas diversas reuniões ocorridas durante o ano, a
equipe da Divisão de Formação está sobrecarregada, precisaria haver ali em seus
quadros uma coordenação permanente apenas para o programa, e que se dividisse
em coordenação artística, regional e o que mais for necessário, desde que haja
uma equipe 12 meses por ano para lidar e refletir sobre o programa.
Refletir sobre o programa requer criar parâmetros de
avaliação, examinar o objetivo do programa em relação aos resultados e
possibilidades reais em diversas estancias, artísticas, pedagógicas, éticas,
sociais, econômicas e jurídicas. Estes parâmetros podem ser estabelecidos em
discussões internas com a análise dos relatórios da equipe de 2014, com a
equipe que irá atuar em 2015, com a divisão de Formação e com conselheiros
externos. Daí eu falar em desapego, nos escondemos na malha da cidade em um
lugar cômodo distante de um olhar crítico de nossos pares. Assim é difícil
entender a demanda pelo programa e sua real necessidade na cidade.
O histórico do programa parte de uma vontade de
profissionais de arte, principalmente de teatro, que entenderam a necessidade
de proporcionar a formação artística como possibilidade do exercício da
emancipação dos sujeitos em atos criativos e expressivos. Essa vontade foi
acolhida pelo estado, pela secretaria municipal de cultura e assim o desejo se
tornou uma prática institucional, e sendo assim não pertence mais a um grupo,
pertence aos cidadãos e é gerido pelo município que se responsabiliza por ele.
O programa não pertence aos prestadores de serviço contratados pela secretaria,
estes efetivamente executam o programa, constituindo-o no plano do real, mas
precisam ouvir a cidade através do gestor do programa, a secretaria, e também
precisam ser ouvidos sobres a necessidades mais especificas do exercício das
diversas linguagens dentro deste projeto. O diálogo existe, mas percebo, com
muita aflição, a falta de disponibilidade para repensar o programa na situação
em que estamos, por isso creio ser tão importante a Divisão de Formação
organizar parâmetros de avaliação com um conselho que considere em seu quadro
tanto os fundadores do programa como avaliadores externos. Se processos
artísticos são instaurados dentro do programa, não conseguimos ter a clareza de
dizer o porque e como isso aconteceu. Processos artísticos emancipadores são
instaurados a todo o momento em muitos lugares, precisamos entender porque e
como acontecem aqui, se acontecem. Uma avaliação desapegada.
Segundo Jacques Ranciére, em A partilha do Sensível, as práticas artísticas contemporâneas, o
que chama de regime estético das artes, provocam dissenso, não geram heterogeneidades,
fazem transparecer as diferenças e criam heterotopias. É necessário que o
programa considera esta multiplicidade para se entender na realidade da cidade
como produtor de ficções. Não podemos ser uma ficção que gera realidades. A
arte não pode ser um fim para um meio. Assim creio que desenhados parâmetros
norteadores assim como os de avaliação, pode ser assegurado a autonomia das
ações artísticas entre AOs e vocacionados na criação de mundos possíveis.
Fotografia feita durante o encontro de formação na nossa primeira semana de trabalho.
[i]
Livre tradução da autora. Ver: O´Doherty, Brian. Studio and Cube. New York, Columbia University,
2009. (p.10)
[ii]
SMITHSON,
Robert. Uma sedimentação da mente: projetos de terra. IN: FERREIRA, Glória e
COTRIM, Cecília. Escritos de Artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 2006. (p.197)
[iv]
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo, editora 34, 2005. Pp. 32-35
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