sexta-feira, 28 de novembro de 2014



Por Andréa Tavares coordenadora de equipe Artes Visuais
 
Ateliê Contemporâneo e público: espaço/tempo de trabalho

Um ateliê é um espaço de trabalho. O espaço de trabalho do artista. Um artista se forma e trabalha em um ateliê. O espaço da pesquisa e da experimentação é um lugar de trabalho onde se guardam instrumentos e tempo. É um território onde materialidades sugerem ideias e pensamentos se tornam materiais. O ateliê é um centro social, uma célula revolucionária, a igreja de uma nova religião, a sala de trabalho de um comerciante, um continente convencional para ideias pré-estabelecidas, o lar de um culto, uma fábrica de produtos, uma clínica, uma cozinha limpa, um sótão caótico, um lugar de experimentação, o covil do artista solitário.[i] Segundo o artista e crítico Brian O´Doherty desde o século XIX o ateliê é tudo isso, e posso acrescentar que também é um local de formação, uma vez que é o espaço privilegiado do fazer e da reflexão artística. O trabalho do artista conjuga fazer e reflexão muitas vezes de modo indistinto, não podendo ser percebido com clareza a diferença entre ambas; o fazer considerado como ação transformadora na matéria é reflexão sobre sentidos possíveis enquanto a (re)significa, o ato de refletir, ainda que mentalmente, por sua vez modificaria o modo de pensar e o modo de agir sobre ela. O artista norte americano Robert Smithson escreveu certa vez que o artista é capaz de fazer arte apenas com o olhar.[ii] Seria a cabeça do produtor de arte o seu primeiro ateliê? Talvez.
Na prática artística contemporânea podemos pensar em artistas e mesmos coletivos de arte que não precisam de bases físicas, como galpões ou salas, o trabalho que antes acontecia desta forma pode se pulverizar na interação digital, o celular, o tablete ou o computador podem fazer as vezes do ateliê. Mas o que quero discutir aqui, apesar desta primeira divagação, é um contexto de trabalho e produção artística específico, os ateliês instaurados pelo Programa Vocacional de Artes Visuais. Digo instaurados porque antes da ação do programa, dos encontros entre artista-orientador e vocacionados, os ateliês não existia como tal são instauradas na prática cotidiana pelos interesses dos artistas vocacionados. O presente texto parte da hipótese de que o ateliê no Programa Vocacional é um lugar físico configurado por um desejo. Assim necessitamos de salas e equipamentos para a experimentação das linguagens da mesma forma que necessitamos de desejos, artistas vocacionados.
O objetivo geral do Programa Vocacional segundo o “Material Norteador” é “a instauração de processos criativos emancipatórios por meio de práticas artístico-pedagógicas” e o especifico de artes visuais o de “provocar ações do pensamento criador e imaginativo, fornecendo meios para a realização de pesquisas que levem a experimentar novas linguagens e novos procedimentos de criação”. As condições fornecidas para tanto se dão em encontros de 3hs por semana com cada turma e um artista-orientador em equipamentos culturais do munícipio da cidade de São Paulo. O programa organiza tempo, orientação e espaço para que os sujeitos interessados em desenvolver uma produção em artes visuais o possam fazer. Considerando os objetivos podemos concluir que se privilegia a produção individual de sujeitos que pensam por si mesmos, que podem produzir segundo as suas necessidades mas para os quais fornecemos a possibilidade de experimentar linguagens e procedimentos que talvez desconhecessem. O papel do artista-orientador, relacionado no Material Norteador do Programa, ao do “mestre ignorante” defendido pelo filósofo Jacques Ranciere é de provocar uma produção criando encontros. Na prática o artista orientador questiona e provoca questionamentos através de proposições práticas e dialógicas.
 O modelo de espaço de trabalho que cabe então na nossa proposta é o de um espaço de experimentação e risco, um lugar para a descoberta de mundos possíveis. Um lugar de encontro onde a criação individual é estimulada através do diálogo coletivo que acontece em equipamentos públicos; assim temos como espaço de trabalho um ateliê coletivo e público.
Cabe discorrer sobre o que consideramos trabalho. Produção de pensamento, compartilhamento de ideias, experimentação técnica tudo isso configura trabalho. Não estamos falando simplesmente do exercício de um ofício técnico, o Programa Vocacional não é profissionalizante, o que não exclui a discussão do exercício da arte profissionalmente, mas nosso objetivo é outro. O filósofo Nicolas Borriaud em seu livro “Estética Relacional” define o artista como um produtor de tempo[iii], no desenvolvimento de seu argumento o autor aponta a importância das proposições artísticas suspenderem o tempo organizado da lógica capitalista utilitarista, como uma situação que fornece meios para a existência de um pensamento crítico sobre a sociedade, um tempo suspenso como um lugar onde podemos nos ver em contexto e em outras funções. Embora Jacques Ranciere tenha criticado muitas vezes seu conterrâneo, Borriaud, ele também defende que as artes potencializam a capacidade dos sujeitos driblarem os papéis que lhes foram outorgados pela sociedade utilitarista, assim o metalúrgico pode ser cantor, o cobrador de ônibus um poeta, a dona de casa uma vídeo-maker, o padeiro um pintor. Uma proposta artística suspende este tempo e abre mundos possíveis. Assim também a produção artística possibilita esta suspensão, para Borriaud a produção e a fruição da obra de arte são coincidentes, uma vez que a proposição artística só se realiza no encontro com o outro. Artista, produtor, espectador, fruidor se encontram em uma proposição, seja ela performance ou cartaz, vídeo ou instalação, pintura ou desenho, e o tempo está suspenso, novos mundos podem se configurar. Novos mundos são novas possibilidades, ou possibilidades até mesmo imprevistas, segundo Ranciére de agir no mundo este seria para ele o “regime estético” da arte[iv]. O trabalho nos encontros do Programa Vocacional de Artes Visuais é suspender o tempo para perceber outras possibilidades de ação através da experimentação das linguagens.
Lembrando que a experimentação das linguagens acontece em espaços públicos, nos equipamentos culturais, Casas de Cultura, CEUS, Bibliotecas, Centros Culturais. Cada equipamento determina um espaço físico para nossos encontros. Uma parceria é estabelecida entre artista-orientador e seu grupo de artistas vocacionados e a gestão dos equipamentos. O Artes Visuais existe há 3 anos dentro do programa Vocacional, é um projeto recente. Saliento isso porque acredito que esta parceria entre programa e equipamentos leve tempo para acontecer, para que as necessidades de todos sejam identificadas e os desejos reconhecidos. No cotidiano o equipamento nos fornece uma sala, com mesas e cadeiras, não muito mais do que isso. Este espaço muitas vezes é usado também para outras atividades, a princípio não temos um ateliê de artes desenhado como tal. Como seria um ateliê de artes desenhado por um projeto de arquitetura? Como o ateliê pressupõe exercícios práticos com materiais diversos teríamos bancadas de trabalho fixas e fortes, pias, armários, boa iluminação, boa ventilação. Podemos estender isso e pensar que a experimentação com linguagens demanda ferramentas e materiais, que muitas vezes também não encontramos nos equipamentos. Então os artistas-orientadores disponibilizam suas ferramentas e materiais pessoais, pedem que os vocacionados também contribuam. Daí a necessidade de buscar parcerias estreitas com os equipamentos que auxiliam na instauração dos processos de trabalho. Coisas simples como a necessidade de usar um martelo, uma fita crepe, ou de ter um armário na sala são resolvidas nestas parcerias.
Um papel diferente fora do padrão sulfite e canson, um lápis integral, uma caneta com ponta pincel, uma aquarela, tudo isso instiga o vocacionado a testar sua produção e ver possibilidades para ela que antes não percebia. Uma AO relatou que levou para seu encontro lápis grafite 6B, um lápis mais mole e mais escuro do que o 2B ou HB que se costuma usar na escola para escrever, e que este simples objeto causou uma comoção, o primeiro a usar o  lápis foi chamando os colegas para mostrar o que poderia ser feito com ele e todos iam se empolgando em usar este instrumento tão banal dentro do contexto artístico.  O ateliê é um lugar de troca de informações,  vou aos espaços um pouco como um artista visitante. Sempre saio dos encontros com muita coisa para pesquisar, ultimamente tenho sido levada a pesquisar animes, já que boa parte dos vocacionados, entre a faixa etária de 14 e 24 tem me mostrado estas referências, para eles muito cotidianas e para mim desconhecidas.
Várias maneiras de contornar as dificuldades materiais tem sido encontradas, aqui gostaria de citar duas, as soluções encontradas na Casa de Cultura do Itaim Paulista e na Biblioteca Nuto Santanna. Na Casa de Cultura Itaim Paulista o Programa de Artes Visuais está em seu terceiro ano, e com o mesmo artista-orientador, Flávio Camargo, a dois anos. Esta situação possibilitou que pudesse ser instaurado ali um ateliê somente para o Vocacional onde temos espaço para experimentar linguagens como o grafite, o stencil e a xilogravura, pintando e colando papéis nas paredes. A administração da Casa de Cultura não só permitiu mas forneceu material para uma intervenção em seus muros. O grupo de vocacionados que se reúne ali, já se configura como coletivo de arte e contribui também ao levar seu próprio material. As intervenções urbanas com grafite instigaram o grupo a utilizar outras formas de criação de imagens e intervenções, estão agora pesquisando vídeo mapping. Foi importante ali a persistência, três anos consecutivos com a mesma linguagem, dois anos com o mesmo AO. Conseguiram instaurar ali um ateliê onde os participantes administram seu tempo, se o encontro tem 3 hs e o artista vocacionado pode ficar apenas 1h isso não é um empecilho para a sua participação, já que o sujeito está realmente implicado no trabalho. Os vocacionados se organizam para criar ações de intervenção fora do horário dos encontros, que são percebidos por eles como um momento de experimentação, planejamento, pesquisa e reflexão sobre estas ações na rua. A uma clara percepção do grupo orientado pelo AO Flávio Camargo que existe uma diferença de escala de trabalho, do que acontece no ateliê e do que acontece na rua, o ateliê se torna uma espécie de central estratégica de operações. Os primeiros exercícios do grupo acontecem nas paredes internas da casa, hoje coberta por cartazes e stencils produzidos pelo grupo, e saem depois pela rua, pelos muros. O tempo de permanência na casa e a mediação do AO tornaram a ação deste grupo inteligível para o próprio equipamento que se abre para a interação.
Em outra parte da cidade na Biblioteca Nuto Santanna outra parceria bem sucedida está no seu segundo ano. A AO Talita Caselato com seus artistas vocacionados e junto a administração da Biblioteca instaurar um verdadeiro espaço de trabalho. A sala que poderíamos chamar de ateliê, guarda os materiais e ferramentas, mas o espaço todo do jardim as salas de leitura é usado pelos vocacionados. O trabalho iniciado no ano passado com o grupo de vocacionados resultou em um projeto aprovado pelo VAI “ Confessa uma história pra mim?”, de Bruna Edilamar e Isabella Carvalho. Agora a AO também as orienta neste projeto e o ateliê  se tornou um pouco um escritório de produção, na medida em que elas precisam fazer a divulgação, a produção, o registro e o relatório do projeto que envolve performance, fotografia, vídeo, desenho, xilogravura. A administração do equipamento, diante do comprometimento das vocacionadas, permitiu a utilização da sala fora dos horários dos encontros do vocacional, assim um exercício verdadeiro de emancipação se põe em processo. Tudo aconteceu porque um tempo/espaço de trabalho foi instaurado. Um ateliê não é simplesmente um lugar físico, ele precisa de produtores de tempo, mas os produtores de tempo também precisam de um lugar físico que possibilite uma situação de encontro.
O artista Ricardo Basbaum defende “ a noção de artista como 'dispositivo de atuação' – ainda que só possa ser inerente à própria condição de invenção e autonomia da arte a partir do Renascimento e da modernidade, com a ênfase de sua atuação sendo gradativamente deslocada do virtuosismo artesanal para a produção de dispositivos sensíveis de pensamento.”  (- BASBAUM, Ricardo. Deslocamentos rítmicos: o artista como agenciador, como curador e como crítico. IN: 27ª Bienal de São Paulo – Seminários. LAGNADO, Lisette. (org.). São Paulo, Cobogó e Fundação Bienal de São Paulo, 2006. p. 57). O artista como “dispositivo de atuação” tem posição mutante, é agenciador de propostas, não apenas produtor de objetos, em suas diversas manifestações compõe o campo da arte. Essa noção contemporânea é exercida na prática dentro do programa, tanto na figura do AO quanto no vocacionado. No entanto o local de trabalho, como local de encontro e experimentação se faz necessário como lugar de atrito entre matéria e pensamento. No contexto da cidade a população pode se apropriar dos espaços da cultura como produtores, e não apenas espectadores representados em números de visitantes. Instaurar ateliês e equipa-los é potencializar as possibilidades de apropriação do espaço público na ação dos cidadãos percebidos como produtores emancipados.

Depois de um tempo, agora.


O texto acima foi finalizado por volta de setembro. Depois dessas muitas outras questões foram se tornando importantes. Antes de se pensar em implantar ateliês talvez precisemos contemplar o Programa Vocacional de modo mais abrangente e desapegado. Abrangente no sentido de pensa-lo em relação às políticas culturais implantadas na cidade, tanto na esfera municipal como na estadual e sem desconsiderar o circuito cultural privado.
Acredito que o Programa Vocacional tenha se colocado na cidade como um espaço importante de formação em arte, para além de propostas utilitaristas ele promoveria a possibilidade dos sujeitos desenvolverem e aprofundarem seus potenciais críticos e criativos. Escrevo promoveria porque também percebo que o Programa ainda não alcançou seu pleno potencial, pelo menos no que percebo da linguagem de Artes Visuais.
Não é apenas por não termos matérias e instalações, mas porque permanecemos escondidos na malha da cidade, porque as relações de trabalho estão confusas, porque não temos parâmetros de avaliação, e porquê... Nossas ações são mal divulgadas, assim como os nossos objetivos nos próprios canais de divulgação da secretaria, por um lado precisamos nos comunicar melhor com a população em textos mais objetivos e por outro lado precisamos nos inserir nos debates sobre formação e arte que já estão ocorrendo.
Nossas relações de trabalho são confusas não simplesmente porque a equipe é contrata apenas por 8, 9 ou 10 meses, outros problemas foram bem apontados nas diversas reuniões ocorridas durante o ano, a equipe da Divisão de Formação está sobrecarregada, precisaria haver ali em seus quadros uma coordenação permanente apenas para o programa, e que se dividisse em coordenação artística, regional e o que mais for necessário, desde que haja uma equipe 12 meses por ano para lidar e refletir sobre o programa.
Refletir sobre o programa requer criar parâmetros de avaliação, examinar o objetivo do programa em relação aos resultados e possibilidades reais em diversas estancias, artísticas, pedagógicas, éticas, sociais, econômicas e jurídicas. Estes parâmetros podem ser estabelecidos em discussões internas com a análise dos relatórios da equipe de 2014, com a equipe que irá atuar em 2015, com a divisão de Formação e com conselheiros externos. Daí eu falar em desapego, nos escondemos na malha da cidade em um lugar cômodo distante de um olhar crítico de nossos pares. Assim é difícil entender a demanda pelo programa e sua real necessidade na cidade.
O histórico do programa parte de uma vontade de profissionais de arte, principalmente de teatro, que entenderam a necessidade de proporcionar a formação artística como possibilidade do exercício da emancipação dos sujeitos em atos criativos e expressivos. Essa vontade foi acolhida pelo estado, pela secretaria municipal de cultura e assim o desejo se tornou uma prática institucional, e sendo assim não pertence mais a um grupo, pertence aos cidadãos e é gerido pelo município que se responsabiliza por ele. O programa não pertence aos prestadores de serviço contratados pela secretaria, estes efetivamente executam o programa, constituindo-o no plano do real, mas precisam ouvir a cidade através do gestor do programa, a secretaria, e também precisam ser ouvidos sobres a necessidades mais especificas do exercício das diversas linguagens dentro deste projeto. O diálogo existe, mas percebo, com muita aflição, a falta de disponibilidade para repensar o programa na situação em que estamos, por isso creio ser tão importante a Divisão de Formação organizar parâmetros de avaliação com um conselho que considere em seu quadro tanto os fundadores do programa como avaliadores externos. Se processos artísticos são instaurados dentro do programa, não conseguimos ter a clareza de dizer o porque e como isso aconteceu. Processos artísticos emancipadores são instaurados a todo o momento em muitos lugares, precisamos entender porque e como acontecem aqui, se acontecem. Uma avaliação desapegada.
Segundo Jacques Ranciére, em A partilha do Sensível, as práticas artísticas contemporâneas, o que chama de regime estético das artes, provocam dissenso, não geram heterogeneidades, fazem transparecer as diferenças e criam heterotopias. É necessário que o programa considera esta multiplicidade para se entender na realidade da cidade como produtor de ficções. Não podemos ser uma ficção que gera realidades. A arte não pode ser um fim para um meio. Assim creio que desenhados parâmetros norteadores assim como os de avaliação, pode ser assegurado a autonomia das ações artísticas entre AOs e vocacionados na criação de mundos possíveis.

Fotografia feita durante o encontro de formação na nossa primeira semana de trabalho.


[i] Livre tradução da autora. Ver: O´Doherty, Brian. Studio and Cube. New York, Columbia University, 2009. (p.10)
[ii] SMITHSON, Robert. Uma sedimentação da mente: projetos de terra. IN: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília. Escritos de Artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2006. (p.197)

[iii] BORRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Buenos Aires, Adriana Hidalgo editora, 2006. P.137
[iv] RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo, editora 34, 2005. Pp. 32-35

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