quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Dramaturgias da impermanência: sobre a escrita de si





Percorrer o caminho do mar em parceria. Palavra rica não-abandonada. Observo um transitar e mover de corpos que não estão lutando para sobrepujarem-se, uns aos outros. Escuta, não-pressa, proposta. Encontro duas turmas- uma de dança-teatro, experiência autônoma bem sucedida do equipamento há anos, e outra de teatro. Pulsante. Com demanda! Com oferta! Mas... qual é a proposta para uma turma de dança-teatro? (existe alguma específica?) Qual seria a “pegada” em teatro?

Teatro. Impermanente. Explosões, buscas, (in) constantes. Lugar de atritos. De construção de si, ensaio e erro, poderia ser? E fixar o quê? A Pergunta móvel.
Encontro com a turma de teatro do equipamento. Grupo heterogêneo, ávido, ponto de mutação- como todos nós. Vórtice. Olho do furacão para alguns. Torno-me porosa.

Um dos elementos observados inicialmente e com aspecto altamente contagioso E potente, são os artistas vocacionados participantes de demais turmas do Programa, com seus respectivos Aos, em andamento no mesmo equipamento/Ceu. Desta forma surgiu uma questão coletiva, na qual cada um com sua contribuição particularíssima, ajudou a fomentar o pensamento-indagação: como se cria uma obra artística? OU como se dá forma aos pensamentos? OU como revelar uma questão de maneira artística? OU ainda: que pergunta faço através de minha obra-criação?

Porque trata-se sempre de perguntar. Não é? O quê de fato move? As respostas? Também? Ou elas, no nosso contexto bio-político-geográfico nos aprisionam, nos rotulam, nos pré-destinam? Podem nos fixar em couraças, tão frágeis e mutáveis, quanto o próprio homem dentro do seio-Vida, neste peculiar ano-país-cidade-bairro-rua?

Pequena-não-pequena digressão sobre a importância ou desimportância da PERGUNTA: Comecei anos atrás esta reflexão com Paulo Freire, em “Por uma pedagogia da pergunta”, que é um livro escrito “a dois”, num delicioso diálogo, e não apenas a “entrevista” que fixa perguntado-e-perguntador. 
Neste livro, Freire acredita que a inconsciência ou des-curiosidade assoladora que fabrica tanto a alienação, quanto corpos domesticados, e enfim grande parte da desigualdade social propriamente dita, está relacionada ao fato de saber: “porque perdemos a capacidade de fazer perguntas?”. 
É por causa da necessidade ancestral do homem de adquirir segurança? instinto de sobrevivência? ou o modelo pedagógico em que atuamos, (hoje século vinte e um), A-I-N-D-A reproduz o modelo pergunta-resposta? Ou seja: alguém pergunta- dentro deste saturado modelo educacional, é claro que é o aluno quem assume a função de “não-saber”, é sempre ele quem pergunta. E é o óbvio ululante, diria Nelson, que cabe ao professeur o papel de “encarnar o detentor das respostas”, o que veicula respostas, como um santo-padre-que veicula-e-atua-como-intermédio-e-mensageiro-de-Deus-e-não-como-instituição-amém, o professor também seria “o que transmite”, sempre definitivamente o que responde.

 Alguns acham que bastam subverter a ordem e já recriamos a democracia e o país. O professor pergunta, e os alunos respondem, ou buscam a resposta, e nesta busca, o saber coletivo se faz. Pode ser também. Mas isto idealmente falando. No plano da realidade, onde carteiras são arremessadas e professores ameaçados, faço apenas aqui a transposição da reflexão de Freire sobre a importância que damos ou não ao ato de perguntar no âmbito pedagógico e também artístico. Freire diz que não só andamos perdendo esta capacidade de indagar, como também de fazer “boas perguntas”. 

O pior espetáculo é sempre o que transmite “mensagens”- pensei quando li isso. Parece que vejo folhetinhos invisíveis colando nas caras dos espectadores, e estes bem podiam ter ficado em casa aproveitando o tempo com outra coisa, porque aquele grupo teatral não está interessado na sua percepção, ele já encontrou as “verdades”, as “fórmulas”, os “dogmas”, as melhores maneiras de se comportar, de se vestir, de fazer arte ou de fazer compras, de votar e de ter orgasmos, e não está muito interessado que você possa pensar diferente, mesmo que seja muito diferente, deles. Sendo assim, existem ainda MUITAS maneiras de se fazer da pergunta uma questão secundária, menos importante, “para-não-parecer-bobo” ou “para-não-assumir-ignorância”, ou ainda a versão mais eficiente dentro da cultura da eficiência que desgasta tanto empregos artísticos quanto empresariais: o famoso “importante-é-apresentar-soluções”.
São os que entendem que o ato de perguntar é sinônimo de “patinar”, “sentar no pudim”, “perder tempo” ou “não-sair-do-lugar”.  Fim da não-pequena-pequena digressão.

Fazer uma pergunta que você daria “a vida” para saber a resposta. Fazer uma pergunta que te “envolva inteiro”, que engaje todo teu raciocínio, delírio e subjetividade. 
Provavelmente uma questão não-superficial. Uma pergunta metafísica? Ou uma pergunta metalinguística? Também pode ser. Perguntas astrais-políticas-cósmicas-anarquistas-ecológicas-filosóficas-recorrentemente cotidianas ou apenas Uma pergunta. 

Pequeno novo aparte: aqui estamos no terreno de admitir e perguntar PORQUÊ interessa a esta AO especificamente, fazer perguntas ou partir da premissa “daria a vida para saber” ou “todo dia acordo pensando nisso”. Acho que sou realmente interessada pelas obsessões, e às vezes isto me basta para me mover, sair do lugar. Através das perguntas-obsessões. Ou talvez isto derive de uma maneira muito pessoal, um traço irritante de personalidade, que faz com que o ser sinta-pense-veja teatro como “urgência poética”, como “necessidade”, como “perguntas-cênicas”, e não como outra coisa. Ou ainda não sei, ou suspeito e é coisa braba.

 Ou porque algo sempre atraiu mais no que não-dito, o sedutor ainda-não-perguntado.  Ou é porque não li suficientes hai-kais na vida? Talvez seja o período curto da infância no Ceará. Não sei. Hipóteses demais. Fecho tantas aspas e recordo de um Artaud para quem “a vida é queimar perguntas”. O estado pré-expressivo da pergunta, caótico ou perdido, confuso ou sem palavras, inarticulável, aqui também nos interessa. Ou quando o ser não consegue nem formular o que não sabe, porque não sabe o que poderia saber.

Mas não se trata de se viciar em assumir o poder da palavra, o poder do discurso “inventador de verdades”, ou ainda desejar ser o semeador de vidas boas para os outros. Dá um trabalho do cão sair a distribuir promessas e verdades postiças, e mais trabalho dá ter que prestar contas de tudo que é dito a partir do “desespero em fabricar sentidos”.
No teatro como na vida, é preciso também se dispor a distinguir entre as dialéticas com “aparência de movimento”, mas na verdade são estáticas.

E a partir de tudo isso, criar uma cena que revele tua pergunta.

A pergunta pode mudar de uma hora para outra? Quando aparece a resposta, mudam-se todas as perguntas? Uma resposta dura sempre pouco? E se a impermanência (da pergunta/da resposta/de si) fosse o contrário de fugaz e superficial e ela construísse insistentemente novos corpos? A impermanência dos preconceitos e das inteligências, das revelações e dos combates, a impermanência do desejo e da coragem, a impermanência de resultados, soluções e papéis. Um constante estado permeável, poroso.
Na cena e fora dela, quase que assumindo de vez a fogueira de viver, posto que “viver não é vivível.” (Clarice Lispector). 


 CEU Caminho do mar, Programa Vocacional Teatro, AO Mônica Rodrigues, abril, maio, junho, julho 2014

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