sexta-feira, 28 de novembro de 2014

O TEATRO, OUTRO IMAGINÁRIO POSSÍVEL - Osvaldo Pinheiro da Silva - CEU Parque Veredas.

Texto Teatro Vocacional
AO Osvaldo Pinheiro da Silva
 
Equipamento CEU Parque Veredas, zona leste de São Paulo
Grupos orientados: Novo Horizonte e Artes dos Bons Companheiros (ABC)

TEXTO: 
O TEATRO, OUTRO IMAGINÁRIO POSSÍVEL

A função da arte
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff,
levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia,
depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos.
E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor,
que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando,
pediu ao pai: “Me ajuda a olhar!”
Eduardo Galeano

Início este ensaio com uma licença poética que me ajude a revelar o sentido do trabalho desenvolvido acerca da “função da arte”, explicitada pelo querido sociólogo Eduardo Galeano, nascido no Uruguai e que muito tem a nos oferecer como material de reflexão sobre a nossa complexa identidade, (des)organizada pela lógica do capital (que tem como uma de suas premissas básicas a lei de talião “olho por olho, dente por dente”); também irei refletir sobre a construção de uma sociedade que vive sob a lógica de fragmentos de memórias e acontecimentos que passam de uma forma muito rápida e que pouco nos possibilita vivê-las ou experienciá-las em sua profundidade, movimento este que gerou nossos estudos dramatúrgicos. Isso explicitado deve esclarecer que o principal objetivo deste ensaio será registrar momentos importantes que me saltam dos processos que acompanho no Teatro Vocacional do CEU Parque Veredas e que me proporcionou encontros intensos, complexos e extremamente prazerosos. Assim, inicio o registro de trabalho dos grupos “Novo Horizonte” e “Artes dos Bons Companheiros (ABC)”.

Como todo artista orientador o ponto de partida foi o da escuta; aceitei e me entreguei a este movimento, fui aos poucos entendendo o terreno de complexidades que já estava posto e assim, dia-a-dia a minha função foi sendo revelada; falo isso porque tem a ver com os pressupostos colocados no material que deve nortear o nosso trabalho e que defende a figura do Mestre Ignorante, aquele que busca um outro olhar a partir do encontro de inteligências.
Como o caminho já estava sendo traçado por ambos os grupos, tive uma importante tarefa de silenciar e observar; fui percebendo que a função que se revelava naquele momento era o de provocador ou problematizador, o que traz questões e referências para criamos o nosso estofo de pesquisa, e assim, construirmos um novo espaço de saber coletivo. Feito isso, logo saltou a primeira constatação: a de que em ambos os processos nem todo(a)s o(a)s vocacionado(a)s sabiam ou entendiam a discussão do coletivo. O passo seguinte foi o de pensar e elaborar procedimentos que poderiam revelar essa conclusão. Logo me veio à mente textos, imagens e vídeos que tinham a ver com os encaminhamentos propostos; fomos pesquisar juntos e em paralelo trabalhamos diversos exercícios de corpo, voz, gesto, jogos teatrais, altas discussões sobre a função do narrador, do palhaço, do fantástico e de como as coisas que estão postas em cena comunicam ou podem dialogar com o público; apresentei o CORO como possibilidade cênica, exercícios de Campo de Visão e Viewpoints (trabalho que nos ajudou a entender a força do coletivo, a capacidade de ver e sentir as relações físicas que foram se apresentando e à questão espacial, etc), uma nova cama / olhar já se tornava mais palpável.
Estabelecido todo o trabalho exposto, é nítida a aprendizagem que fomos construindo, um lugar aonde todo(a)s foram capazes de se colocar, travar embates e defender seus posicionamentos ativamente, trilamos um caminho processual de seres desejantes que marcam um lugar no tempo / espaço da vida social.

Assim o Diego que não conhecia o mar e o seu pai,
Santiago Kovadloff foram nos descortinando possibilidades
que nos ajudaram a olhar e ver com o seu, com o meu,
com o nosso e com o olhar do querido e saudoso Galeano.

NOVO HORIZONTE
Além de apresentações e experimentações técnicas buscamos elaborar o tal imaginário coletivo. Como já haviam iniciado uma pesquisa sobre corporeidade a partir da obra “Game of Thrones”, uma série de televisão norte-americana criada por David Benioff e D. B. Weiss para a HBO baseada na série de livros “A Song of Ice and Fire”, a primeira constatação foi a de que nem todos sabiam sequer o porque da escolha, portanto, fomos assistir juntos alguns capítulos e entender o processo.
Os primeiros questionamentos que nos surgiram foram:
- Porque realizar esta pesquisa?
- Que questões o grupo quer levantar?
- O que a série representa para o grupo?
- Quais procedimentos nos ajudam a revelar o que está escondido?
- Qual o embate do louco Rei Oliver, personagem central da trama? Quem ele é? Vai contra o que? Porque o trono entra em falência? Que reino é esse?
- O que o grupo entende por loucura? Quem é louco e porque se encontra nesse lugar?
- Essa estrutura de poder nos representa?
- O que do teatro épico podemos absorver?
- Quais são os sons e urgências de cada ação do espetáculo?
- Quais procedimentos nos ajudam a construir os personagens?
- Como o trabalho de Coro e a figura do Narrador nos ajudam a resolver questões complexas de algumas passagens do texto?
- O que queremos com a proposta de figurino? E...
Com todas essas questões postas chegamos ao filme “Dogville”, que muito nos ajudou a entender a questão espacial e trouxe novas inquietações. Ao assistir a obra juntos realizamos uma análise sob diversos pontos de vista, de ordem sociológica ou mesmo psicológica, conversamos sobre as escolhas de estrutura do filme e lancei a proposta de pesquisar a vida interior dos personagens através de laboratórios, proposta essa que não aconteceu, pois o grupo iniciava uma grande crise grupal que nos levou a tomar uma atitude de ficarmos semanas discutindo questões estruturais; fomos muito sinceros uns com os outros e colocamos complexidades das nossas relações; tivemos saídas de importantes integrantes, mas o núcleo forte se manteve e na medida do possível buscamos dar conta dos seus anseios que originaram o nosso EXPERIMENTO I: “O REINO DE OLIVER E A FALÊNCIA DOS TRONOS”.

E já com o olhar mais vivo e atento Diego e o seu pai,
nos arregalaram a vista e pudemos enfim enxergar:
“A SAGA DE PEDRA PEQUENA OU
AQUELE MENDIGO QUE SE CHAMAVA PINÓQUIO”

Saga esta originada de conversas e improvisos regada a muito riso do(a)s arteiros e arteiras divertidíssim@s do nosso querido grupo ABC, que optou investigar uma estrutura cênica com base em narrativas de fatos extraídos da realidade, sobretudo, àqueles que se referem a questões sociais, culturais e políticas que pertencem aos fragmentos de memórias de cada um.
No processo relatavam muito sobre as relações de poder existentes nos diversos contextos sócio-culturais, que acabam determinando o comportamento de todo(a)s nós, numa realidade já estabelecida e que não nos apresenta nada com nenhuma clareza. O trabalho também nos levou a refletir criticamente acerca de nossas origens, identidades, contradições, sentimentos e ações que nos formam ou deformam cotidianamente.
Interessante observar que as histórias contadas pelos integrantes eram sempre muito trágicas, mas desprovidas de qualquer valor moral, com completo desprendimento e tentativa de distanciamento. Os improvisos foram extremamente importantes para a definição dramatúrgica que tomavam horas de discussões muito interessantes sobre a necessidade de se incentivar a relação saudável entre a criança e o adulto, da formação do pensamento saudável e da relação com a fantasia.
Em cena discutimos muito sobre a nossa estrutura social construída basicamente tendo como base: o medo, o pecado, a culpa e a mentira como os pilares primeiros do desenvolvimento humano.
E inevitavelmente as perguntas brotavam aos montes:
- A primeira delas foi do porque as memórias revelam muito opressões daquilo que somos hoje?
- Como pesquisar o universo da infância e ter isso como possibilidade cênica?
- Porque o Viewpoints foi tão significativo para o grupo e nos revelou um CEU (espaço) que não conhecíamos?
- Como experimentar novas formas de narrar, dizer o texto, pontos de vista, pistas falsas e a relação de tudo isso com o espaço alternativo, a rua ou outro qualquer?
- O que é o universo fantástico? Quais as nossas referências? Etc, etc, etc...

E assim a nossa memória nos lançou para um lugar muito amplo que gerou um vasto material dramatúrgico e cênico que preferimos denominar pérolas aos nossos:

Pérola I: Olhar da criança e seus medos diante das agressões cotidianas travestidas por Educação. Que suscitou a cena da TAPIOCA, com uma criança que não come a tal comida oferecida pela tia, por conta dos “bons modos” ensinados pela família e que tal atitude nos é revelada somente pela figura do narrador que conta o pensamento que ela (criança) quis dizer e não disse por medo de repressão no lar. E a cena do domingo em família, quando a criança é surpreendida pelo seu amigo imaginário.

Pérola II: Reflexão sobre o Estado e o descaso com a morte do pobre que não é atendido e some sem ninguém saber. Cena “Isso é tão comum que se tornou banal” – situação aonde o médico demora para realizar o atendimento e a criança morre, sendo que o caso é levado ao Tribunal e nos resta somente o desfecho espetacular.

Pérola III: O encarceramento do pobre no sistema penitenciário e o noticiário sensacionalista e farsesco dado pelos meios de comunicação com a belíssima performance da exploração da miséria humana alheia. Com a cena “O mistério do papel” que mostra casos cotidianos que vão parar no “Jornal Pau Brasil”, junto com o capítulo da novela “Beijo do Morango” (mulher vista como fruta na contemporaneidade).

Pérola IV: A saga do Errante - Cena de Coro com o argumento “daquele que erra, se transforma e se dá bem, se dando mal”. Investigação cênica sobre a narrativa, o coro, o cumprimento e o deslocamento.

Pérola V: A representação do bairro de Itaim Paulista e de São Paulo que me revelam - Cena “Pedra Pequena, história do nome do bairro e do morador louco conhecido popularmente por Pinóquio” - morador de rua que nunca passa despercebido pelas pessoas do bairro e da cena “Cartão Postal” que traz a elegante São Paulo e o difícil mundo do trabalho que se constrói na base da exploração, de uma lógica às avessas e da revolta do busão lotado.

Enfim, pesquisa muito potente que passou pela primorosa obra “Macunaima” do grande Mário de Andrade para entendermos o universo do fantástico e que nos presenteou com o EXPERIMENTO II: “A SAGA DE PEDRA PEQUENA”, que conta a história do menino, mendigo, morador de rua “PINÓQUIO” desde seu nascimento, educação repressora, aquele que erra, que passa pela inevitável complexidade do mundo do trabalho, da precarização do transporte privado (vendido como público), da lógica do encarceramento, do noticiário espetacular e novelesco e da justiça burguesa apresentada como farsa, etc, etc, etc, ....

E assim depois de tantas vivências, percebi que como estrangeiro cheguei, pedi permissão para entrar e permaneci não passivamente estrangeiro.
Para finalizar o mais importante é que consigo identificar o percurso de cada aprendizagem, que foi conquistada por etapas com muitas portas escancaradas, abertas ou fechadas a cada momento, mas que foram extremamente importantes para o despontar de um novo olhar.
Neste caminhar consegui assento a mesa, adentrar a sala, a cozinha, todos os cômodos da casa e me tranqüiliza saber que o processo foi prazeroso, tortuoso e sobretudo extremante pedagógico.
E mesmo com todas as novas percepções, como a vida gira muitas vezes em grandes ou pequenos círculos, a bendita e poderosa frase do grande mestre não quer me largar, me vem constantemente, me soa a todo momento, a cada canto e tantas vezes aos gritos:
“Me ajuda ainda a olhar!”.

Osvaldo Pinheiro
18/08/2014
20/10/2014
26/11/2014
29/11/2014

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