O TEATRO, OUTRO IMAGINÁRIO POSSÍVEL - Osvaldo Pinheiro da Silva - CEU Parque Veredas.
Texto Teatro Vocacional
AO Osvaldo Pinheiro da Silva
Equipamento CEU Parque Veredas, zona leste de São Paulo
Grupos orientados: Novo Horizonte e Artes dos Bons Companheiros (ABC)
TEXTO:
O TEATRO, OUTRO IMAGINÁRIO POSSÍVEL
A função da arte
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff,
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff,
levou-o para que
descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia,
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia,
depois de muito
caminhar, o mar estava na frente de seus olhos.
E foi tanta a imensidão
do mar, e tanto fulgor,
que o menino ficou mudo
de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando,
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando,
pediu ao pai: “Me ajuda
a olhar!”
Eduardo Galeano
Início este ensaio com uma licença poética que me ajude a
revelar o sentido do trabalho desenvolvido acerca da “função da arte”,
explicitada pelo querido sociólogo Eduardo Galeano, nascido no Uruguai e que
muito tem a nos oferecer como material de reflexão sobre a nossa complexa identidade,
(des)organizada pela lógica do capital (que tem como uma de suas premissas
básicas a lei de talião “olho por olho, dente por dente”); também irei refletir
sobre a construção de uma sociedade que vive sob a lógica de fragmentos de memórias
e acontecimentos que passam de uma forma muito rápida e que pouco nos
possibilita vivê-las ou experienciá-las em sua profundidade, movimento este que
gerou nossos estudos dramatúrgicos. Isso explicitado deve esclarecer que o
principal objetivo deste ensaio será registrar momentos importantes que me
saltam dos processos que acompanho no Teatro Vocacional do CEU Parque Veredas e
que me proporcionou encontros intensos, complexos e extremamente prazerosos. Assim,
inicio o registro de trabalho dos grupos “Novo Horizonte” e “Artes dos Bons
Companheiros (ABC)”.
Como todo artista orientador o ponto de partida foi o da escuta;
aceitei e me entreguei a este movimento, fui aos poucos entendendo o terreno de
complexidades que já estava posto e assim, dia-a-dia a minha função foi sendo
revelada; falo isso porque tem a ver com os pressupostos colocados no material que
deve nortear o nosso trabalho e que defende a figura do Mestre Ignorante, aquele
que busca um outro olhar a partir do encontro de inteligências.
Como o caminho já estava sendo traçado por ambos os grupos, tive
uma importante tarefa de silenciar e observar; fui percebendo que a função que
se revelava naquele momento era o de provocador ou problematizador, o que traz questões
e referências para criamos o nosso estofo de pesquisa, e assim, construirmos um
novo espaço de saber coletivo. Feito isso, logo saltou a primeira constatação: a
de que em ambos os processos nem todo(a)s o(a)s vocacionado(a)s sabiam ou
entendiam a discussão do coletivo. O passo seguinte foi o de pensar e elaborar procedimentos
que poderiam revelar essa conclusão. Logo me veio à mente textos, imagens e
vídeos que tinham a ver com os encaminhamentos propostos; fomos pesquisar
juntos e em paralelo trabalhamos diversos exercícios de corpo, voz, gesto, jogos
teatrais, altas discussões sobre a função do narrador, do palhaço, do
fantástico e de como as coisas que estão postas em cena comunicam ou podem dialogar
com o público; apresentei o CORO como possibilidade cênica, exercícios de Campo
de Visão e Viewpoints (trabalho que nos ajudou a entender a força do coletivo, a
capacidade de ver e sentir as relações físicas que foram se apresentando e à questão
espacial, etc), uma nova cama / olhar já se tornava mais palpável.
Estabelecido todo o trabalho exposto, é nítida a
aprendizagem que fomos construindo, um lugar aonde todo(a)s foram capazes de se
colocar, travar embates e defender seus posicionamentos ativamente, trilamos um
caminho processual de seres desejantes que marcam um lugar no tempo / espaço da
vida social.
Assim o Diego que não
conhecia o mar e o seu pai,
Santiago Kovadloff foram
nos descortinando possibilidades
que nos ajudaram a
olhar e ver com o seu, com o meu,
com o nosso e com o
olhar do querido e saudoso Galeano.
NOVO HORIZONTE
Além de apresentações e experimentações técnicas buscamos
elaborar o tal imaginário coletivo. Como já haviam iniciado uma pesquisa sobre corporeidade
a partir da obra “Game of Thrones”, uma série de televisão norte-americana
criada por David Benioff e D. B. Weiss para a HBO baseada na série de livros “A
Song of Ice and Fire”, a primeira constatação foi a de que nem todos sabiam
sequer o porque da escolha, portanto, fomos assistir juntos alguns capítulos e
entender o processo.
Os primeiros questionamentos que nos surgiram foram:
- Porque realizar esta pesquisa?
- Que questões o grupo quer levantar?
- O que a série representa para o grupo?
- Quais procedimentos nos ajudam a revelar o que está
escondido?
- Qual o embate do louco Rei Oliver, personagem central da
trama? Quem ele é? Vai contra o que? Porque o trono entra em falência? Que
reino é esse?
- O que o grupo entende por loucura? Quem é louco e porque
se encontra nesse lugar?
- Essa estrutura de poder nos representa?
- O que do teatro épico podemos absorver?
- Quais são os sons e urgências de cada ação do espetáculo?
- Quais procedimentos nos ajudam a construir os personagens?
- Como o trabalho de Coro e a figura do Narrador nos ajudam
a resolver questões complexas de algumas passagens do texto?
- O que queremos com a proposta de figurino? E...
Com todas essas questões postas chegamos ao filme “Dogville”,
que muito nos ajudou a entender a questão espacial e trouxe novas inquietações.
Ao assistir a obra juntos realizamos uma análise sob diversos pontos de vista,
de ordem sociológica ou mesmo psicológica, conversamos sobre as escolhas de estrutura
do filme e lancei a proposta de pesquisar a vida interior dos personagens
através de laboratórios, proposta essa que não aconteceu, pois o grupo iniciava
uma grande crise grupal que nos levou a tomar uma atitude de ficarmos semanas
discutindo questões estruturais; fomos muito sinceros uns com os outros e
colocamos complexidades das nossas relações; tivemos saídas de importantes integrantes,
mas o núcleo forte se manteve e na medida do possível buscamos dar conta dos seus
anseios que originaram o nosso EXPERIMENTO I: “O REINO DE OLIVER E A
FALÊNCIA DOS TRONOS”.
E já com o olhar mais
vivo e atento Diego e o seu pai,
nos arregalaram a vista
e pudemos enfim enxergar:
“A SAGA DE PEDRA
PEQUENA OU
AQUELE MENDIGO QUE SE
CHAMAVA PINÓQUIO”
Saga esta originada de conversas e improvisos regada a muito
riso do(a)s arteiros e arteiras divertidíssim@s do nosso querido grupo ABC, que
optou investigar uma estrutura cênica com base em narrativas de fatos extraídos
da realidade, sobretudo, àqueles que se referem a questões sociais, culturais e
políticas que pertencem aos fragmentos de memórias de cada um.
No processo relatavam muito sobre as relações de poder
existentes nos diversos contextos sócio-culturais, que acabam determinando o
comportamento de todo(a)s nós, numa realidade já estabelecida e que não nos apresenta
nada com nenhuma clareza. O trabalho também nos levou a refletir criticamente acerca
de nossas origens, identidades, contradições, sentimentos e ações que nos formam
ou deformam cotidianamente.
Interessante observar que as histórias contadas pelos
integrantes eram sempre muito trágicas, mas desprovidas de qualquer valor
moral, com completo desprendimento e tentativa de distanciamento. Os improvisos
foram extremamente importantes para a definição dramatúrgica que tomavam horas
de discussões muito interessantes sobre a necessidade de se incentivar a
relação saudável entre a criança e o adulto, da formação do pensamento saudável
e da relação com a fantasia.
Em cena discutimos muito sobre a nossa estrutura social construída
basicamente tendo como base: o medo, o pecado, a culpa e a mentira como os pilares
primeiros do desenvolvimento humano.
E inevitavelmente as perguntas brotavam aos montes:
- A primeira delas foi do porque as memórias revelam muito opressões
daquilo que somos hoje?
- Como pesquisar o universo da infância e ter isso como
possibilidade cênica?
- Porque o Viewpoints foi tão significativo para o grupo e
nos revelou um CEU (espaço) que não conhecíamos?
- Como experimentar novas formas de narrar, dizer o texto, pontos
de vista, pistas falsas e a relação de tudo isso com o espaço alternativo, a rua
ou outro qualquer?
- O que é o universo fantástico? Quais as nossas
referências? Etc, etc, etc...
E assim a nossa memória nos lançou para um lugar muito amplo
que gerou um vasto material dramatúrgico e cênico que preferimos denominar
pérolas aos nossos:
Pérola I: Olhar da criança e seus medos diante das agressões
cotidianas travestidas por Educação. Que suscitou a cena da TAPIOCA, com uma criança
que não come a tal comida oferecida pela tia, por conta dos “bons modos”
ensinados pela família e que tal atitude nos é revelada somente pela figura do narrador
que conta o pensamento que ela (criança) quis dizer e não disse por medo de
repressão no lar. E a cena do domingo em família, quando a criança é
surpreendida pelo seu amigo imaginário.
Pérola II: Reflexão sobre o Estado e o descaso com a morte
do pobre que não é atendido e some sem ninguém saber. Cena “Isso é tão comum
que se tornou banal” – situação aonde o médico demora para realizar o atendimento
e a criança morre, sendo que o caso é levado ao Tribunal e nos resta somente o
desfecho espetacular.
Pérola III: O encarceramento do pobre no sistema
penitenciário e o noticiário sensacionalista e farsesco dado pelos meios de
comunicação com a belíssima performance da exploração da miséria humana alheia.
Com a cena “O mistério do papel” que mostra casos cotidianos que vão parar no “Jornal
Pau Brasil”, junto com o capítulo da novela “Beijo do Morango” (mulher vista
como fruta na contemporaneidade).
Pérola IV: A saga do Errante - Cena de Coro com o argumento
“daquele que erra, se transforma e se dá bem, se dando mal”. Investigação cênica
sobre a narrativa, o coro, o cumprimento e o deslocamento.
Pérola V: A representação do bairro de Itaim Paulista e de São
Paulo que me revelam - Cena “Pedra Pequena, história do nome do bairro e do morador
louco conhecido popularmente por Pinóquio” - morador de rua que nunca passa
despercebido pelas pessoas do bairro e da cena “Cartão Postal” que traz a
elegante São Paulo e o difícil mundo do trabalho que se constrói na base da
exploração, de uma lógica às avessas e da revolta do busão lotado.
Enfim, pesquisa muito potente que passou pela primorosa obra
“Macunaima” do grande Mário de Andrade para entendermos o universo do
fantástico e que nos presenteou com o EXPERIMENTO II: “A SAGA DE PEDRA
PEQUENA”, que conta a história do menino, mendigo, morador de rua “PINÓQUIO”
desde seu nascimento, educação repressora, aquele que erra, que passa pela inevitável
complexidade do mundo do trabalho, da precarização do transporte privado
(vendido como público), da lógica do encarceramento, do noticiário espetacular
e novelesco e da justiça burguesa apresentada como farsa, etc, etc, etc, ....
E assim depois de tantas vivências, percebi que como
estrangeiro cheguei, pedi permissão para entrar e permaneci não passivamente
estrangeiro.
Para finalizar o mais importante é que consigo identificar o
percurso de cada aprendizagem, que foi conquistada por etapas com muitas portas
escancaradas, abertas ou fechadas a cada momento, mas que foram extremamente importantes
para o despontar de um novo olhar.
Neste caminhar consegui assento a mesa, adentrar a sala, a
cozinha, todos os cômodos da casa e me tranqüiliza saber que o processo foi
prazeroso, tortuoso e sobretudo extremante pedagógico.
E mesmo com todas as novas percepções, como a vida gira muitas
vezes em grandes ou pequenos círculos, a bendita e poderosa frase do grande
mestre não quer me largar, me vem constantemente, me soa a todo momento, a cada
canto e tantas vezes aos gritos:
“Me ajuda ainda a olhar!”.
Osvaldo Pinheiro
18/08/2014
20/10/2014
26/11/2014
29/11/2014
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