sábado, 29 de novembro de 2014

O corpo como atualidade da existência



O corpo como atualidade da existência

(A artista vocacionada Sofia Cunha Virgilio)


                                          Andrea Cavinato[1]

 

                                                                                              Foto: Andrea Cavinato




(...)

Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.

Leitura

de Adélia Prado

 

Escrevo: me inscrevo no mundo, na existência. Reflito. Me aproprio. Crio.

Esse texto é um misto de relato, reflexão e divagação sobre experiências que nos tocam, nos atravessam como Artista Orientadora - há poucos meses no Programa Vocacional.

Um pequeno glossário se faz necessário: o termo utilizado para definir seres humanos, indivíduos, artistas vocacionados será pessoa, tomando emprestado seu conceito na filosofia; do grego prósopon, que se distancia do termo persona, da máscara teatral, mas mais próxima de personnare (aquilo que ressoa), em que a máscara é usada pelo ator para “ajudar a extrair e projetar a voz (o mais íntimo de si mesmo)” (FERREIRA-SANTOS, M; ALMEIDA, R; 2012 ) Assim cada pessoa é única, plena de um corpo- ser- no mundo.

O Programa Vocacional propõe um importante espaço de criação em diferentes linguagens artísticas. Em grande parte é desenvolvido em locais que estão distantes dos centros urbanos e, portanto da grande concentração de atividades culturais e de entretenimento, as pessoas que se interessam por essas atividades se distinguem e se encontram em projetos como o Vocacional.

O teatro como linguagem, tem uma histórica imagem de desviante. A norma, a moral, as condutas sociais entram em conflito com a escolha de fazer teatro, por pré-conceitos, que podem parecer antiquados, mas passamos por eles todos os dias quando orientamos jovens, adolescentes que nos relatam suas dificuldades junto à família para poder fazer teatro.

E as dificuldades perpassam a condição financeira, inseridos que estamos em uma lógica capitalista do trabalho, a grande maior parte dos jovens estuda e trabalha, faz teatro no tempo que “sobra”, ou seja, em seu “tempo livre”, e aqui podemos afirmar que embora seja uma atividade que dê prazer, não é vista como opção de lazer, e nem como um hobby, é levada muito a sério, como experiência formativa.

São conflitos humanos, familiares que, não poucas vezes, nos atravessam com histórias de vida semelhante à de quem escolheu o teatro como profissão, ou foi escolhido por ele.

E cá estamos nós: artistas orientadores do Programa Vocacional Teatro, com nossas horas semanais, em encontros de três horas, de riqueza formativa impossível de ser mensurada, em reuniões de discussões profundas, imersos em um projeto político-pedagógico que nos esmeramos em compreender, mesmo se, a imagem recorrente seja a da piscina imensa, de águas azuis profundas e refrescantes, em um dia de calor: e, muito embora, saibamos nadar não conseguimos tocar o fundo com nossos pés.

 As pessoas que freqüentam os encontros, que fruem de espetáculos teatrais, - sobre os quais se debruçam, em debates, na busca de aprofundar uma compreensão pessoal e possível -; estão em parceria conosco em uma quebra de paradigma.

Vejamos com mais detalhes: no sistema capitalista não é só o capital econômico que cria desigualdade social e também o capital simbólico, formado pelo conjunto de signos e símbolos, como conceitua o filósofo francês Pierre Bourdier (2002), em que o sistema de ensino contribui para conservar privilégios, um mecanismo para que as estruturas sociais sejam mantidas.  O autor empresta do marxismo a noção do capital, no sentido de formas de riqueza, que dá aos que a possuem poder sobre os desprovidos e estende essa noção ao capital cultural, - uma relação privilegiada com a cultura erudita e a cultura escolar e o “capital social, designando a rede de relações sociais que constitui uma das riquezas essenciais dos dominantes.” (BOURDIER, 2002).

Historicamente, às classes menos favorecidas não é oferecida oportunidade de fruir e produzir o bem simbólico, uma vez que para isso é necessário educação que forme para uma existência mais plena e não só prepare para o mercado de trabalho ou para o vestibular, leis da produtividade econômica. Poderíamos considerar a cultura popular, seus brinquedos, folguedos e danças como a produção do bem simbólico nas classes populares, assim é em algumas regiões do Brasil, de forma livre, sem mecenas ou patrocínio e sem que faça parte do mercado de bens simbólicos.

Ainda refletindo, a partir das ferramentas-conceitos do filósofo P. Bourdier, no Programa Vocacional a produção desenvolvida não é mercadoria e não visa produtores de bens simbólicos no sentido da mercadoria e sim uma apropriação simbólica. A ação social então é a partilha do bem simbólico, além disso, rompe com a alienação e o embotamento dos sentidos e viabiliza a criação e a produção com liberdade, sem relação com “encomendas” diretas. O fazer teatral, como o conhecemos, traz sentido, dá significado para a vida de algumas pessoas que freqüentam o projeto, é sua possibilidade de transformação, de fazer um “furo” no sistema. 

E é nessa transformação que reside nossa atuação política, a de possibilitar acesso às linguagens artísticas, simbólica, construtiva, de significados, desalienante para pessoas que, embora tenham potencial e desejo de potência se vêem emparedados pelo sistema trabalho-escola-família.

Uma das premissas do programa è dar voz aos artistas vocacionados, às pessoas, e nada é mais complexo quando nos deparamos com corpos que são moldados, desde a infância, em um sistema escolar inspirado em fábricas, quartéis e igrejas como nos revela o filósofo Michel Foucault (1977). Os “corpos dóceis” disciplinados pelas punições, pela vigilância, para obedecer, para operarem o sistema da fábrica. Corpos que não foram estimulados a criar, imaginar, fruir, sentir, pensar, propor, expressar desejos, sonhos e questionamentos críticos.

 

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) Em uma palavra ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma capacidade que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. (FOUCAULT, 1977, p. 127.)

 

Corpos que se tornam frágeis, adoecem e são tratados com medicamentos que entorpecem a sensibilidade. E, ainda assim, conhecemos experiências de grupos de pessoas “despertas” depois de anos de freqüência no Programa Vocacional, de grupos teatrais formados a partir dessa experiência que seguem uma trajetória bem sucedida no sentido de produção de espetáculos, temporadas e prêmios de incentivo.

Sobre essa importante compreensão de reversibilidade diz o filósofo M. Merleau-Ponty (2006) “O papel do corpo é assegurar essa metamorfose. Ele transforma as idéias em coisas, minha mímica do sono em sono efetivo. Se o corpo pode simbolizar a existência, é porque a realiza e porque é sua atualidade.”

A consciência e expressão corporal integrada à uma refinada percepção da imaginação, da memória e da sensibilidade,  a Festa, como elemento da cultura popular, a corporeidade - a criação de imagens a partir do corpo, em composição com o Outro -,  têm sido, até aqui,  a base de sustentação e construção de um corpo desperto, em Arte e também de diálogo com as pessoas que participam das turmas de teatro no CEU Vila Atlântica.

Mas, retomando a imagem recorrente da piscina, se quisermos tocar o fundo com nossos pés, talvez encontremos, por ora, que a linguagem teatral desenvolvida em um espaço de investigação artística, além de garantir a divisão do capital simbólico seja, - para algumas pessoas - a única possibilidade de formação sensível que dá a elas sentido para a existência, na apropriação que faz do próprio corpo, em arte, desperto a partir da experiência da criação; corpo esse que deixa de ser território de poder de Outro, para se tornar de si mesmo, no sentido do que é único, do que me toca, me alcança e nos torna criadores.

 BIBLIOGRAFIA

 

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, Arte e política: ensaio sobre a        

 literatura e  história da cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994.

 

BOURDIEU, P. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de

         Janeiro: EdUERJ, 2002.

 

BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo, Ed. Perspectiva,

         2013.

 

FERREIRA-SANTOS, Marcos; ALMEIDA, Rogério. Aproximações ao Imaginário:

         Bússola de investigação poética. São Paulo: Editora Laços, Selo Képos, 2012.

 

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão. Petrópolis: Editora  

      Vozes, 1977.

 

 
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo:

        Martins Fontes, 2006.

 

 

 




[1] Andrea Cavinato é Artista Orientadora no Ceu Vila Atlântica. Doutora em Educação pela FE-USP. Mestre e Especialista em Arte pela Escola de Comunicações e Artes ECA-USP.

Marcadores: , , ,

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial