O corpo como atualidade da existência
O corpo como atualidade da existência
(A artista vocacionada Sofia Cunha Virgilio) |
Foto: Andrea Cavinato
(...)
Eu sempre sonho que uma
coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.
Leitura
de Adélia Prado
Escrevo: me inscrevo no mundo, na existência. Reflito. Me aproprio. Crio.
Esse texto é um misto de relato, reflexão e divagação sobre experiências que
nos tocam, nos atravessam como Artista Orientadora - há poucos meses no
Programa Vocacional.
Um pequeno glossário se faz necessário: o termo utilizado para definir
seres humanos, indivíduos, artistas vocacionados será pessoa, tomando emprestado
seu conceito na filosofia; do grego prósopon, que se distancia do termo persona, da máscara
teatral, mas mais próxima de personnare (aquilo
que ressoa), em que a máscara é usada pelo ator para “ajudar a extrair e projetar a voz (o mais íntimo de si mesmo)” (FERREIRA-SANTOS, M;
ALMEIDA, R; 2012 ) Assim cada pessoa é única, plena de um corpo- ser- no mundo.
O Programa Vocacional propõe um importante espaço de criação em
diferentes linguagens artísticas. Em grande parte é desenvolvido em locais que
estão distantes dos centros urbanos e, portanto da grande concentração de
atividades culturais e de entretenimento, as pessoas que se interessam por
essas atividades se distinguem e se encontram em projetos como o Vocacional.
O teatro como linguagem, tem uma histórica imagem de desviante. A norma,
a moral, as condutas sociais entram em conflito com a escolha de fazer teatro,
por pré-conceitos, que podem parecer antiquados, mas passamos por eles todos os
dias quando orientamos jovens, adolescentes que nos relatam suas dificuldades
junto à família para poder fazer teatro.
E as dificuldades perpassam a condição financeira, inseridos que estamos
em uma lógica capitalista do trabalho, a grande maior parte dos jovens estuda e
trabalha, faz teatro no tempo que “sobra”, ou seja, em seu “tempo livre”, e
aqui podemos afirmar que embora seja uma atividade que dê prazer, não é vista
como opção de lazer, e nem como um hobby, é levada muito a sério, como
experiência formativa.
São conflitos humanos, familiares que, não poucas vezes, nos atravessam com
histórias de vida semelhante à de quem escolheu o teatro como profissão, ou foi
escolhido por ele.
E cá estamos nós: artistas orientadores do Programa Vocacional Teatro,
com nossas horas semanais, em encontros de três horas, de riqueza formativa
impossível de ser mensurada, em reuniões de discussões profundas, imersos em um
projeto político-pedagógico que nos esmeramos em compreender, mesmo se, a
imagem recorrente seja a da piscina imensa, de águas azuis profundas e refrescantes,
em um dia de calor: e, muito embora, saibamos nadar não conseguimos tocar o
fundo com nossos pés.
As pessoas que freqüentam os
encontros, que fruem de espetáculos teatrais, - sobre os quais se debruçam, em
debates, na busca de aprofundar uma compreensão pessoal e possível -; estão em
parceria conosco em uma quebra de paradigma.
Vejamos com mais detalhes: no sistema capitalista não é só o capital
econômico que cria desigualdade social e também o capital simbólico, formado
pelo conjunto de signos e símbolos, como conceitua o filósofo francês Pierre Bourdier
(2002), em que o sistema de ensino contribui para conservar privilégios, um
mecanismo para que as estruturas sociais sejam mantidas. O autor empresta do marxismo a noção do
capital, no sentido de formas de riqueza, que dá aos que a possuem poder sobre
os desprovidos e estende essa noção ao capital cultural, - uma relação
privilegiada com a cultura erudita e a cultura escolar e o “capital social, designando a rede de
relações sociais que constitui uma das riquezas essenciais dos dominantes.” (BOURDIER,
2002).
Historicamente, às classes menos favorecidas não é oferecida oportunidade
de fruir e produzir o bem simbólico, uma vez que para isso é necessário
educação que forme para uma existência mais plena e não só prepare para o
mercado de trabalho ou para o vestibular, leis da produtividade econômica. Poderíamos
considerar a cultura popular, seus brinquedos, folguedos e danças como a
produção do bem simbólico nas classes populares, assim é em algumas regiões do
Brasil, de forma livre, sem mecenas ou patrocínio e sem que faça parte do
mercado de bens simbólicos.
Ainda refletindo, a partir das ferramentas-conceitos do filósofo P.
Bourdier, no Programa Vocacional a produção desenvolvida não é mercadoria e não
visa produtores de bens simbólicos no sentido da mercadoria e sim uma
apropriação simbólica. A ação social então é a partilha do bem simbólico, além
disso, rompe com a alienação e o embotamento dos sentidos e viabiliza a criação
e a produção com liberdade, sem relação com “encomendas” diretas. O fazer
teatral, como o conhecemos, traz sentido, dá significado para a vida de algumas
pessoas que freqüentam o projeto, é sua possibilidade de transformação, de
fazer um “furo” no sistema.
E é nessa transformação que reside nossa atuação política, a de
possibilitar acesso às linguagens artísticas, simbólica, construtiva, de
significados, desalienante para pessoas que, embora tenham potencial e desejo
de potência se vêem emparedados pelo sistema trabalho-escola-família.
Uma das premissas do programa è dar voz aos artistas vocacionados, às
pessoas, e nada é mais complexo quando nos deparamos com corpos que são
moldados, desde a infância, em um sistema escolar inspirado em fábricas,
quartéis e igrejas como nos revela o filósofo Michel Foucault (1977). Os
“corpos dóceis” disciplinados pelas punições, pela vigilância, para obedecer,
para operarem o sistema da fábrica. Corpos que não foram estimulados a criar, imaginar,
fruir, sentir, pensar, propor, expressar desejos, sonhos e questionamentos
críticos.
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
corpos dóceis. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de
utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) Em
uma palavra ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão,
uma capacidade que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a
potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição
estrita. (FOUCAULT, 1977,
p. 127.)
Corpos que se tornam frágeis, adoecem e são tratados com medicamentos que
entorpecem a sensibilidade. E, ainda assim, conhecemos experiências de grupos
de pessoas “despertas” depois de anos de freqüência no Programa Vocacional, de
grupos teatrais formados a partir dessa experiência que seguem uma trajetória
bem sucedida no sentido de produção de espetáculos, temporadas e prêmios de
incentivo.
Sobre essa importante compreensão de reversibilidade diz o filósofo M.
Merleau-Ponty (2006) “O papel do corpo é
assegurar essa metamorfose. Ele transforma as idéias em coisas, minha mímica do
sono em sono efetivo. Se o corpo pode simbolizar a existência, é porque a
realiza e porque é sua atualidade.”
A consciência e expressão corporal integrada à uma refinada percepção da
imaginação, da memória e da sensibilidade, a Festa, como elemento da cultura popular, a
corporeidade - a criação de imagens a partir do corpo, em composição com o
Outro -, têm sido, até aqui, a base de sustentação e construção de um
corpo desperto, em Arte e também de diálogo com as pessoas que participam das
turmas de teatro no CEU Vila Atlântica.
Mas, retomando a imagem recorrente da piscina, se quisermos tocar o fundo
com nossos pés, talvez encontremos, por ora, que a linguagem teatral
desenvolvida em um espaço de investigação artística, além de garantir a divisão
do capital simbólico seja, - para algumas pessoas - a única possibilidade de
formação sensível que dá a elas sentido para a existência, na apropriação que
faz do próprio corpo, em arte, desperto a partir da experiência da criação;
corpo esse que deixa de ser território de poder de Outro, para se tornar de si
mesmo, no sentido do que é único, do que me toca, me alcança e nos torna
criadores.
BENJAMIN, Walter. Magia
e técnica, Arte e política: ensaio sobre a
literatura e história da cultura. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1994.
BOURDIEU, P. Pierre
Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2002.
BOURDIEU, P. A
Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo, Ed. Perspectiva,
2013.
FERREIRA-SANTOS, Marcos; ALMEIDA,
Rogério. Aproximações ao Imaginário:
Bússola de investigação
poética. São Paulo: Editora Laços, Selo Képos, 2012.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão.
Petrópolis: Editora
Vozes, 1977.
Martins Fontes, 2006.
[1] Andrea
Cavinato é Artista Orientadora no Ceu Vila Atlântica. Doutora em Educação pela
FE-USP. Mestre e Especialista em Arte pela Escola de Comunicações e Artes
ECA-USP.
Marcadores: Andrea Cavinato, CEU Vila Atlântica, Ensaio 2014, Programa Vocacional Teatro
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