domingo, 30 de novembro de 2014

Isso não é um ensaio

Isso não é um ensaio.
                                                                                                                         A.O Verônica Mello
Veronica Pereira Pinto
equipamento: Tendal da Lapa
equipe Centro  Oeste

Nasci para administrar o à-toa
o em vão
 
o inútil.
Pertenço de fazer imagens. 
Opero por semelhanças.
 
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
 
de pessoas com rãs
 
de pessoas com pedras
 
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo. 
Não tenho habilidade pra clarezas.
 
Preciso de obter sabedoria vegetal.
 

(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
 

E quando esteja apropriado para pedra, terei também
 
sabedoria mineral.

Manoel de Barros

Aqui começo destruindo meus escritos. Desistindo de escrever algo para outro. Desistindo de escrever um ensaio. Afinal, quem vai ler? A quem interessa isso? Eu não sei escrever ensaio. Portanto o destruo desde já. Se você veio aqui para ler algo organizado que esclareça como foi o ano de trabalho em 2014 no Tendal da Lapa, etc, etc. Pode dar a volta e buscar outros textos. Este não dá conta disso. Eu não dou conta disso.
Comecei escrevendo sobre o processo das turmas. Repetindo relatos feitos diversas vezes durante o ano. Sobre a demanda do Tendal da Lapa, sua característica de passagem que favorece a formação de núcleos que desejam mais estabilidade (já que todos só passam por lá e não se comprometem), sobre a lente de aumento dada nesse ano ao processo com procedimentos de criação, recriação e destruição de cenas-rascunhos trazendo o processo como foco aumentado da pesquisa. Pronto. E desisti de fazer isso. Vou publicar esses outros textos inacabados aqui no final desse não ensaio. Para quem estiver curioso e chegar até lá saiba: não se fecham. não terminam. não tem lógica.
Como este aqui que é mais um fluxo de pensamento-caótico. Eu não sei escrever ensaio. Então eu grito! Tem alguém aí do outro lado da linha? Estou sozinha? Estou só ao pensar que o processo vivido nesse tempo-espaço curto de menos de 8 meses não se prontifica a ser ensaiado aqui? Porque não cabe. Porque não dá pra medir. Porque não posso. Seria reduzir. Demais. Então eu falo! Destruo este ensaio. Retalho pontos escritos pelo tempo curto que tivemos. A quem interessa mesmo isso? Um projeto que deveria ser contínuo e se finda a cada ano deixando um vácuo de descontinuidade. Um projeto que poderia ser outra coisa. Se tivesse mais interesse público. Se fossemos escutados. Se tivéssemos voz. Eles – os vocacionados – encontram cada vez mais as vozes deles – dentro do espaço do encontro. Os processos são muito intensos. Nós vivemos lindamente momentos de crise, desistência, persistência, resistência artística e pessoal. Mas a quem interessa mesmo? A nós que vivemos isso. Sim. Leio pra vocês esse relato. Parceiros de caminhada. Talvez tenhamos tempo para isso...
Ensaiar. Todos os dias nós ensaiamos a possibilidade de criar velhas/novas estéticas. Novos desejos para falar. Falamos. Gritamos. Quando os barulhos do Tendal ressoam nas paredes isso se faz necessário. E vamos pra rua. Lá tem gente viva, querendo continuar morta. Temos que tentar olhar para elas. Tentar não morrer junto. Não sucumbir à rotina de estar sempre caminhando em direção a algo útil. Para quem? Plagio: Quero ser Inútil. Sempre quis. Vocês não precisam mais de mim para isso. Vocês já conseguem olhar para o outro e descobrir que podem reagir a algo. Falar com as paredes em frente ao mercado, ouvir um homem pedindo foco para sua história descabida ou se aproveitando do movimento para fugir da Polícia... fazendo fila ao contrário, criando imagens de revistas na praça, seguindo as pessoas como sombras, guiando-as cegas por um labirinto sensorial ou levantando as cegueiras delas num labirinto de conceitos, trazendo as doenças de vocês para que todos se lambuzem em anilina e mel, falando de uma Rússia Brasileira individualista, buscando formas de lidar com os espaços, levando o público a uma experiência sensorial com o tempo, questionando os dogmas religiosos e científicos, materializando algo subjetivo em nossa sociedade que vê a mulher como mercadoria e não assume em palavras. Rascunhos. Transformados. Recriados. Vocês já sabem por onde podem ir.
Seguem sem forma, os textos rabiscos que escrevi neste ano. Tive pouco tempo para palavras. Tive que tentar dar conta de demandas. Cinco núcleos. Uma orientadora... Todo o tempo foi para tentar criar redes. Veio o Cruck, que provocou nossas possibilidades de estar ali. Vimo-nos bloqueados por não desejos de relação. Vocacional Teatro isolado. Mas já somos muitos. Então seguimos. Num desejar estar junto quase impedido por tempos diferentes, trabalhos diferentes, estudos diferentes. O mundo útil toma conta da gente. Toma tempo da gente. Nos aprisiona. Mas continuamos resistindo. Provocando possibilidades de estar. Ali. Naquele tempo-espaço proposto. Tentando encontrar outros tempos possíveis. Ali...
Mas você que não está lendo isso pode estar pensando: essas despalavras passam assim como despropositadas por mim. Não me dizem nada. Não me alimentam, não existem. Assim são mesmo. Eu respondo sem medo de ser desentendida. Assim eu desescrevo o que me passa em pensamentos. Como pássaros, os pensamentos podem voar sem necessidade de amarras, gaiolas, prisões. Assim desensaio palavras pensamentos sobre o que foi. Para que você que não leu, possa entrar dentro de meu não tempo-ensaio, do meu inútil pensar, na minha ânsia por desobrigar, desmedir, desentender o que é imposto e surge sem vontade. Essa vontade que vai surgindo a fórceps a cada palavra sem sentido aqui escrita, pois essas palavras sem sentido, são em mim uma forma de desabafar os sentidos tomados nesse curto tempo em que estive junto a pessoas incríveis, a pessoas reais, a pessoas que fazem sentido, a pessoas que não cabem aqui.



Então vamos aos retalhos:

pensamentos soltos sobre o espaço Tendal da Lapa

trem
caminho de ida
e volta.

de onde vem?
o que desejam?
porque vem e voltam?
para onde partem?

o tempo ali parou. tudo continua sempre despencando. eternamente, as árvores crescem.

tudo de novo. caminhos recomeços. estação de trem, sons, espaços fechados abertos, sons, chão sujo, sons, barulho. uma legião de pessoas passam pela lapa e aquele espaço desconhecem. o que acontece ali? é o poupa tempo? chega, faz documento, sai? não. se precisar de algo rápido ali, vai ser difícil conseguir. tempo. ali parece que está parado. um tempo antigo passa ali. uma história em tijolos e paredes. minha história. história de muitos. desejos diversos. um lugar onde muitos passam. alguns ficam. ali acontece sempre muita coisa. hoje mais do que antes. hoje mais sons. hoje também mais barulhos. hoje mais grupos de teatro tentando fazer algo que os movam. iniciantes que passam e depois ficam. outros passam e não voltam mais. as pessoas não criam vínculos facilmente. eu tento. isso sempre me incomodou. incomoda muito. as pessoas marcam seu passos por onde passam e esquecem que outros esperam ansiosos o retorno. continuando... eu continuo... mais um ano. grupos antigos e turmas novas. muitas pessoas. cinco núcleos. uma a.o. – eu. de novo tenho que tentar dar conta do que não cabe em mim? mas são tão interessantes. interessados. evolvidos. desejosos de estar lá. quase moram no sábado. me interessa também. estar ali em relação. mas como fazer?
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AUTORRETRATO
Manoel de Barros

Ao nascer eu não estava acordado, de forma que
não vi a hora.
Isso faz tempo.
Foi na beira de um rio.
Depois eu já morri 14 vezes.
Só falta a última.
Escrevi 14 livros.
E deles estou livrado.
São todos repetições do primeiro.
(Posso fingir de outro, mas não posso fugir de mim).
Já plantei dezoito árvores, mas pode que só quatro.
Em pensamento e palavras namorei noventa moças,
mas pode que nove.
Produzi desobjectos, 35, mas pode que onze.
Cito os mais bolinados: um alicate cremoso, um
abridor de amanhecer, uma fivela de prender silêncios,
um prego que farfalha, um parafuso de veludo, etc. etc.
Tenho uma confissão: noventa por cento do que
escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira.
Quero morrer no barranco de um rio: - sem moscas
na boca descampada.
Autorretrato

retrato de uma pessoa feito por ela própria.
                   tirar o retrato a
         fotografar
fazer a pintura de
                   representar ou descrever com exatidão
                                                        deixar transparecer, revelar
espelhar-se – patentear-se – reproduzir-se

Com o intuito de conhecer-nos um pouco mais, cada um dos vocacionados estão criando seus autorretratos.
Com foco na relação O QUE X COMO,  cada um despe-se de um detalhe de si, de algo oculto, ou de algo falso.
Uma relação sutil entre verdade e mentira. Real e imaginário. Eu me vejo como desejo.

         Um segundo passo: em grupo. O que querem retratar? Surgem os rascunhos. Possibilidades de processo vivo. Exposto. A cada momento podendo se transformar. Se redesenhar.
um projeto de rascunhar, rabiscar cenas. ou como pesquisar desfazendo certezas.

começamos com a ideia de autorretrato. objetivo simples: conhecer quem eram as pessoas que ali estavam. o que desejavam? arriscamos esse caminho e por ele fomos. um depois do outro se seguiram. deles o desejo de saber: o que o coletivo gostaria de retratar. continuamos. passos para cenas mais coletivas. ali nos arriscamos assim: cada um traria novas camadas de tintas / presentes para o outro grupo. cada grupo passaria a redesenhar seu rascunho de pesquisa e assim fomos. rascunhando.
o processo como foco aguçado. o processo como resultado diário. a se apresentar e jogar fora se desejar. ou a aprofundar de o rio pedir um mergulho.
temas que se partiram os rascunhos:

Uma mulher se olha no espelho.
Quem é ela?
O que o espelho mostra?
O que ela sente?
O que ela vê?
O espelho mente?
Ela não quer ser como é.
Mas o espelho insiste. Continuado. Ali parado. Mostra sua face.
Ela é assim? Tem que ser? Sempre?
Dizem que o espelho guarda a alma de quem se mira.
A alma do espelho...
A dela está perdida.
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tempo. na cidade. ele nos devora. come cegamente. ele nos alimenta, nos mantém vivos até que ele deseje terminar com tudo. ele nos sufoca se entramos nos redemoinhos relógios que nos aprisionam.

Quem é você? Escravo do tempo? Um tempo em movimento?
Cada um poderia responder como quisesse. A resposta é um fato inventado.
A inspiração da invenção poderia se uma verdade ou uma imaginação.
Mas o tempo parece aprisionar. Prender. Agarrar.
Ele insiste em existir.
tic tac. tic tac.
Como um coraçãozinho preso ao pulso o tempo continua.
Eu ali continuado.
tic tac. tic tac.
Existindo.
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é um homem ou um macaco?
controlado por um deus – oniprepotente – um homem
é um homem ou um macaco?
um anjo que se repete a soar – um macaco.
é um homem ou um macaco?
controlado continua a obedecer.
o que importa? ele é controlado. Ele segue.
Como máquina.
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PROGRAMA
autorretrato no espaço.
ou dando um espaço para ser.
1.       Encontrar um lugar no espaço. Encontrar um espaço no lugar. Encontrar você no espaço. Encontrar um espaço em você. (Tempo: até todos chegarem no espaço escolhido)
2.       Escolher uma folha, uma cor, uma imagem, um desejo, um amor, uma dor e desenhar seu autorretrato. Escrever seu autorretrato, olhar e ler seu autorretrato. (Tempo: 15 minutos)




trecho do livro Acorn de Yoko Ono  para inspiração

3.       Escolher um lugar onde seu autorretrato possa ser colocado, instalado. (Tempo: necessário para achar o lugar e voltar para o centro do espaço e encontrar as outras pessoas)
4.       Caminhar pelo espaço. Observar as pessoas. Cada um. (Tempo: necessário para ver todos algumas vezes)
5.       Caminhar pelo espaço. Observar os autorretratos dos outros. Escolher um que não seja seu. (Tempo: necessário para escolher)
6.       Inspire-se nele. Sinta-se como ele. Invente quem é ele. Faça o autorretrato dele em palavras. (Tempo: 10 minutos)
7.       Retorne para o centro do espaço. Leia o seu texto. Compartilhe com os outros. Estejam juntos. (Tempo: o que for necessário para compartilhar)

Bônus: pegue o livro Acorn. Sorteie uma página. Leia em voz alta. Experimente fazer a proposta na sua vida.
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texto usado na pesquisa sobre individualismo. história ponto de partida para o jogo: Os Mujicks de Anton Tchecov. turma de sábado com dissidentes do grupo QUE SEJA.
Os Ninguéns
As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns em deixar a pobreza; que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguéns, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos.
Que não são, embora sejam.
Que não falam idioma, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na História Universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.

Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.




(Eduardo Galeano  - O livro dos abraços, tradução de Eric Nepomuceno)

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