domingo, 30 de novembro de 2014

O lugar do hífen

Por Murilo De Paula (Artista Orientador no CEU Curuça - Leste 4 - Teatro) Denis Guénoun escreve seu livro “O teatro é necessário?” a partir de uma indagação que poderia ser resumida assim: por que cada vez mais pessoas procuram fazer teatro, quando simultaneamente o número de espectadores é decrescente? O autor busca investigar esta paradoxal desproporção e compreender quais são os agentes que a produzem. Logo na introdução ele cita como o fazer teatral se expandiu e entre os tantos espaços que ocupou estão “os bairros ditos em ‘situação de risco social’ ou conflagrados”. Falando de uma realidade da França nos anos 70, este aumento expressivo de fazedores de teatro e decréscimo do público diz também muito de uma realidade que podemos observar no Brasil nestas últimas décadas com a criação de diversas faculdades e cursos técnicos de artes cênicas e da atuação de projetos culturais desenvolvidos nas periferias. O programa vocacional realizado em todas as regiões do município de São Paulo ocupa principalmente os espaços culturais públicos da periferia e tem por cerne de seu projeto artístico pedagógico a instauração de processos criativos emancipatórios. Neste parágrafo está posta direta e indiretamente uma complexa problemática que não posso ignorar como ponto de partida ou de frequentes retornos ao olhar para os processos vivenciados nas orientações deste ano e observar os que chegam ao programa vocacional (este já em seu eterno recomeço) e os que mantém uma relação de anos com o projeto e que de um determinado ponto de vista tem muito mais a dizer sobre o programa do que eu mesmo nestes dois anos como artista orientador. De minha breve experiência no programa posso ressaltar que os encontros são diversos e que exigem uma postura muito flexível do artista orientador na compreensão das especificidades de cada espaço, turmas e grupos orientados. Processo muito dificultado pela tão debatida sazonalidade do programa, um dos seus poucos aspectos permanentes e que nos coloca sempre na árdua tarefa de formar novas turmas, entender as dinâmicas de trabalho dos grupos já formados e ir descobrindo as potencialidades e caminhos para que as práticas criativas sejam efetivamente compartilhadas entre os vocacionados e entre vocacionados e Aos. Ao iniciar as orientações deste ano, já em meados de abril, o primeiro contato que tive com os vocacionados foi através das fichas de inscrição dos anos anteriores. Sempre me atento para o item em que o inscrito deve apresentar o motivo pelo qual procurou o programa, algumas respostas frequentes são: para perder a timidez, fiz/assisti uma peça na escola/igreja e gostei, para me descobrir, amo o teatro, quero ser ator e fazer tv, sempre tive vontade de fazer teatro. As respostas revelam em geral que quem procura por um “curso” de teatro tem uma ideia muito vaga sobre o que seja essa prática e trazem um referencial muito associado a TV e a representação e ao ator como alguém extrovertido. No entanto, iniciadas as atividades, a experiência em grupo, os jogos, a ampliação do imaginário de que teatro é somente representar os personagens de um texto decorado, parecem criar um campo ora de tensão, ora de liberdade. Ao lidar com esses que chegam ao programa, e que vão chegando durante todo o ano, e que têm poucas referências propriamente “teatrais” (muitos sequer assistiram espetáculos) me vejo como o hífen dos binômios orientador-professor, encontro-aula, processo-obra, grupo-turma. Orientar na linguagem cênica uma turma que não a “conhece”, sem no entanto, imprimir-lhe uma estética determinada por sua própria experiência artística é um instigante desafio. Descobrir junto à turma possibilidades criativas, em que a compreensão da linguagem não se dá a priori à experiência, mas que a experiência desvele formas e que essas formas indagadas sejam desdobradas em outros possíveis. Quanto a orientar um grupo, hipoteticamente, me parece um lugar mais fácil de compreender, uma vez que entendemos que um grupo já tem algum domínio da linguagem e alguns desejos quanto ao caminho que gostariam de trilhar. No entanto ao olhar para os grupos formados dentro do programa vocacional, algumas questões me surgem como embriões distantes de respostas. Algumas delas são: as inscrições no vocacional apresentam duas possibilidades, turma ou grupo, essa divisão restringe outras formas de encontro? Quando passamos a ser um grupo? (Pergunta de um vocacionado) Nomear-se grupo significa ser um grupo? Quando um grupo deixa de sê-lo? Quando um grupo formado pelo vocacional mantêm uma produção artística, que respaldo poderíamos dar? O que eles fazem com essa produção? Ou o que fazer com os grupos “emancipados”? Observando os grupos formados dentro do programa vocacional e suas produções, é possível dizer que há um certo perfil determinado pelas premissas e estrutura do próprio programa? São muitas questões que talvez pudesse chegar algumas respostas a partir de um estudo mais abrangente, analisando diversos grupos, regiões etc Mas alguma coisa apreendi do encontro com os dois grupos que orientei no vocacional, ambos me colocaram em xeque sobre o papel do orientador. Orientei o grupo “Identidade oculta” no ano de 2012, na verdade parte do grupo, o que era uma problemática, pois era uma orientação a duas integrantes do grupo que ainda consideravam importante a parceria com o programa, enquanto os outros já haviam decidido rompê-la, na época o grupo tinha recém inaugurado sua sede e mantinha uma produção, inclusive contemplada pelo VAI. Por serem só duas vocacionadas, ausências e a própria dinâmica paralela do grupo impediam um fluxo nas orientações, o que me fez propor que abríssemos o trabalho a outras pessoas interessadas, não alterando o foco de investigação definidos por elas, seria então nem grupo nem turma, mas um “núcleo de estudo”. Este ano ao orientar o Grupo Opus a problemática foi outra, também nascido do programa vocacional, o grupo tem hoje 7 anos e de seus 7 integrantes somente três continuam. Desses três, um só pode ir a cada quinze dias. A (des)configuração do grupo, após o afastamento dos demais integrantes pelos mais diversos motivos (trabalho, estudo, etc) deixou-os num dilema. Durante os últimos dois anos vinham produzindo um espetáculo, um dos atores estava escrevendo o texto. O material dramatúrgico inconcluso já era bastante extenso, apesar de muito interessante, em relação ao curto tempo de encontro de que dispõem semanalmente, o projeto de montar o texto tinha se tornado inatingível e desmotivador. Os ensaios estavam dispersos, pois tinham perdido a integrante que se responsabilizava pela organização dos ensaios, trabalho corporal, improvisações etc. Enfim, tinham perdido o domínio dos meios e modos de produção. Desconfiavam do motivo porque ainda continuavam se encontrando e se sentiam nostálgicos em relação a outro período do grupo. Eu não conseguia entender o que os mantinha juntos, para além do desejo de estarem juntos, de se encontrarem para conversar, de debaterem temas de grande importância ou banais, e realizarem breves improvisações com o material. Pensei se esse encontro precisaria acontecer dentro do espaço do vocacional, se seria possível fora do espaço do CEU, e o que propor. Não sem o auxílio dos companheiros de equipe, que tanto têm sido importantes na busca por perspectivas artístico-pedagógicas, cheguei enfim numa proposição que movesse o grupo: a cada mês deveriam escolher um material a ser trabalhado; pensar na sua realização desde a organização do ensaio, dos materiais necessários etc; apresenta-lo publicamente no último final de semana do mês. O objetivo era que ao optar por pequenos experimentos cênicos eles pudessem retomar o domínio de seus modos e meios de produção condizentes às suas presentes condições. Que pudessem centrar o trabalho em objetivos mais simples afim de realiza-los integralmente e o mínimo de profundidade na relação com o material. A estratégia foi fundamental para o grupo pudesse aceitar sua atual condição, entender que o grupo não era mais formado por sete atores e repensar o sentido deste breve encontro aos sábados. As apresentações ao fim de cada mês promoveram o encontro entre equipamentos e certa satisfação do grupo, mas não foi capaz de resolver a questão central desses artistas, de que o seu fazer não constitui um grupo. A pergunta que me faço rigorosamente é o que eu como artista orientador compreendo por grupo, se meu olhar não estaria viciado a entender grupo de uma determinada perspectiva que não incluiria outras formas de se organizar. Perguntar-me isso ampliou meu imaginário sobre possíveis desdobramentos de uma ideia de grupo e pensar que se por um lado a estrutura do vocacional nos aprisiona e nos deixa impotentes, por outro nos dá muita liberdade de experimentação. Poderíamos pensar que para além de turmas e grupos outras formas de encontros coletivos entre orientadores e vocacionados podem ser estabelecidos provocando novas formas de experiência criativas? Outra reflexão a partir da observação do Opus é que um grupo talvez deixe de sê-lo, a partir do momento que o desejo de sustentar a imagem de um coletivo torna-se justamente o empecilho para que os artistas envolvidos sejam capazes de agir coletivamente, ou de encontrar outras parcerias, outros fazeres e formas de organização. Ao final do processo me vejo diante de duas realidades: uma turma em que parte dos vocacionados se destacam por sua capacidade de organização coletiva e um grupo com uma trajetória artística interessante, mas que não consegue mais se organizarem como coletivo. Nos dois casos lido com o entre “grupo-turma”, outro binômio para a coleção. Outro espaço entre que como orientador me vejo na função de cavoucar, habitar e tencionar. Estou certo que grupo e turma não são as duas únicas possibilidades dentro desse programa, mas não sei se é possível nomear outras possibilidades senão no contato com cada realidade específica. Para os japoneses há uma palavra para designar o espaço vazio entre dois corpos, seres ou acontecimentos: Ma, traduzido em uma redução de seu sentido como entre. Diz-se de uma pessoa que não é capaz de reconhecer e respeitar o espaço entre corpos: fulano não tem Ma. Esse Ma, essa capacidade de perceber o invisível, os vazios (inclusive entre os conceitos) é justamente a capacidade de reconhecer os possíveis. Sobretudo os possíveis das relações, das formas de encontro com o outro, com o espaço e com a qualidade desses encontros. O exercício do Ma é manter-se flexível, mutável, adotando uma perspectiva que é sempre relacional. Creio que a experiência no vocacional, com suas estruturas mais ou menos determinadas e bastante precárias não é possível de existir senão na compreensão do que não é e na descoberta de seus possíveis. É investir no entre como potência criativa.

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