domingo, 30 de novembro de 2014

Os morros nada monótonos que o waze não enxerga

Por Marcio Castro
Coordenador de Equipe / pesquisa-ação
Teatro - SUL 3


PT1


Um bebê gigante invadiu a paisagem monótona do Grajaú, periferia sul da capital paulista, na última semana. Pintada em preto e branco na empena cega do edifício que abriga o CEU Navegantes, a criança ostenta quase 30 metros de altura e contrasta com o cenário de tijolos vermelhos aparentes, lajes e caixas d'água azuis, típico das favelas de São Paulo.



A infeliz utilização do conceito de monótono acima é uma matéria publicada na Folha de São Paulo pela repórter Fernanda Mena este ano, a época da “inauguração” do imenso painel que Alexandre Orion realizou no paredão do prédio multiuso do CEU Navegantes, as margens da represa Billings. O equipamento, localizado na região da Zona Sul, atravessado pelas arquiteturas de blocos vermelhos, cortinas de calças e lençóis nas varandas com telhado e sem forro, circundado pelas águas inexistentes ganhou uma obra artística que de uns anos para cá alçou se a belas artes: o grafite-muralismo-intervenção. O que é de genuíno do trabalho é a relação entre suporte e produto: da fuligem dos carros nas grandes avenidas e marginais de rios mortos, extrai-se a matéria prima que pinta a parede no espaço de sociabilidade que, no caso do CEU, tem as catracas atropeladas e salas com portas destravadas, para não dizer arrombadas. 



Mas o gigante Orion ganhou representatividade. Expôs na Alemanha, desenhou caveiras no túnel da Rebouças e virou hit dos grafiteiros de NY. Voltou com a medalha do reconhecimento de artista exposta na margem do bolso da camisa. Fez história. E fez um painel no CEU Navegantes. E salvou a monótona Grajaú.



Vamos propor uma destruição. Dos processos legitimadores. Das bases milenaristas e engendradas dos caminhos de por onde uma coisa começa e onde termina. O trajeto usual. 



Sair do capitalismo periférico de Santo André, e chegar na cidade periférica de São Paulo frente as grandes cidades do mundo, sem passar pelo seu centro, pela Paulista, pela Berrini, pela linha 4 amarela fedendo ao rio marginal da avenida. Atravessar trajetórias de ruas estreitas, morros, faróis quebrados, colisões de carros dos embriagantes embriagados fazendo valer a vida na Estrada do Alvarenga. Atravessar a cidade sem passar pela Paulista, Berrini Olympia linha 4 amarela ao rio que é marginal da avenida dos carros pratas com insufilm. Descer na estação primavera interlagos e chegar ao CEU Vila Rubi porque o google dá este caminho, mas o google não vê profundidade: para ele tudo é plano, sem dimensões de altos e baixos, persistências, escorregões. Chegar atrasado porque tem um morro no meio do caminho. No meio do caminho uma quebrada, com aparelhos de exercício em frente ao um bar, uma quebrada que é uma biqueira.



De Santo André, saio da biqueira periférica do Parque João Ramalho, que hoje só permanece como rastro daquilo construído historicamente do fundador da Borda do Campo, sair do mito do marido da Bartira e encontrar a monótona Grajaú, se esfolando nas faixas de pedestres da Belmira Marin duplicando. E encontrar as proposições artísticas destes lugares monótonos. Que nos fazem esquecer que estamos numa instituição vocacional, nos faz querer ser amador, assumir amador, viver 10 horas ininterruptas de orientação, almoçar, tomar café, discutir e criar estética, dividir o pão na chapa. Reavivar o processo criativo, que muitas vezes burocratizamos depois que pegamos o atalho até a Paulista Berrini linha quatro amarela do rio marginal da avenida que é o que convencionamos chamar teatro profissional.



E assim como sei que toda quarta e sexta passa lixo na minha rua em Santo André, é necessário este mesmo reconhecimento no espaço novo. Na coordenação, alguma identidade é necessária ser criada com a região. E por mais que os mapeamentos, relatos e leituras sejam importante – mas que ao mesmo tempo emulam um simulacro de pertencimento real – é a convivência e o tempo que trazem as raízes. Saber tanto o que se passa pelas pessoas que atravessam duas horas para chegar a um centro que se convencionou centro muitas vezes fazendo o caminho inverso; experimentando passar pelo “passadão” da Teotônio Vilela e também conseguindo aos poucos enxergar com olhos de raios X as implicações políticas por detrás do concreto cru que envolve o NAC da Gestão. Saber lidar, saber conversar, saber combater. E assim, minimamente, pisar com o pé da periferia na periferia.


PT2: Sobre as primeiras raízes de pertencimento



Chegar e propor uma condução de equipe, a primeira, considerando a experiência não só de gente que está no equipamento há alguns anos, como também possui uma relação politica artística com a região, foi o primeiro elemento a ser olhado. O respeito à trajetória foi a chave mestra da relação. Confiar nas escolhas, encaminhamentos primeiros, num propósito de antes se tornar aliado do que avaliador. Aos poucos, conforme a raiz vai se enfiando nos pés, começamos a ser mais bocudos: proporcionar reflexões sobre conduções, direcionamentos, e é claro, passando também quando nos apaixonamos pelos processos que não estão na mão do Coordenador de Equipe.



Em uma experiência muito específica, fui cobrir uma Artista Orientadora que se ausentou – mas que foi um combinado antes mesmo do início do programa com a divisão de formação. Na trajetória da condução, percebi o quanto do material programado para o encontro ia se transformando conforme o contato com os vocacionados se estabelecia. E o quanto daquela desenvoltura era parte de mim quase que natural, instigante e potente. Mas ao mesmo tempo em que o encontro e o encaixe em me ver novamente como artista orientador me trouxe uma nostalgia de um tempo muito próximo ainda – pois na edição anterior, em menos de cinco meses eu estava AO – me trouxe também talvez a primeira epifania do ano: pensar o projeto como Orientador talvez não seja a melhor forma de ajudar os processos. Tentar executar uma outra função, a do coordenador como ser provocativo e parceiro na relação com o AO talvez seja o caminho mais profícuo para o projeto. Treinar o olhar para outras constatações, outras experiências, outras funções, não melhores nem piores, mas outras funções. Outra função.



E aí o tempo é mestre. Esperar surtir efeito de uma, duas, três visitas a uma mesma orientação, perceber encontros e dissonâncias, e a partir disso embrenhar se nas colocações, tentando ser um articulador de processos em conjunto, nunca um bedel. Mesmo com o medo de ser bedel. Treinar as palavras, os cuidados, os carinhos, as concretudes necessárias e francas.



Mas aí já se passou cinco meses. Três orientadores que se desligam do programa, e o medo de perder um acordo e mesmo uma pesquisa iniciada por um coletivo, que, constatando o grande número de grupos na região, faz desta uma das pontas de lança para 2014. Como conseguir trabalhar as transições, sem atropelar os processos, mas ao mesmo tempo respeitar as novas colaborações, mesmo que não em consonância com acordos anteriores? 



Do ciclo de reflexões iniciado em junho que continha a pergunta “Fazemos arte para quê?” com o subtítulo “quando falamos arte pressupomos uma estratégia. A pergunta é: temos uma estratégia?”, nos transpomos para a mostra apenas em novembro 22. E um outro encontro dia 30, ainda a realizar, último dia, com o propósito “vamos para onde agora?”. Mesmo identificando o quanto foi bom os dois encontros, o primeiro de reflexão que causou turbilhão em muitos coletivos – alguns grupos desfaleceram, outros reorganizaram-se, e nós também nos avaliamos como condutores talvez um pouco desleixados com o rigor que se tinha com a mediação – e depois a mostra feita com mais de 80 vocacionados no dia 22, em sala multiuso e entornos internos e externos do CEU Navegantes, sem luz, sem coxia, só processo: um acerto portanto. Mas avaliamos que talvez propusemos poucos olhares entre os vocacionados. Escondido ou não na mudança de pessoas da equipe ou da identidade, nossas pernas encurtaram ou mesmo deixaram de crescer em algum momento para os saltos.



E como aquele que acredita, aquele que tenta estabelecer relações de parceria, negar-se a explicar muitas vezes a um coordenador de núcleo de ação cultural o seu papel é fazê-lo entender o seu papel, como uma pedagogia reversa. Atrás do concreto cru é onde se dá o terreno mais difícil de enraizar. Muitas vezes porque a disponibilidade do solo é infértil, muitas vezes porque o sal tomou a terra. Muitas vezes porque o solo infértil mostra se fértil a sua frente para posteriormente pelas costas, virar a esquina, novamente mostrar-se infértil. Os morros que o waze não mostra no mapa configura-se na maior clareza e talvez agora é falar pisando duro no chão. E dizer que está aqui. Mesmo que tudo amanhã vá por agua abaixo. Reunião em corredor, reunião desmarcada depois de três horas de deslocamento, reunião em cozinha – esta uma das melhores – reuniões simulacros de desejos de mudança, no qual o vocacional é sempre a perna torta. 



Como alguém que chega, levado a empurrões da realidade, parece que saio catando cavaco pelo chão. E assim acabo. Sabendo que o tempo que me preenche agora tem me deixado mais respirador do ar da periferia monótona da repórter, cheia de vida compartilhada nas feiras que atravessa as ruas no domingo, feiras de tudo, que o waze também não vê.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial