domingo, 30 de novembro de 2014

Os lugares: os seus outros espaços possíveis

Ensaio Vocacional 2014
Por Judson Cabral
Os lugares: os seus outros espaços possíveis
Este ano de 2014 no programa Vocaciona experimentei e fui experimentado na função de coordenador de equipe-teatro. Quando digo que experimentei e fui experimentado em tal função quero dizer em sentido de vivenciar outras demandas e, por conta disso, criar procedimentos que não eram de “simples” respostas a algo, ou seja, ao experimentado, pois ele carrega em si uma espécie de campo dos possíveis. Dito de outro modo, a função de coordenador de equipe pode ser ela mesma a reprodução de um modo de engrenagem, portanto, um reforço ao modelo de distribuição dos papéis e o seu modo de experimentar. Claro que tudo isso atrelado uma funcionalidade-utilitarista. Uma imagem a priori que nos faz surfar no MESMO na intenção de confirmar aquele modelo.
Mas, por que dei o título desse ensaio de OS LUGARES: os seus outros espaços possíveis? O que o primeiro parágrafo tem com isso?  Na perspectiva que tentarei esboçar durante esse ensaio, o título e o primeiro parágrafo se agenciam na tentativa de me fazer pensar. E como diz Samuel Beckett começar é muito difícil. “COMO é difícil começar”. E como é difícil, quase impossível falar em nome próprio. Há uma voz que o precede a muito. Em o INOMINAVEL Beckett diz “é preciso continuar, eu não posso continuar...” Faz menção à ideia de que há uma voz que antes mesmo de está falando vem vindo... Como se ele só pudesse falar por essa voz. Era possível falar de umas coisas e de outras não. Era possível pensar algumas coisas e outras não. Alguns autores colocam em xeque a ideia de que existiria um sujeito soberano que fala e pensa que ele decide. “o que importa quem fala. Alguém diz o que importa quem fala”. É como se tivesse uma fala-imagem que “não te permite” falar e ver fora.  Se pensarmos em termos de Jacques Rancière, pensaremos em relação a partilha do sensível.
Assumindo a função de coordenador de equipe, eu pude transitar pelos equipamentos e pelos encontros dos Artistas Orientadores da equipe sul 1 de teatro. Por conta disso, isto é, das visitas, dos trânsitos, começou a saltar aos meus olhos uma espécie de fricção entre os equipamentos-LUGAR(ES) (a partir daqui toda vez que aparecer escrito LUGAR(ES) todo em maiúsculo significará equipamentos, pois o equipamento é um lugar, que contém em si espaços que fogem ou mesmo promove tipo-outro de experimentos e agenciamentos que não estão em conformidade com estatuto do LUGAR, desse modo, abre-se a possíveis que ainda não foram esquadrinhados. É isto que chamo de outros espaços possíveis, ou seja, espaços que promovem e possibilitam conexões diversas dos elementos disjuntos). 
Ora, isto em si só já nos coloca um problema de cara, a saber, que a luta política é uma luta cognitiva (prática e teórica) pelo poder de impor a visão legitima do mundo social, ou seja, o poder de (re)fazer a realidade preservando ou alterando as categorias pelas quais os agentes entendem e constrói aquele mundo. Claro que nessa lógica o pensamento político é da esfera do macro, isto é, a disputa é por um modelo que se torne majoritário, que sirva de baliza para todo tecido social. Dito de outro modo, o poder de seguir hábitos-majoritário que faz com que aquela realidade se reproduza. Para isso, a sociedade precisa de LUGAR(ES) que garantam essa reprodução, pois ela não cai do céu, precisa de mecanismos objetivos, isto é, LUGAR(ES)  (estruturas objetivas que engendram e garantem a permanência). Os equipamentos coletivos ganham uma função primordial, pois é ele em si que garante e possibilita socius (associação, identidade, similitude) e, por consequência, o processo de socialização (reprodução dos valores, estilos, relações). Mas também é ele em si que possibilita a fuga, a fissura. Nesses mesmos LUGAR(ES) existem espaços aonde os experimentos não se querem majoritários, mas intensivos. E um autor que nos ajuda a pensar por essa perspectiva é MIchel Foucault com seu texto OUTROS ESPAÇOS. Ali ele discute um conceito que pode nos ajudar muito que é o de heterotopia. Ou seja, lugares e espaços que funcionam em condições não-hegemônicas. Foucault usa o termo heterotopia para descrever espaços que têm múltiplas camadas de significação ou de relações a outros lugares e cuja complexidade não pode ser vista imediatamente.
Nesse sentido, talvez, possamos pensar o LUGAR(ES) não como a totalidade do único, mas, antes, uma totalidade do múltiplo que aí se encontra organizada perfeitamente sob a autoridade do semelhante. Esses espaços outros ou os nos termos do Foucault a “heterotopia”: espaços de crises e de desvios, arranjos concretos de lugares incompatíveis e de um tempo heterogêneos, dispositivo socialmente isolados, mas facilmente “penetráveis”, enfim, máquinas concretas de imaginação que “criam um espaço de ilusão que denuncia como mais ilusórios ainda todo o espaço real, todos os posicionamentos no interior dos quais a vida humana é emparedada”.
Estes espaços outros são político por excelência, pois são espaços dos possíveis, da liberdade enquanto uma prática e até uma técnica. O paradoxo do LUGAR está posto: ele é ao mesmo tempo a totalidade do único e a totalidade do múltiplo. Ele é o controle que contém nele próprio a fuga, entretanto, para haver fuga tem que existir uma prática de instauração da mesma. Ela não é dada a priori, ela é construída por meio da experimentação, da tentativa, do erro. Como para haver o espaço outro é preciso habitar não da maneira do LUGAR que afirma como propriedade ou bem do Estado e da Lei, mas como estrangeiridade limite- que se furta à variação da verdade que não varia-, “corpo imprevisível para qual a casa é antes um modo de existir, uma maneira de habitar, do que Razão a se conservar ou a conservação dos fatos que a exprimem”.
Em termos estamos falando também de um espaço nômade, porém, menos de um nomadismo enquanto deslocamento físico desenfreado pelos LUGAR(ES) e mais um deslocamento de si, de uma certa imagem que o condiciona, que não deixa se aventurar. Pois não conseguiremos habitar esse espaço outro sem desabitar-nos de nós mesmo na qualidade de ser atravessados por forças que modelam em relação ao modelo. Que nos dão um ROSTO. Um rosto-equipamento-cidade-cultura. “Sobrecodifica” e determina seus movimentos e oscilações.
O Rosto. É dele que a cidade retira sua formatação, a regular disposição de seus componentes, o encadeamento “ordenado” de seus fluxos e a administração maquínica da vivência social. Segundo Pedro Dotto “(...) o rosto cria uma névoa de significância mutuamente compartilhada e erige uma moldura de subjetividade na qual as pessoas devem se inserir, acaba por se tornar ‘um verdadeiro porta-voz’ por meio do qual ‘as escolhas se guiam e os elementos se organizam’”.  Isto muito corrobora com o pensamento de Deleuze-Guattari. Eis que eles nos dizem: “o rosto só se produz quando a cabeça deixa de fazer parte do corpo, quando para ser codificada pelo corpo, quando ela mesma para de ter um código corporal plurívoco multidimensional- quando o corpo, incluindo a cabeça, se encontra descodificado e deve ser sobrecodificado por algo que denominaremos Rosto. É o mesmo que dizer a cabeça, que todos os elementos volume-cavidade da cabeça devem ser rostificados”. Portanto, o fato da cidade possuir um Rosto implica uma espécie de assujeitamento (rostificação) das diversas formas do viver e dos variados equipamentos e arranjos sociais sob o jugo da rostidade. Nesses termos, segundo ainda Dotto “o Rosto funciona como um filtro a selecionar as condutas, gestos, afetos – e a significação deles correntes- que se enquadre em código por ele estabelecido e por ele representado. Moldando, ou melhor, sobrecodificando o corpo social à sua própria imagem e aparência”.
Se voltarmos ao primeiro parágrafo desse ensaio começa a fazer ainda mais sentido a diferença entre o experimentar e o experimentado. Dentro dessa lógica dos LUGAR(ES) e do Rosto. Mas como furar ou resistir essa imposição ao MESMO, à reprodução? Eu ainda defendo que é pela experimentação e a arte é um prato cheio para isso. Pois como diz Mario Pedrosa “a arte é o exercício experimental da liberdade”. Desse modo, ela é uma prática, e como prática ela não tem um fim em si, pelo menos esta arte que defendo aqui, ou seja, uma arte enquanto máquina de guerra, portanto, irredutíveis aos aparelhos de dominação e às soberanias hierárquicas. Necessárias à invenção de si. A arte é o que ocorre entre o artista, o que este inventa e os espaços que ambos percorrerem, produzindo efeitos e catalisando forças.
A experimentação, como tão bem pontua Klossowski, é o gênero de atos que se reserva o privilégio de malograr-se, pois revés e êxito se confundem no jogo permanente dos impulsos. O que a experimentação visa não é ao êxito prático de um arranjo que se completa por atingir um fim, mas a manifestação de “estado secretamente que se persegue como um fim que se pretende”. Experimentação, viagem e aprendizagem tornam-se, portanto, inseparáveis.
Mas como Artista Orientador eu também experimento, juntamente com aqueles que do encontro participam, se revelando, de alguma forma, os obstáculos que buscam impedir o desmanche de formas cristalizadas, barrando dos processos e assim mantendo afastada aprendizagem e a experimentação.
Experimentação tem algo a ver com curiosidade, temos que ser curiosos o suficiente para querer experimentar. Ir em direção ao desconhecido. Também tem a entrega, um estar na situação que é diferente ao costume, o desconhecido no que nos parece já tão familiar e comum.  Abandonar o encanto familiar ao qual está demasiado afeiçoado e escutar o processo molecular vital que se opera em cada coisa, é encontrar seu próprio “deserto”. Deserto aqui como algo aberto aos afetos, a invenção que se coagula em outro do não semelhante.
A análise da arte que “cria mundos” ou se quiser, cria espaços possíveis, que constitui e afirma estilos de vida se orienta por critérios que avaliam se esta construção leva ao assujeitamento ou à práticas de liberdade. Em outros termos, se tais construções artísticas funcionam como peça de aparelho de captura, engrenagem de apaziguamento ou como máquina de guerra. E em todo caso também estamos falando de uma certa arte e que se agencia com uma certa pedagogia,  ambas fugindo  do seu estatuto majoritário, para assim, criar na leveza, sem o peso da tradição majoritária que se garante na invenção da tradição como diria o historiador Eric Hobsbawm. 
Enfim, a intenção aqui é pensar a possibilidade do possível no interior dos LUGAR(ES), que se caracterizam na sua forma externa-macro como espaços homogêneo e mensurável. Para isso a necessidade do artista explorador, entendido aqui sem distinção entre as perspectivas que constituem o programa, pois ambos são exploradores, a pergunta que tem que ser feita é o que cada um está explorando, no sentido, de experimentar e explorar o ainda não atualizado. E nenhum lugar, talvez, melhor que o teatro para proporcionar tal coisa. Segundo Jean-Pierre Sarrazac, em A invenção da teatralidade “Se ainda for permitido sonhar com o que está para vir, eu avançaria a hipótese que o teatro é o lugar da invenção dos possíveis; de que os possíveis representam o horizonte utópico no qual se desenham as dramaturgias dos nossos dias. Escrever e fazer teatro é, em larga medida, dar espaço aos possíveis. 'Quer se trate de grupos quer de indivíduos, toda vida humana abre um diálogo contínuo entre aquilo que podia ser e aquilo que é".
Ao pensarmos esses possíveis, talvez, tenhamos que pensar a produção da obra como também a produção do sujeito em público, isto é, o artista que constrói uma subjetividade publica-outra. Ganha aqui uma importância, enquanto resistência, a relação entre AO e Vocacionado, pois eles produzem o “encontro” na relação. Todavia, como o Artista Orientador é ele também o “orientador” ele exerce a função de mediador, contudo, essa mediação tem que ser pensada no quanto de violência ela exerce, pois, pode ser tanto uma violência que paralisa ao ordenar em função do modelo, quanto uma violência que instaura um espaço poético de construção coletiva. O próprio AO assim tendo que driblar algumas mediações e construir outras. Lembro que numa palestra Luis Orlandi trouxe o artista como mediador que apresentava mundos, mas não seu mundo, pois se não seria modelo, mas mundos-outros que poderiam ser habitados, claro, se tivesse aberto a eles.
Para ir finalizando, talvez, pudéssemos traçar um paralelo entre o Artista Orientador, o Coordenador de equipe e a figura Stalker do filme, de Andrei Tarkovski. O filme, aliás, podendo ser um laboratório incrível para pensar a construção desse espaço-outro e sua exploração-experimentação. No filme ele fala da ZONA, eis o que ele diz ser a zona: “A zona é talvez um sistema muito complexo de armadilhas... Eu não sei o que se passa ali na ausência de pessoas, mas é só chegar que tudo começa a se mexer... A zona é exatamente como se tivéssemos criado nós mesmos, como nosso estado de espírito... Não sei o que se passa, isso não depende da zona, isso depende de nós”.  
A zona tem uma característica, ela não está em lugar nenhum, portanto, ela não é fronteira, nem estar de um lado ou de outro, ela é um entre, uma coisa e outra, uma transformação. Para ela existir necessita da figura exploratória. Porém, ela tem outra característica, se ela é transformação e para existir necessita da experimentação dela, ela é singular a cada um. Pois, nunca vai ser a mesma travessia. Se ela só existe, “se algo só acontece na presença de pessoas que chegam ali” isso quer dizer que cada chegada e experimento é uma possibilidade dentro da virtualidade que é ela mesmo. Outra coisa, ela não tem a priori, caminho certo, ele se constrói na travessia, assim como o sentido que cada um dá para ele.
 Nesse sentido, O artista orientador pode ser aproximado à figura do Stalker. Aquele que sabe que a zona existe, que até leva a ela, mas não sabe de antemão o que vai ser vivido ou experimentado. Nem se serve da reprodução do que sabe para explorar, pois cada grupo uma experiência, cada LUGAR(ES) determinação, um engendramento. O saber tem que ser aberto ao aqui-agora. Ao experimento sem utilidade nos moldes capitalista. Ora, nada mais na contramão da sociedade disciplinar, utilitária, funcionalista. A zona assim como aqui- agora requer o atemporal, um tempo-outro que não está em conformidade com o tempo do relógio. A criação é resistência. E a criação aqui como a zona deve ser pensada como uma desarmonia entre a pessoa-obra e a sociedade de ordenamento da vida.

Esse ensaio não está pronto. Ele ainda é um esboço de um ensaio. 

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