Programa
Vocacional - Teatro na Casa de Cultura de Santo Amaro
Iniciei
minha pesquisa artística no programa entre dois grupos e duas
provocações: de um lado, uma aparente estagnação e, de outro, uma
incontornável impermanência. Nos dois grupos me perguntava como
poderia estabelecer um processo criativo que, para mim, dependia
tanto de uma disposição para o inesperado como para a permanência.
Fui tecendo provocações nos encontros, mas via elas se desfiarem
tão logo as trançava... Fui até o cansaço. Ali, parei. Soltei
minhas tralhas no chão e só fiz espiar o tempo.
E o
tempo me espiou com aquele olhar irônico.
Pronto.
Minha
pesquisa.
Meu
chão. Espiar o tempo...
Espiar
o tempo atravessando os corpos. As mentes. Os encontros.
Eram
dois grupos.
Um
de senhoras e um de jovens.
No
primeiro, deixamos escorrer o passado e partimos para a caminhada
quando uma me puxou para dentro da andança dizendo “estamos
cansadas de falar do nosso passado”. Sim. Então vamos... Para
onde?
No
segundo, pelo contrário, onde o ontem se perdia na descontinuidade,
eu só enxergava um tempo mais remoto... Aquele inevitável encontro
marcado entre as gerações, anunciado por Benjamim.
Pois não somos tocados por
um sopro de ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que
escutamos, ecos de vozes que emudeceram? … Se assim é, existe um
encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa
(W. Benjamin)
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Quão
fascinante é espiar um encontro sem hora marcada.
Carollini
já havia passado por nós e deixado uma pista: observar os
invisíveis. Uma abstração? Não. Um instrumento. O binóculo
através do qual podería ver os sinais desse encontro.
Procurei
textos antigos, clássicos, para que no hiato entre dois tempos
pudessemos atravessá-lo.
E,
então, eis que ouço:
“Bem
vinda, velha topeira”
(fala
de Hamlet ao fantasma do pai)
Topeira.
Aquele animal que passeia por baixo da terra, invisível, e que hora
está aqui, hora ali.
O
animal usado por Hegel para descrever o movimento da dialética,
necessária para compreender o que se dá justamente sustentado por
contrários.
Procurar
a dialética em Hamlet, entre a realidade medieval e a perspectiva
moderna, e procurar a nossa, entre nossa realidade de capitalismo
periférico e nossos ideais burgueses e eurocêntricos, entre nossos
conflitos visíveis (nossa sobrevivência) e invisíveis (nossos
fantasmas a exigir justiça). Parecia um caminho.
Mas
embasar o encontro em um clássico? Paro e penso.
Bem,
calma.... O que é “um clássico”?
Para
Hannah Arendt seria um autêntico “objeto cultural”, pois
permaneceu no mundo, suportando um “processo vital”, à despeito
das nossas investidas em funcionalizá-lo ou consumi-lo. Permaneceu
e, assim, logo ouço Benjamim me dizer que “ nunca houve um
monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie
e, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é,
tampouco, o processo de transmissão da cultura”.
Paro.
Um clássico. Escolhido para permanecer como símbolo da cultura
ocidental...
Decido
que não. E logo me aparece de novo Hannah Arendt: “preservar o
passado sem o auxílio da tradição e ao mesmo tempo contra os
modelos de interpretação tradicionais...”. E Benjamim: “escovar
a história à contrapelo...”. Penso em Brecht e vou com Hamlet ao
encontro dos vocacionados.
Antes eu tinha a sensação
que os atores representavam apenas livros e textos e eu não tinha
essa ideia, assim, de que era o cotidiano que eles estavam
apresentando, eu... não sei como eu podia imaginar que eles estavam
apresentando algo que não fosse do cotidiano, sabe? Como eu podia
pensar que aquela pessoa escreveu aquilo apenas da imaginação, mas
que imaginação era aquela que não era o cotidiano, sabe?
(Carla, vocacionada, sobre Shakespeare)
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Com
o outro grupo, de senhoras, a caminhada foi longa e cansativa. E
segue sendo. A cada tentativa de cartografia, a imagem do mapa de
Borges em seu labirinto de espelhos.
...Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito...
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo...
Agora posso esquecê-los. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho...
Cada
um percorrendo seu labirinto de espelhos. Tentando ouvir, ou não
ouvir, aquele que está do outro lado do muro. Com um passado tão
presente é preciso viver o presente, e não o passado, para
experimentar o tempo.
Uma
única pista.
Caminhamos
por improvisos através de canções trazidas por elas, o que foi
tecendo uma linha, uma história de personagens móveis e coros.
Somos um coro de vozes dissonantes, que se perde na tentativa de
encontro com a outra voz e que, de quando em quando, é calado por
uma outra voz... externa, alta, clara, opressora... a voz Bela da Boa
Cultura.
Hora
cedemos à essa voz, hora seguimos no caos.
Permaneço
ali, deixando que o caos se instale. E socorrendo quando a vertigem
causa a queda.
Sugerindo,
silenciosamente, o poema de Leminski:
“Isso
de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar
além”.
Fernanda
Donnabella, artista orientadora – 2015.
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