quarta-feira, 2 de dezembro de 2015


Programa Vocacional - Teatro na Casa de Cultura de Santo Amaro


Iniciei minha pesquisa artística no programa entre dois grupos e duas provocações: de um lado, uma aparente estagnação e, de outro, uma incontornável impermanência. Nos dois grupos me perguntava como poderia estabelecer um processo criativo que, para mim, dependia tanto de uma disposição para o inesperado como para a permanência. Fui tecendo provocações nos encontros, mas via elas se desfiarem tão logo as trançava... Fui até o cansaço. Ali, parei. Soltei minhas tralhas no chão e só fiz espiar o tempo.

E o tempo me espiou com aquele olhar irônico.
Pronto.
Minha pesquisa.
Meu chão. Espiar o tempo...
Espiar o tempo atravessando os corpos. As mentes. Os encontros.

Eram dois grupos.
Um de senhoras e um de jovens.
No primeiro, deixamos escorrer o passado e partimos para a caminhada quando uma me puxou para dentro da andança dizendo “estamos cansadas de falar do nosso passado”. Sim. Então vamos... Para onde?
No segundo, pelo contrário, onde o ontem se perdia na descontinuidade, eu só enxergava um tempo mais remoto... Aquele inevitável encontro marcado entre as gerações, anunciado por Benjamim.

Pois não somos tocados por um sopro de ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? … Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa (W. Benjamin)

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Quão fascinante é espiar um encontro sem hora marcada.

Carollini já havia passado por nós e deixado uma pista: observar os invisíveis. Uma abstração? Não. Um instrumento. O binóculo através do qual podería ver os sinais desse encontro.
Procurei textos antigos, clássicos, para que no hiato entre dois tempos pudessemos atravessá-lo.
E, então, eis que ouço:

Bem vinda, velha topeira”
(fala de Hamlet ao fantasma do pai)

Topeira. Aquele animal que passeia por baixo da terra, invisível, e que hora está aqui, hora ali.
O animal usado por Hegel para descrever o movimento da dialética, necessária para compreender o que se dá justamente sustentado por contrários.

Procurar a dialética em Hamlet, entre a realidade medieval e a perspectiva moderna, e procurar a nossa, entre nossa realidade de capitalismo periférico e nossos ideais burgueses e eurocêntricos, entre nossos conflitos visíveis (nossa sobrevivência) e invisíveis (nossos fantasmas a exigir justiça). Parecia um caminho.

Mas embasar o encontro em um clássico? Paro e penso.
Bem, calma.... O que é “um clássico”?
Para Hannah Arendt seria um autêntico “objeto cultural”, pois permaneceu no mundo, suportando um “processo vital”, à despeito das nossas investidas em funcionalizá-lo ou consumi-lo. Permaneceu e, assim, logo ouço Benjamim me dizer que “ nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie e, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”.
Paro. Um clássico. Escolhido para permanecer como símbolo da cultura ocidental...
Decido que não. E logo me aparece de novo Hannah Arendt: “preservar o passado sem o auxílio da tradição e ao mesmo tempo contra os modelos de interpretação tradicionais...”. E Benjamim: “escovar a história à contrapelo...”. Penso em Brecht e vou com Hamlet ao encontro dos vocacionados.

Antes eu tinha a sensação que os atores representavam apenas livros e textos e eu não tinha essa ideia, assim, de que era o cotidiano que eles estavam apresentando, eu... não sei como eu podia imaginar que eles estavam apresentando algo que não fosse do cotidiano, sabe? Como eu podia pensar que aquela pessoa escreveu aquilo apenas da imaginação, mas que imaginação era aquela que não era o cotidiano, sabe? (Carla, vocacionada, sobre Shakespeare)

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Com o outro grupo, de senhoras, a caminhada foi longa e cansativa. E segue sendo. A cada tentativa de cartografia, a imagem do mapa de Borges em seu labirinto de espelhos.

...Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito...
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo...
Agora posso esquecê-los. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho...


Cada um percorrendo seu labirinto de espelhos. Tentando ouvir, ou não ouvir, aquele que está do outro lado do muro. Com um passado tão presente é preciso viver o presente, e não o passado, para experimentar o tempo.
Uma única pista.
Caminhamos por improvisos através de canções trazidas por elas, o que foi tecendo uma linha, uma história de personagens móveis e coros. Somos um coro de vozes dissonantes, que se perde na tentativa de encontro com a outra voz e que, de quando em quando, é calado por uma outra voz... externa, alta, clara, opressora... a voz Bela da Boa Cultura.
Hora cedemos à essa voz, hora seguimos no caos.
Permaneço ali, deixando que o caos se instale. E socorrendo quando a vertigem causa a queda.
Sugerindo, silenciosamente, o poema de Leminski:
Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além”.


Fernanda Donnabella, artista orientadora – 2015.

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