Ensaio Sem Título (Nov.2014) - Andrea Tedesco - Coordenadora Teatro - Norte 1
Relato Sem Título
(Nov.2014)
Andrea Tedesco
Preciso começar contando uma história que não é minha: quando
eu era aluna, em 2009, da turma de Clown da Bete Dorgam, ela contou uma
história sobre um processo que vivenciou com a Quito. Nesse processo, para a
construção de um determinado espetáculo, o elenco deveria aprender a fazer
origamis. Para isso, o elenco matriculou-se em um curso com uma professora
japonesa. A Bete conta que foi para o curso com uma expectativa de que a aula tivesse
instruções como: recorte assim, agora junte a ponta “A” com a ponta “B”, agora
dobre o lado “H” e assim por diante. Mas ao chegar, constatou que a professora
fazia os origamis, um após o outro, sem nada falar. Ao ser questionada sobre
como iriam aprender sem nenhuma instrução, a professora respondeu “escutem o
papel “, e calou-se novamente.
...
O ano de 2014 foi o primeiro em
que estive atuando na Zona Norte e na coordenação de uma equipe do Programa
Vocacional. A situação, muito nova e desafiadora, só permitia que me colocasse
em estado de escuta para apaziguar qualquer ansiedade, qualquer necessidade
precipitada de ação. Passei a estabelecer, frequentemente, paralelos com o
trabalho do ator (que é meu ofício), seja no momento em que este desenvolve sua
pesquisa artística (processo), seja durante a apresentação de um espetáculo. Nessas
conexões recorria à memória do risco, do impreciso, do imprevisto, do estar em
jogo pronta para o acolhimento do outro. Recorrer à experiências de atriz me sustentou
nessa busca por esse estado de uma atenção diferente, que eu poderia chamar de
atenção cartográfica, segundo Virgínia Kastrup. Segundo ela, “trata-se aqui de
ressaltar que a atenção cartográfica – ao mesmo tempo flutuante, concentrada e
aberta (...) é também um caso de criação do que já estava lá”. Ou ainda poderia
recorrer à ideia de estado de espreita, conforme paralelo feito por Tatiana
Motta Lima entre o ato da caça e o ofício do ator: “Caçar pressupõe uma relação
com a natureza onde a alteridade desta não é, e não pode ser, submetida a um
controle do caçador. Na caçada clássica o caçador se disponibiliza para, no
contato com a floresta, encontrar as pistas que o levarão à caça. Como não pode
controlar estas pistas, seu percurso é feito de adaptações e ajustes e não é um
percurso que possa ser projetado a priori.
Falo de alteridade porque vejo que é na tentativa de assumir o controle, de
realizar um projeto previamente estruturado, que se produz a ‘coisificação’ do
outro, seja ele caça, ou outro homem”.
A pesquisa desenvolvida
na Equipe Norte 1 ao longo de 2014 foi embasada na ação e na prática cotidiana
do encontro com o outro, sem pretensão de solucionar problemas como propõe o conceito de
pesquisa-ação. A pesquisa artística processual da equipe vai ao encontro do
princípio do nomadismo proposto pelo Material Norteador do Programa e, por isso,
vai também na contramão de qualquer
ideia de pesquisa acadêmica. A pesquisa artística é de outra natureza, muitas
vezes é impossível traduzi-la em palavras e sua maior potência pode estar na
experimentação do fato estético. Não há levantamento de hipóteses e o processo
não é reto em direção a algo que se precise provar. Até mesmo a ideia do “recorte” realizado para o
desenvolvimento de uma pesquisa acadêmica transforma-se em algo multifacetado quando
dentro do Vocacional: essas facetas variam de região para região, de
equipamento para equipamento, de turma para turma, de linguagem para linguagem,
e estão sempre em relação e mudança. Essa agilidade e esse movimento nômade
exigem que estejamos todos dentro do jogo, sem diferenciação entre sujeito e
objeto a ser estudado. Todos somos sujeitos.
A partir disso, penso qual seria o melhor formato para este
ensaio, que conseguisse dialogar com esse estado de atenção e que fosse a
tradução desses processos artísticos pedagógicos. Qual seria a forma guardada
nesse conteúdo? Penso na literatura, na
poesia e em suas lacunas. Sim, gostaria de imprimir mais silêncios do que
certezas, gostaria de sugerir apenas, e solicitar a escuta atenta de tudo que
ficará por escrever.
...
“Como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é
pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A
realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, ao mesmo
tempo, nada é assim tão complexo), a experiência humana. Nesse sentido, pode-se
dizer que Dante ou Cervantes nos ensinam tanto sobre a condição humana quanto
os maiores sociólogos e psicólogos e que não há incompatibilidade entre o
primeiro saber e o segundo. O Idiota, de Dostoievski, pode ser lido e
compreendido por inúmeros leitores, provenientes de épocas e culturas muito
diferentes; um comentário filosófico sobre o mesmo romance ou mesma temática
seria acessível apenas à minoria habituada a frequentar esse tipo de texto.
Entretanto, para aqueles que o compreendem, os propósitos dos filósofos têm a
vantagem de apresentar proposições inequívocas, ao passo que as metáforas do
poeta e as peripécias vividas pelas personagens do romance ensejam múltiplas
interpretações.” (Tzvetan Todorov em A literatura em Perigo)
Uso a literatura e a poesia como exemplos para falar de
arte, para falar de arte dentro do Programa Vocacional. A chegada do Material
Norteador em 2011 foi um marco importante para este programa de características
tão singulares, sendo importante até hoje como baliza de uma prática
artístico-pedagógica que vai na contramão do modelo social e espetacular
vigente. Por outro lado, parece que (apesar da liberdade proposta por esse
material) ele também é marco de um período mais conceitual, ou acadêmico, do
programa, o que pode significar, em alguns casos, um distanciamento ou uma dificuldade
para mergulhar nos processo artísticos.
Muito paradoxal, a situação pode ser constatada na prática
com o recorrente questionamento do material por parte dos artistas orientadores.
Tais questões, que não se apresentavam anteriormente, variam do âmbito do ”essa
prática é permitida ou não?” ao campo da exegese de palavras, termos e conceitos.
Não há a priori incompatibilidade
entre um universo e outro (da arte e da academia, da teoria e da prática); pelo
contrário, um pode potencializar o outro, alimentar a outro. O que não pode
acontecer é um atravessar o outro, ou se impor em momentos processuais
inadequados. E aqui vamos descobrir que o problema não é o Material Norteador,
mas a dificuldade estrutural do programa em dar conta da complexidade de suas
proposições e potencialidades.
Muitas vezes nos sentimos esquizofrenicamente divididos e
operando numa dualidade simplista, transferindo para o processo artístico a
angústia por essa falta de encaixe do Programa dentro da Secretaria Municipal
de Cultura (SMC). Exatamente por não ser possível separar uma instância da
outra, a artístico/pedagógica da institucional/estrutural.
Me pergunto se seria possível tentar não confundir as coisas,
saber localizar, rastrear minimamente os problemas para preservar o trabalho na
ponta. Mas, por outro lado, preservar o trabalho na ponta seria o bastante? Ou isso
pode significar uma acomodação na precariedade?
Comecei o texto falando sobre a necessidade da escuta e da
abertura para a alteridade. Penso ser impossível não traçar o paralelo com a
relação que a SMC estabelece com os seus artistas contratados e programas por
ela criados e abrigados. Com falta de verba e de pessoal, e engessada por entraves
burocráticos, a SMC tenta, com pouco ou nenhum sucesso, avançar no diálogo com
artistas e programas artísticos, cujas singularidades acabam sendo
desconsideradas.
Muitos grupos de trabalho foram criados, ao longo deste ano,
dentro do Programa. Os estudos realizados por esses grupos propõem novos olhares
e alternativas de ação que dialogam com a proposta de integração da Secretaria,
por meio do tripé programação cultural, cidadania cultural e formação cultural.
Dentre esses grupos, gostaria de destacar o Vocacional Memória, que busca
historicizar a trajetória do programa ao longo dos seus anos de existência. O
grupo destaca a importância do momento no qual o Vocacional foi criado, não como
um programa isolado, mas fazendo parte de uma política maior, juntamente com os
Programas Formação de Público e Ocupação dos Teatros Distritais. E também,
nessa mesma direção, há que se destacar as ações do grupo de artistas
orientadores que se debruçou sobre a relação entre os teatros distritais, o vocacional
e a comunidade local.
Posto tudo isso, gostaria de terminar este depoimento – e este
ciclo – esperando ser cada vez mais artista nas questões políticas e cada vez
mais politizada nas questões artísticas, tentando lutar sem perder a essência
de um olhar que não pode ser adormecido. Escolho, então, encerrar o ano
renovando a esperança naquilo que chamo de guerrilha homeopática e,
oportunamente, citando o Caráter Destrutivo de Benjamin:
“O caráter destrutivo
não vê nada de duradouro. Mas eis precisamente porque vê caminhos por toda
parte. Onde outros esbarram em muros ou montanhas, também aí ele vê um caminho.
Já que o vê por toda a parte, tem de desobstruí-lo também por toda a parte. Nem
sempre com brutalidade, às vezes com refinamento. Já que vê caminhos por toda
parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum momento é capaz de saber o que o
próximo traz. O que existe ele converte em ruínas, mas por causa do caminho que
passa através delas. O caráter destrutivo não vive do sentimento de que a vida
vale ser vivida, mas de que o suicídio não vale a pena.”
Referências
bibliográficas:
Benjamin, Walter. O Caráter Distrutivo. Frankfurter Zeitung
(20 de novembro de 1931).
Kastrup, Virgínia. O Funcionamento da Atenção no Trabalho do
Cartógrafo. Psicologia e Sociedade no. 19 (15-22). UFRJ. Rio de Janeiro. 2007.
Motta Lima, Tatiana. Em busca (e à espreita) de uma
pedagogia para o ator. XV CONFAEB – Congresso Nacional da Federação de Arte Educadores
do Brasil.
Todorov, Tzvetan. A Literatura em Perigo. Rio de Janeiro.
DIFEL, 2014.
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