terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Ensaio Sem Título (Nov.2014) - Andrea Tedesco - Coordenadora Teatro - Norte 1

Relato Sem Título (Nov.2014)
 Andrea Tedesco

Preciso começar contando uma história que não é minha: quando eu era aluna, em 2009, da turma de Clown da Bete Dorgam, ela contou uma história sobre um processo que vivenciou com a Quito. Nesse processo, para a construção de um determinado espetáculo, o elenco deveria aprender a fazer origamis. Para isso, o elenco matriculou-se em um curso com uma professora japonesa. A Bete conta que foi para o curso com uma expectativa de que a aula tivesse instruções como: recorte assim, agora junte a ponta “A” com a ponta “B”, agora dobre o lado “H” e assim por diante. Mas ao chegar, constatou que a professora fazia os origamis, um após o outro, sem nada falar. Ao ser questionada sobre como iriam aprender sem nenhuma instrução, a professora respondeu “escutem o papel “, e calou-se novamente.
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O ano de 2014 foi o primeiro em que estive atuando na Zona Norte e na coordenação de uma equipe do Programa Vocacional. A situação, muito nova e desafiadora, só permitia que me colocasse em estado de escuta para apaziguar qualquer ansiedade, qualquer necessidade precipitada de ação. Passei a estabelecer, frequentemente, paralelos com o trabalho do ator (que é meu ofício), seja no momento em que este desenvolve sua pesquisa artística (processo), seja durante a apresentação de um espetáculo. Nessas conexões recorria à memória do risco, do impreciso, do imprevisto, do estar em jogo pronta para o acolhimento do outro. Recorrer à experiências de atriz me sustentou nessa busca por esse estado de uma atenção diferente, que eu poderia chamar de atenção cartográfica, segundo Virgínia Kastrup. Segundo ela, “trata-se aqui de ressaltar que a atenção cartográfica – ao mesmo tempo flutuante, concentrada e aberta (...) é também um caso de criação do que já estava lá”. Ou ainda poderia recorrer à ideia de estado de espreita, conforme paralelo feito por Tatiana Motta Lima entre o ato da caça e o ofício do ator: “Caçar pressupõe uma relação com a natureza onde a alteridade desta não é, e não pode ser, submetida a um controle do caçador. Na caçada clássica o caçador se disponibiliza para, no contato com a floresta, encontrar as pistas que o levarão à caça. Como não pode controlar estas pistas, seu percurso é feito de adaptações e ajustes e não é um percurso que possa ser projetado a priori. Falo de alteridade porque vejo que é na tentativa de assumir o controle, de realizar um projeto previamente estruturado, que se produz a ‘coisificação’ do outro, seja ele caça, ou outro homem”.
 A pesquisa desenvolvida na Equipe Norte 1 ao longo de 2014 foi embasada na ação e na prática cotidiana do encontro com o outro, sem pretensão de solucionar  problemas como propõe o conceito de pesquisa-ação. A pesquisa artística processual da equipe vai ao encontro do princípio do nomadismo proposto pelo Material Norteador do Programa e, por isso, vai  também na contramão de qualquer ideia de pesquisa acadêmica. A pesquisa artística é de outra natureza, muitas vezes é impossível traduzi-la em palavras e sua maior potência pode estar na experimentação do fato estético. Não há levantamento de hipóteses e o processo não é reto em direção a algo que se precise provar.  Até mesmo a ideia do “recorte” realizado para o desenvolvimento de uma pesquisa acadêmica transforma-se em algo multifacetado quando dentro do Vocacional: essas facetas variam de região para região, de equipamento para equipamento, de turma para turma, de linguagem para linguagem, e estão sempre em relação e mudança. Essa agilidade e esse movimento nômade exigem que estejamos todos dentro do jogo, sem diferenciação entre sujeito e objeto a ser estudado. Todos somos sujeitos.
A partir disso, penso qual seria o melhor formato para este ensaio, que conseguisse dialogar com esse estado de atenção e que fosse a tradução desses processos artísticos pedagógicos. Qual seria a forma guardada nesse conteúdo?  Penso na literatura, na poesia e em suas lacunas. Sim, gostaria de imprimir mais silêncios do que certezas, gostaria de sugerir apenas, e solicitar a escuta atenta de tudo que ficará por escrever.
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“Como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, ao mesmo tempo, nada é assim tão complexo), a experiência humana. Nesse sentido, pode-se dizer que Dante ou Cervantes nos ensinam tanto sobre a condição humana quanto os maiores sociólogos e psicólogos e que não há incompatibilidade entre o primeiro saber e o segundo. O Idiota, de Dostoievski, pode ser lido e compreendido por inúmeros leitores, provenientes de épocas e culturas muito diferentes; um comentário filosófico sobre o mesmo romance ou mesma temática seria acessível apenas à minoria habituada a frequentar esse tipo de texto. Entretanto, para aqueles que o compreendem, os propósitos dos filósofos têm a vantagem de apresentar proposições inequívocas, ao passo que as metáforas do poeta e as peripécias vividas pelas personagens do romance ensejam múltiplas interpretações.” (Tzvetan Todorov em A literatura em Perigo)
Uso a literatura e a poesia como exemplos para falar de arte, para falar de arte dentro do Programa Vocacional. A chegada do Material Norteador em 2011 foi um marco importante para este programa de características tão singulares, sendo importante até hoje como baliza de uma prática artístico-pedagógica que vai na contramão do modelo social e espetacular vigente. Por outro lado, parece que (apesar da liberdade proposta por esse material) ele também é marco de um período mais conceitual, ou acadêmico, do programa, o que pode significar, em alguns casos, um distanciamento ou uma dificuldade para mergulhar nos processo artísticos.
Muito paradoxal, a situação pode ser constatada na prática com o recorrente questionamento do material por parte dos artistas orientadores. Tais questões, que não se apresentavam anteriormente, variam do âmbito do ”essa prática é permitida ou não?” ao campo da exegese de palavras, termos e conceitos. Não há a priori incompatibilidade entre um universo e outro (da arte e da academia, da teoria e da prática); pelo contrário, um pode potencializar o outro, alimentar a outro. O que não pode acontecer é um atravessar o outro, ou se impor em momentos processuais inadequados. E aqui vamos descobrir que o problema não é o Material Norteador, mas a dificuldade estrutural do programa em dar conta da complexidade de suas proposições e potencialidades.


Muitas vezes nos sentimos esquizofrenicamente divididos e operando numa dualidade simplista, transferindo para o processo artístico a angústia por essa falta de encaixe do Programa dentro da Secretaria Municipal de Cultura (SMC). Exatamente por não ser possível separar uma instância da outra, a artístico/pedagógica da institucional/estrutural.
Me pergunto se seria possível tentar não confundir as coisas, saber localizar, rastrear minimamente os problemas para preservar o trabalho na ponta. Mas, por outro lado, preservar o trabalho na ponta seria o bastante? Ou isso pode significar uma acomodação na precariedade?
Comecei o texto falando sobre a necessidade da escuta e da abertura para a alteridade. Penso ser impossível não traçar o paralelo com a relação que a SMC estabelece com os seus artistas contratados e programas por ela criados e abrigados. Com falta de verba e de pessoal, e engessada por entraves burocráticos, a SMC tenta, com pouco ou nenhum sucesso, avançar no diálogo com artistas e programas artísticos, cujas singularidades acabam sendo desconsideradas.
Muitos grupos de trabalho foram criados, ao longo deste ano, dentro do Programa. Os estudos realizados por esses grupos propõem novos olhares e alternativas de ação que dialogam com a proposta de integração da Secretaria, por meio do tripé programação cultural, cidadania cultural e formação cultural. Dentre esses grupos, gostaria de destacar o Vocacional Memória, que busca historicizar a trajetória do programa ao longo dos seus anos de existência. O grupo destaca a importância do momento no qual o Vocacional foi criado, não como um programa isolado, mas fazendo parte de uma política maior, juntamente com os Programas Formação de Público e Ocupação dos Teatros Distritais. E também, nessa mesma direção, há que se destacar as ações do grupo de artistas orientadores que se debruçou sobre a relação entre os teatros distritais, o vocacional e a comunidade local.
Posto tudo isso, gostaria de terminar este depoimento – e este ciclo – esperando ser cada vez mais artista nas questões políticas e cada vez mais politizada nas questões artísticas, tentando lutar sem perder a essência de um olhar que não pode ser adormecido. Escolho, então, encerrar o ano renovando a esperança naquilo que chamo de guerrilha homeopática e, oportunamente, citando o Caráter Destrutivo de Benjamin:
“O caráter  destrutivo não vê nada de duradouro. Mas eis precisamente porque vê caminhos por toda parte. Onde outros esbarram em muros ou montanhas, também aí ele vê um caminho. Já que o vê por toda a parte, tem de desobstruí-lo também por toda a parte. Nem sempre com brutalidade, às vezes com refinamento. Já que vê caminhos por toda parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum momento é capaz de saber o que o próximo traz. O que existe ele converte em ruínas, mas por causa do caminho que passa através delas. O caráter destrutivo não vive do sentimento de que a vida vale ser vivida, mas de que o suicídio não vale a pena.”


Referências bibliográficas:
Benjamin, Walter. O Caráter Distrutivo. Frankfurter Zeitung (20 de novembro de 1931).
Kastrup, Virgínia. O Funcionamento da Atenção no Trabalho do Cartógrafo. Psicologia e Sociedade no. 19 (15-22). UFRJ. Rio de Janeiro. 2007.
Motta Lima, Tatiana. Em busca (e à espreita) de uma pedagogia para o ator. XV CONFAEB – Congresso Nacional da Federação de Arte Educadores do Brasil.
Todorov, Tzvetan. A Literatura em Perigo. Rio de Janeiro. DIFEL, 2014.





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