quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Escrita à deriva II: paisagens do Programa Vocacional Luiz Claudio Cândido (in construção)

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Passo zero: De repente, salta de dentro de um livro palavras que juntas se agarram ao meu corpo. Elas dançam em mim como em um assalto, em um ato violento, e faz com que, momentaneamente, o tempo se eternize. Danço com estas palavras envoltas em mim até me deparar diante de um enorme despertador que me sacude e diz: “O ensaio não é a articulação de um pensamento apenas, mas de um pensamento como ponta de lança de uma existência empenhada. O ensaio vibra com a tensão daquela luta entre pensamento e vida, e entre vida e morte que Unamuno chamava de 'agonia'. Por isso, o ensaio não resolve, como o faz o tratado, o seu assunto. Não explica o seu assunto, e neste sentido não informa aos seus leitores. Pelo contrário, transforma o seu assunto em enigma. Implica­-se no assunto, e implica nele seus leitores. Este é o seu atrativo.” Eis­-me aqui, disposto a (me) ensaiar. Ponho­me à deriva no ato da escrita que será tecida por meio do meu caminhar, deslocar por algumas paisagens do Programa Vocacional.

Primeira paisagem, de onde parto, foco aberto, o Programa Vocacional: 

O Programa Vocacional é constituído, atualmente, por 5 projetos distintos, a saber, Vocacional Teatro, Vocacional Dança, Vocacional Música, Vocacional Artes Visuais e Vocacional Artes Integradas. Embora sejam todos regidos pelo material norteador cada um destes projetos, de acordo com seu contexto e experiências históricas, tem uma lida sui generis com este, eclodindo em cada um deles um processo de sigularização. Tal processo de singularização gera uma multiplicidade de olhares sobre o Programa Vocacional, que passa a ser visto não como um todo homogêneo, mas sim heterogêneo, composto por perspectivas distintas que ora são consonantes ora dissonantes entre si. De braços dados com Deleuze e Guattari, atribuirei ao Programa Vocacional o epíteto de esquizofrênico que, sob a minha perspectiva de andarilho, de flaneur, não há conotação negativa alguma, porque "O esquizofrênico se mantém no limite do capitalismo: ele é a tendência desenvolvida, o subproduto, o proletário e o anjo exterminador. Ele embaralha todos os códigos e carrega os fluxos decodificados do desejo. O real flui.Os dois aspectos do processo se reúnem: o processo metafísico que nos põe em contato com o 'demoníaco' na natureza ou no coração da terra, o processo histórico da produção social que restitui às máquinas desejantes uma autonomia em relação à máquina social desterritorializada2”. Neste meu perpassar por esta primeira paisagem observei que os artistas (coordenadores e AOs) reagem diferentemente diante da esquizofrenia. Assim, a mesmíssima frase, com construção gramatical idêntica, que muitas vezes circula em conversas, reflexões, etc., a saber, “O Programa Vocacional é esquizofrênico'', possui sentidos completamente distintos para uns e para outros. A partir desta minha observação e para conseguir alinhavar meus escritos vagueantes se fez necessário para mim criar uma tipologia, momentânea, inconclusa, somente com a intenção de conseguir compartilhar o que vejo neste deslocamento: dois tipo, o primeiro corresponde àquele que vê a esquizofrenia como reativa e o segundo como afirmativa. Se, em uma licença poética, pudéssemos antropomorfizar o Programa Vocacional de sua boca seria proferida uma multiplicidade de discursos diferentes e, às vezes, divergentes entre si. Esta boca ''Torre de Babel contemporânea'', na qual ''cada um diz uma coisa'', gera um incômodo para o primeiro tipo porque cada um dizer uma coisa é um problema, para ele. É necessário intervir para que haja uma unidade discursiva, identitária: aqui a diferença é vista quase sempre como negativa, o mal, e pretende-­se a sua supressão (ou confinamento). Para ele a esquizofrenia é vista, metaforicamente, como uma patologia, um desvio da normalidade, deve ser diagnosticada, tratada, remediada. Em geral, este tipo busca a afirmação cada vez maior da identidade/essência de cada linguagem/projeto, mas será que esta tentativa de preservação da identidade não acaba gerando um isolamento excludente ou uma ''xenofobia'', evitando o contato com os demais projetos, que são vistos sob as lentes sartreana como ''o inferno são os outros''? O ''outro'' aqui não seria visto como um ''perigo'' à manutenção desta identidade? Um argumento corrente para este tipo é a defesa da objetividade e pragmatismo, ou seja, se não houvesse tanta discussão, em virtude das múltiplas vozes que se manifestam, seríamos mais eficientes. Então, calar as vozes dissonantes ou ao menos minimizá-­las ao quase silêncio, de maneira sutil ou explícita, é um ponto fundamental da estratégia de atuação. Primam pela síntese e vivem em busca de um líder, um pastor, alguém que os guie. Para o segundo tipo, que podemos chamar de não ­reativos, a polifonia discursiva, as várias perspectivas concomitantes, não geram um mal estar, um incômodo, mas ao contrário fomenta o embate de ideias. Sendo assim, não busca a supressão de vozes dissonantes, mas o embate entre elas, o embate das ideias. A esquizofrenia aqui tende a ser vista como algo potencializador porque busca agenciar múltiplos pontos de vistas, criando sentidos às vezes inusuais. Nestes casos os processos de subjetivação são mais evidentes, não se tem o foco absoluto na objetividade, nem descamba para uma subjetividade absoluta, mas trafega entre os dois. O ato de pensar, discutir, refletir, colocar em xeque o senso comum parece ser uma atitude deste tipo que tende a buscar um maior diálogo entre os projetos e linguagens artísticas e as fronteiras entre elas tornam-­se mais tênues. Buscam enveredar pela seara da experimentação, do risco, do impossível. Para eles a heterogeneidade não é um problema, assim como a noção de identidade perde seu sentido, uma vez que não se pensa em um ''eu fixo'', mas um ''eu em constante transformação'', sendo reinventado a cada encontro, embora guarde uma tendência de si. Primam pelo transbordamento e não buscam um salvador, um líder ­ talvez, lideranças móveis, temporárias, que não se cristalizam em uma única figura. Evidentemente que estes dois tipos são extremos de uma reta que possui um leque de inúmeras nuances entre eles.

Segunda paisagem, fechando um pouco mais o foco, o Projeto Vocacional Teatro:

Adentro agora a paisagem dos coordenadores do Vocacional Teatro, que se encontram semanalmente na galeria Olido. Ela é composta por dez coordenadores artístico-­pedagógicos de equipes, cada um atua em uma microrregião da cidade, e um coordenador de Projeto com pensamentos e perspectivas distintos em relação ao Programa Vocacional. Em outras palavras, se levarmos em consideração somente os coordenadores do Projeto Vocacional Teatro este não é um todo homogêneo, um coro uníssono de vozes e pensamentos em comum. Além disso, nele a tipologia descrita acima permanece e os dois tipos coexistem lado a lado. Qualquer tentativa de homogenização esta fadada a generalização, muitas vezes realizada às custas da necessidade de síntese e representatividade, que acaba por abafar, desprezar outras vozes que coexistem no mesmo projeto. Mas por que embora seja heterogêneo haja uma persistência em se afirmar uma homogeneidade? A quem interessa que o Projeto Vocacional Teatro seja visto como homogêneo? Será que a função coordenador de projeto, cativa do conceito de representação, consegue ''representar a voz'' dos coordenadores de equipe e,
consequentemente, do Projeto Vocacional Teatro? As reflexões sobre os processos criativos instaurados nas orientações aos artistas vocacionados não conseguem adentrar esta paisagem e nem tampouco os processos de investigação das equipes. Em geral, aqui nos deparamos com informes e demandas institucionais, reclamações sobre a estrutura do Programa Vocacional e estratégias de mudança da mesma. Embora sejamos regidos pelo material norteador há uma tensão entre este e a prática encontrada aqui: a ignorância não é bem vinda e avançamos, pouco a pouco, rumo a um pragmatismo, calcado na eficiência e objetividade.
Pude observar a presença de um discurso nesta coletividade que afirma a grande dificuldade desta em se relacionar com os demais projetos do Programa Vocacional. Pergunto-­me: será que ela não está criando uma situação de falta de abertura ao diálogo, um fechamento, claustrofóbico, em si mesmo? Será que os 13 anos de existência do Projeto Vocacional Teatro, nascedouro do Programa Vocacional, se tornou um fardo por demais pesado e a vasta acumulação de experiência no campo artístico-pedagógico, bastante alinhado com as proposições do retorno do teatro de grupo de meados da década de 1990, não foram potentes o sufientes para escapar de uma cristalização deste projeto, que beira a insularidade ou autismo, nos momentos mais agudos? Embora nesta coletividade dos coordenadores do Vocacional Teatro sejam tecidos olhares bastante críticos em relação aos demais projetos, falta-­lhe fôlego para lançar olhares para simesmo e problematizar suas escolhas e atitudes e apontar suas contradições/incoerências.

Paisagens periféricas, fechando ainda mais o foco, a equipe leste 3/Vocacional Teatro:

Aqui espacialmente saímos do centro, da galeria Olido, onde são realizados os encontros das paisagens anteriormente descritas e rumamos para a periferia da cidade: nossas reuniões de pesquisa­-ação, vulgo, reunião de equipe, são realizadas, semanalmente, no extremo leste, em Guaianases, no CEU Jambeiro. Na equipe leste 3/Vocacional Teatro, sob minha coordenação, também reina a mesma heterogeneidade presente nas coletividades anteriores e os mesmos tipos supracitados: os AOs tem experiências distintas no Programa Vocacional e cada um tem uma relação com nossas reuniões de pesquisa-­ação.
Nesta paisagem encontrei uma palavra/­temática recorrente que, pelas inquietações que suscitava na coletividade que a compunha, assumiu os contornos de ''pesquisa da equipe'', a saber, interferência. O que seria ''interferência'' para esta coletividade? Longe de uma precisão conceitual definida a priori e perseguida ''checklisticamente'' a posteriori, o sentido da interferência foi se construindo, paulatinamente, ao longo dos processos criativos orientados e da dinâmica organizacional (e processual) da equipe. Como ponto de partida inicial a ''interferência'' pode ser vista como um desdobramento de uma investigação realizada pela equipe Leste 3/Vocacional Teatro, de 2013, sobre a relação entre sistema aberto e a prática de orientação (na esfera micro) e a estrutura do Programa Vocacional (naesfera macro). Fazendo uso de um imaginário da informática se pensou os artistas vocacionados como co­programadores do ''Programa'' Vocacional que, diferentemente do sistema operacional Windowns, comportaria a criação de várias versões porque teria ''os códigos abertos'' e, portanto, passíveis de reprogramação. Em 2014, com uma ''nova equipe'' esta ''pesquisa'' sofreu uma mudança porque deveria ser levado em consideração o olhar dos novos integrantes. Desta tensão entre continuidade e início, paradoxo que o Programa Vocacional vive ano após ano (ao mesmo tempo é continuidade e início, numa junção de opostos aparentemente excludente – no senso comum ou algo está iniciando ou está em continuidade), da necessidade de abertura de diálogo, do compartilhamento de um saber construído a partir de uma experiência daqueles que permaneciam na equipe leste 3, do(s) ano(s) anterior(es), aliada as novas perspectivas possíveis, oriundas dos novos integrantes da equipe 3 a ideia de ''interferência'' surgiu. Arrisco-­me a inferir que a investigação sobre a ''interferência'' teve dois pontos distintos durante a trajetória da equipe leste 3, que muitas vezes se imbricaram um no outro: 1) endógena ­ a potencialização da troca entre os integrantes de uma coletividade, possibilitando tanto a descentralização do poder quanto o deslocamento por perspectivas distintas – o que provocou a tessitura de planejamentos dos encontros de orientação/coordenação porosos, que comportassem o aqui ­agora processual, inexoravelmente e 2) exógena ­ o intercâmbio entre coletividades distintas, com práticas e estéticas singulares, visando a complexificação da percepção sobre as mesmas e a prática de devorar e ser devorado, num ato artístico-pedagógico antropofágico.
Sob minhas lentes de caminhante, considero que uma prática instaurada nesta paisagem poderia também ser considerada interferência: a visita às orientações entre os AOs da equipe (e, em alguns casos, de outras equipes e de outras linguagens). Nestas visitas o AO tinha a possibilidade de acompanhar a orientação de outro AO, vê-­lo no ato da criação da orientação, in locus, em um outro contexto e, com isso, conseguia lançar olhares para sua prática e do outro, num processo de alteridade: não se buscava valorar, mas encontrar as diferenças entre as práticas artístico-­pedagógicas. Ao lançar olhares para a prática do outro, o olhar do AO podia expandir e retornar para a sua, num movimento de mão dupla. Quais são as questões que este AO formula ao realizar esta visita tanto para si quanto para o outro? Além disso, neste momento de visita entre AOs a aproximação entre eles, a possibilidade de trocas para além daquelas realizadas nas reuniões de equipe, tenderam a fortalecer os laços da parceria e as reflexões artístico-­pedagógicas sobre os processos criativos em andamento, elaboração de possíveis ações futuras, etc. Em algumas destas visitas o coordenador da equipe foi/esteve junto com o AO visitante e no momento da conversa sobre a orientação ambos podiam cotejar suas observações, ampliando as perspectivas. Como foi dito acima estas visitas não se restringiram somente entre os AOs da equipe Leste 3/Vocacional Teatro, mas aos AOs de outros projetos do Programa Vocacional4. Se há uma dificuldade de abertura no Projeto Vocacional Teatro, na paisagem dos coordenadores, o mesmo não podemos afirmar em relação aos AOs do Vocacional Teatro/Leste 3: nos equipamentos eles tendem a estabelecer um diálogo maior entre os projetos do Programa Vocacional, desde que seja uma necessidade dos processos criativos
orientados. Pude observar que esta troca entre os AOs do Programa Vocacional fomenta o trânsito dos artistas vocacionados pelos projetos que atuam em um mesmo equipamento e também a ampliação do olhar deles sobre o seu processo criativo, meios e modos de produção. Estas parcerias fomentam também ao AO e coordenador de equipe a percepção das singularidades de cada Projeto do Programa Vocacional e, consequentemente, a abertura dos canais de comunicação entre eles.
Nesta minha passagem por esta paisagem pude ver que, grosso modo, nos encontros semanais com a equipe Leste 3/Vocacional Teatro se buscou a instauração de uma dinâmica de feitura de ensaios para refletir sobre as orientações dos processos criativos dos artistas vocacionados e as práticas artístico­pedagógicas. Para isso, foi adotado como um dos procedimentos que alimentou os encontros semanais a materialização em algum suporte (textual, videográfico, cênico, fotográfico, performativo, verbal, etc) das experiências que os processos criativos emancipatórios geram. Nesta coletividade o ensaio não se pretendeu ser um ponto final, uma ''resposta'', uma ''solução'', a conclusão de uma investigação, mas um tatear sobre a experiência de orientação, uma possibilidade de enveredar pela tentativa de coletivização de uma experiência singular, um entre, um meio para que o pensamento escape da fixadez, do senso comum, da perspectiva única, superficial: foi uma tentativa de experimentação do pensamento, do pensar e se pensar. Ele não se pretendeu somente à produção de uma materialidade, mas a instauração de uma atitude ensaística: como se lançar nas orientações/coordenações no desconhecido, na experimentação do rabiscar, riscar, escrever, apagar, reescrever, rasurar, voltar a escrever, voltar a rasurar e apagar e escrever novamente e assim sucessivamente e ad infinitum? De braços dados com esta ''atitude ensaística'' se fomentou uma fala do AO não constrangida nem à eficiência, ao acerto, ao preciso, ao objetivo (e nem a fala ''burocrática'' ou de ''lamentação''), mas sim prenhe de ''posicionamento/atitude'' artístico, pedagógico e político, de artistas pesquisadores, investigadores de uma prática que refuta a relação professor­-aluno nos moldes de uma pedagogia tradicional (ou, mais radicalmente ainda, que refuta uma prática
de ''formação'' dos artistas vocacionados). Com isso, a reunião de pesquisa­-ação não foi vista como um espaço de solução, mas de fomento de problemas, que assumem para si contornos artístico­pedagógicos: alimentados pelas proposições do mestre ignorante, a partir da obra de Jacques Ranciere, ela não foi um espaço para ‘’clarificar’’, ‘’iluminar’’, para que o coordenador de equipe ''ensine'' o AO, mas sim para que pensem coletivamente os problemas, para lançar olhares sobre o que ambos desconhecem, ignoram. Ela se propôs uma zona de interferências, de fluxo que comporta o ir e vir das questões da Equipe e das orientações, de lá para cá e de cá para lá, num movimento ininterrupto, e de contaminação mútua, esquizofrênica, dos artistas orientadores que perdem sua identidade fixa e se deixam “ser muitos” no ato de sua orientação ao ‘ouvir outras vozes’ que o compõe – vozes estas que foram ouvidas durante as reuniões de pesquisa-­ação a partir dos estudos e reflexões sobre os processos criativos em andamento. Com esta ''prática ensaística'' pudemos observar que ao lançarmos olhares para um ensaio que prima pela singularidade do processo vivenciado por um AO/coordenador específico, acabávamos lançando olhares para as demais orientações: olhar para o outro se desdobrou em olhar para si, em um processo de alteridade. Assim, as interferências poderiam se dar em um plano mais epidérmico, embora sutil: ao se deparar com um ensaio­performático, como foi o da AO Lívia Piccolo, um AO que apresentou um ensaio ''menos performático'' podia rever sua forma de apresentação e se problematizar (e vice-­e­-versa), por exemplo. Longe de critérios de certo ou errado, melhor ou pior, o contato com o outro, com o diferente, fez com que um ''movimento autorreflexivo'' se instaurasse. E, paulatinamente, um ensaio ''apresentado'' por um AO acabou sendo desdobrado no ensaio subsequente ''apresentado'' por um outro AO, por exemplo, a multifocalidade/polifonia do ensaio do AO Herbert Henrique, desdobrou-­se no ensaio ''nuvem de tags/construção de uma rede aberta'' do AO Leandro Hoehne. Um outro caminho aberto, concomitantemente, se deu por meio do ensaio-­procedimento-­visita dos artistas vocacionados do CEU Jambeiro à reunião de equipe da leste 3/Vocacional Teatro, proposto pelo AO Danilo Caputto, que se desdobrou tanto nos procedimentos criativos das coletividades orientadas na BP Cora Coralina (AO Priscila Carbone) e na CC Raul Seixas (AO Lívia Piccolo), quanto na presença dos artistas vocacionados em nossas reuniões de equipe para a construção da ação­interferência-­festa na qual estariam presentes todas as coletividades orientadas pela nossa equipe (realizada no dia 02/11/2014, no CC Raul Seixas, da qual falarei um pouco mais a frente).
Finda a etapa de ''apresentações dos ensaios'' a escolha feita por esta coletividade não foi a feitura de ''novos ensaios'' mas sim potencializar as investigações sobre a interferência ''em campo'', na prática propriamente dita, diretamente com os artistas vocacionados, ou seja, investigar como se daria a interferência entre os coletivos orientados. Neste momento foram intensificadas as trocas entre as turmas: 1) BP Cora Coralina, CEU Jambeiro e CC Raul Seixas, 2) CEU Jambeiro e CEU Inácio Monteiro, 3) CEU Água Azul e CEU Lajeado. (Antecedendo este momento, tivemos uma troca ''prática'' entre a BP Cora Coralina e a CC Raul Seixas e outra entre estes para assistirem ao filme­documentário sobre a Pina Baush, dirigido por Win Wenders). Este ''outro'' momento de investigação sobre a interferência (exógena), agora entre os artistas vocacionados, desencadeou dois encontros­interferências no qual tivemos a presença de todos os coletivos orientados pela equipe Leste 3, a saber, a ida à Bienal de Artes de São Paulo e a ação-­festa, realizada na CC Raul Seixas. Nesta última o objetivo não foi a apresentação de uma materialidade elaborada ao longo do ano, mas a instauração de ''um espaço de fermentação'' no qual a junção e trocas entre os artistas vocacionados fomentaram a eclosão de materiais efêmeros que pudessem vir a interferir nos seus processos criativos orientados. Não se tratou de uma ação­-apresentação, mas uma ação-­encontro­-experiência na qual cada artistas vocacionado teve uma relação análoga àquela da orientação, embora num tempo de duração dilatado e num espaço com outras configurações. Para dar conta do planejamento desta ação-­interferência-­festa a coletividade equipe Leste 3/Vocacional Teatro, interinamente, propôs/chegou a uma forma de organização de seus encontros/reuniões: na primeira parte (1 hora) dedicávamos à informes e preparação da segunda parte do encontro; na segunda parte (2 horas) à elaboração da ação propriamente dita na qual tivemos a participação dos artistas vocacionados.
Em um primeiro sobrevoo estes encontros-­interferências se desdobraram numa experiência de ''migração'' dos artistas vocacionados para outros equipamentos ­ para além do ''seu de origem'': alguns vocacionados do CEU Jambeiro visitaram (e acompanharam as orientações) a BP Cora Coralina; do CEU Água Azul visitaram o CFC Cid. Tiradentes; os artistas vocacionados do CFC Cid. Tiradentes e CEU Inácio Monteiro foram assistir ao ensaio aberto do CEU Água Azul; e os artistas vocacionados do CEU Jambeiro, CC Raul Seixas e CFC Cidade Tiradentes foram assistir à Mostra do CEU Inácio Monteiro (do Projeto Vocacional Teatro). Além disso, fez eclodir uma ''rede'' entre os artistas vocacionados de equipamentosdistintos, por meio de um grupo de whats app, na qual a comunicação entre eles não está na ''jurisdição e dependência'' do AO e/ou da equipe Leste 3/Vocacional Teatro.
Ainda nesta paisagem pude observar que a organização da reunião de equipe não foi dada a priori, mas construída coletivamente, passo a passo, assumindo um aspecto processual e no qual cada um foi incitado a ser corresponsável por ela, tanto na administração do tempo quanto na escolha das temáticas a serem discutidas. Em geral, nas reuniões de equipe uma pauta é levantada pelo coordenador e acrescida de outras oriundas dos AOs. Embora a pauta esteja aberta ela está majoritariamente ''nas mãos'' do coordenador que, assim, assume o poder de fala e de orquestração das falas dos presentes: muitas vezes ter o poderio sobre as falas dos demais, sobre a possibilidade destas virem à tona ou não, pode tornar ''maquiadas'' as falas que eclodem sobre estas regras, falas que reafirmam as proferidas pelo orquestrador não por compartilhamento das ideias mas por percepção das regras do jogo, daquilo que ''se deve ser dito'' e ''como se deve dizer''. Com isso, o sentido não é construído coletivamente, mas de acordo com a perspectiva do coordenador, que se torna ''A'' perspectiva – ‘’verdadeira’’ e, portanto, ‘’inquestionável’’. Visando tentar escapar deste ranço que a função pode exercer sobre o coletivo (abafando as vozes e apaziguando os conflitos de ideias, coibindo que as coletividades se tornem espaços de reflexões) e na tentativa de enveredar pela construção coletiva de sentido foi proposto pelo coordenador da equipe (eu) que a construção da pauta fosse mais ''aberta'' (ainda), com uma ''interferência'' maior das perspectivas dos AOs. Foi assim que surgiram as ''fichinhas'' ­ que povoaram insistentemente as mesas de reuniões desta coletividade, por um momento. No início de cada reunião pedaços retangulares de papel (as ''fichinhas'') eram distribuídos a cada um dos presentes e estes escreviam neles as pautas que lhe ''moviam'', que acreditavam ser ''necessárias àquela coletividade'' e, em seguida, dispunham-­nas na mesa. Qualquer um dos presentes poderia dar o ''start'' da reunião ''puxando'' uma fichinha e, a partir de então, todos
poderiam continuar esta dinâmica, ''puxando'' uma outra fichinha quando ou julgassem ''esgotado'' o assunto ou a relacionasse com o assunto presente em uma outra. Tal procedimento evidenciou que não bastava somente ''estar no espaço'', como burocraticamente poderia ser a única exigência contratual, mas ''como estar''. A reunião não sendo per si um espaço de interferência somente se tornaria isto se os presentes se disponibilizassem para tanto, ou seja, se se lançassem na construção de uma presença atitudinal, um corpo com disponibilidade para a escuta, para a troca, para provocar e ser provocado, etc. Perguntas pululam: Como cada um contribui com o processo do outro e como o outro contribui com o meu processo? Qual o papel de cada um dentro da reunião de equipe? Como cada um contribui com ela? Estas fichinhas-­procedimento, sob minha perspectiva, guardam um duplo sentido: memória e pistas. Memórias do trajeto seguido pela equipe e pistas que indicavam possíveis conexões entre assuntos aparentemente não compatíveis àqueles que não tivessem vivenciado o nosso coletivo – reafirmando que os sentidos não estão dados a priori, mas são construídos por esta coletividade. Assim, a junção de uma fichinha escrita FUNDAÇÃO e outra escrita ESPETÁCULO e mais uma escrita MATERIALIDADE ENSAIO se tornaria um hieróglifo indecifrável para qualquer outro que não estivesse minimamente contextualizado. Para dar algum sentido a esta junção inusitada seria necessária a fala­ experiência de quem teceu a construção deste sentido. Estas ''fichinhas'' (temáticas, fragmentos de pautas) foram ora usadas ora abandonadas ora revisitadas ora resignificadas ora improdutivas ora desnecessárias.
A pesquisa sobre ''interferência'' na prática artístico-­pedagógica desembocou em uma seara que precisa ser explorada, desbravada ainda: o acaso nos processos criativos (e de orientação). A partir do momento em que ''abrimos o sistema'' os acasos não são mais ''desconsiderados'', eles interferem na ''programação do encontro''. Novas perguntas eclodem: Como o acaso atua nos processos criativos e nas orientações? Como lidar com o acaso? Parece-­me que o ''acaso'' gera um certo constrangimento pela sua natureza ''espontânea e indomável'': se é ''por acaso'' que algo aconteceu isso não está ''nas mãos'' do AO, então, não foi sua intenção, não houve um planejamento para que tal coisa acontecesse: o AO não é o sujeito da ação. Não sendo o sujeito da ação o processo criativo dos artistas vocacionados ''escapam'' de suas mãos e, com isso, ele pode não ''domá-­lo'', ''regrá-­lo'', ''discipliná-­lo'', ''contê-­lo'', ''educá­-lo''. Sem saber para onde o processo criativo vai e como lidar com ele terá que lidar com este no aqui-­agora, com aquele acontecimento singular naquele tempo-­espaço específico. Nestes momentos a relação de parceria/aliança com os artistas vocacionados da coletividade orientada é de fundamental importância porque o AO como um cego, vai tatear um caminho, uma possibilidade, em conjunto com os artistas vocacionados – adentra-se no território da experimentação, da invenção de procedimentos, de modos de produção, etc. Ainda, com a interferência a ''aceitação'' da demolição dos planejamentos dos encontros de orientação/coordenação, não sem sofrimento em alguns ou/e em alguns momentos, fez­-se presente àqueles que habitam estas paisagens. Demolição não quer dizer aqui não realização do planejamento, ao contrário, este é pensado/edificado minuciosamente, quase exaustivamente, mas consente-se deixá-­lo aberto às singularidades do encontro propriamente dito. Com isso, muitas vezes o AO e coordenador são catapultados para o campo da ''reinvenção'' no aqui-­agora, da costura do encontro no próprio encontro, da ação na própria ação, atribuindo a eles o epíteto de artesãos e, consequentemente, ao encontro um aspecto artesanal, único e intransferível.
Por fim, pude observar nesta paisagem um efeito pororoca, o cruzamento (estrondoso) de águas oriundas de naturezas diferentes: uma dos processos criativos dos artistas vocacionados e outra das demandas institucionais do Programa Vocacional. Há, portanto, um braço de ferro sisífico entre o micro e o macro, indissolúvel, insolúvel, ad eternum, e no qual a vigilância constante deve ser mantida para que a primeira não soçobre em relação a segunda, caso o coordenador de equipe não queira assumir para si o epíteto de ''mensageiro/Hermes da galeria Olido'' e ver o desmoronamento e soterramento das reflexões sobre os processos criativos em andamento na equipe sob sua coordenação. 

Paisagem micro, foco maximamente fechado, as orientações dos processos criativos:

Nesta paisagem o elemento fundamental é o processo criativo dos artistas vocacionados, alicerçado pela prática artístico-­pedagógica proposta pelo material norteador. Em cada grupo ou turma orientada na equipe Leste 3/vocacional Teatro reina a heterogeneidade: as característica e contextos específicos tornam múltiplos os meios e modos de produção e as formas e conteúdos das materialidades artísticas produzidas. Assim, cada AO tem diante de si o desafio de lidar com a instauração de processos criativos que, muitas vezes, fogem/escapam daqueles que a prática dele contempla plenamente. Sem mesuras os processos criativos dos artistas vocacionados derrubam os monumentos erguidos pela formação do AO: aqueles preceitos que eram caros e inestimáveis, imprescindíveis a este para a realização de uma experiência artística soçobram e força com que ele descubra junto com aqueles o trajeto a ser percorrido e o que dele resultará. Faz-­se imprescindível uma atitude ensaística do AO, que terá que rever sua prática constantemente, acertando, errando, avançando, recuando, experimentando os desafios/­perguntas que cada processo criativo lança. Não que a tradição teatral, com sua história erigida, não tenha espaço nestes processos criativos, mas nem sempre ela se mostra suficiente para abarcar ''a voz'' dos artistas vocacionados. Ao enveredar pela seara da construção de materialidades estéticas que dialoguem diretamente com as inquietações dos artistas vocacionados ­ inquietações estas que vão eclodindo, paulatinamente, por meio de um tatear constante e que vão dando forma àquilo que eles pretendem ''falar'' (ou simplesmente falam)­, os meios e modos de produção comumente conhecidos no meio teatral sofrem um processo de desnaturalização e cada coletividade vai confeccionando, coletivamente, a sua forma de organização. Nesta paisagem podemos ver irromper novas formas de relação, de existência, nas quais a produção de sentido não está mais centralizada nas mãos de um (pseudo)detentor do saber, em um mestre que lança perguntas socráticas delimitando o campo das respostas possíveis.
Nela somos pegos pelo colarinho, muitas vezes, de súbito, e ficamos cara a cara com tudo aquilo que a experiência artística tem de mais temível e sublime: o impossível, o indizível, o imponderável.

NOTAS: 

1FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 96.
2DELEUZE e GUATTARI, O Anti­Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976 , p. 53-­54.
3 Além disso, embora alguns integrantes desta coletividade já tivessem uma experiência no Programa Vocacional, que lhe atribuíam uma certa perspectiva histórica deste, havia uma atenção por parte deles em não torná-­la soberana e ''impositiva'' àqueles que eram ingressantes.
4 sobretudo do Vocacional Dança, equipe Leste 3, sob a coordenação de Nininha Araújo.

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