A Coleção de Perguntas - Tatiana Guimarães, coordenadora de equipe - Leste 4 de Dança
A Coleção de Perguntas
Como
disparador de pesquisa da equipe leste 4 de dança do Programa Vocacional, em 2014 resolvi começar o ano fazendo uma coleção de
perguntas. No início do projeto
elas se entrelaçavam, uma me parecia requerer a outra, não
paravam de se multiplicar. A partir da minha proposição de não dar respostas, as próprias perguntas se interligavam,
deflagravam novas possibilidades de aprofundamento de temas, às
vezes se mostravam retóricas ou surgiam como caminho verdadeiro de novas reflexões.
Muitas vezes já eram constatações irrevogáveis para mim e terminavam com um ponto de interrogação por puro equívoco de formatação, ou mais certamente, por puro desejo de que elas
fossem passíveis de dúvida. Eu, sempre tão
imperativa, não me dava o tempo real para de fato questionar.
Veio junho, julho e em meados de agosto elas pararam. Como frutos caindo do pé, passei a ver muitas delas como sentenças vazias e passei a não
enxergá-las mais. Poucas
cresceram dentro de mim me impulsionando a dar respostas que não são as certas, mas são as
minhas. Veio outubro e começo de novembro, e o que me parecia fato é
que nosso trabalho começa e procuramos avidamente um início de rota, uma linha de pesquisa e no
caminho somos atropelados pelo movimento das coisas: das falas, dos outros, das
datas, das necessidades, do brilho nos olhos e da aridez dele. Sim, comumente me
aturde a falta de brilho nos olhos. COMO MANTÊ-LO, SENDO PARTE DE UM PROGRAMA TODO ENFERRUJADO
NO SEU MODO DE FUNCIONAR E BRILHANTE NA SUA ESSÊNCIA?
O Artista-Bomba, contemporaneidade, ação cultural e instituição
Diante da perspectiva de falar no seminário “Processos artísticos, tempos e
espaços” ao lado da
Profa. Dra. Lucia Maciel Barbosa de Oliveira tive a oportunidade de entrar em
contato com seu trabalho de doutorado, intitulado “Corpos indisciplinados, ação
cultural em tempos de biopolítica”[1], que me levou ao cerne da contradição que
vivemos nos programas de formação da Secretaria da Cultura da Cidade de São
Paulo: como nos mantermos em estado de subversão em
tempos de biopoder e daquilo que a autora define como a perda da
representatividade da política como protagonista de transformações
sociais, enquanto PODER PÚBLICO que somos? Como bombardear relações de poder que tomaram os corpos de
assalto e que se vigiam mutuamente de forma silenciosa e invisível, por dentro de uma máquina tão
grande e pesada como o ESTADO? Como assumir a representatividade das transformações
sociais através de uma arte que é exercida de dentro da INSTITUIÇÃO PÚBLICA? A caixa alta aqui dá forma ao peso da máquina, em oposição ao modo microfísico da contemporaneidade.
O primeiro ponto que me salta aos olhos é
nosso instrumental de pagamento, no
qual dividimos nossas funções de forma catalogada entre nossos horários como professores (artistas-orientadores),
horas de reunião em equipe e horas de ação
cultural. Quantos anos preenchendo esses papéis foram necessários para que esquecêssemos
que ação cultural é a linha mestra das nossas ações e não um adendo para justificar as horas que
"sobram" do nosso contrato de servidores públicos? Somos agentes culturais, criadores
de novos possíveis, parte
daqueles que acreditam e fazem da arte um caminho de afirmação e
de reflexão acerca do eu no mundo, tornando-o diferente (mais rico e plural)? Ou seguiremos
acreditando nos papéis e na burocracia que nos submete? Nas diferentes instâncias e separados das compartimentalizações, SOMOS ação cultural. Se sigo nessa premissa, outro
aspecto do nosso trabalho me intriga: tendo os programas surgido da essência
de um pensamento da esquerda, compreendo que tenha sido preciso no início das suas atividades separar processo
de produto artístico. Foi necessário tirar o sentido utilitário da arte e, ao longo do tempo, chegamos
à ideia de que o que
fazemos é processo
criativo emancipatório.
Essa resolução, tão bela quanto utópica, nos coloca novamente em choque com as questões
estruturais da instituição. Como pensar em processo criativo nos moldes
tradicionais, que pressupõem encontro de um tema, relações
entre forma e conteúdo, exploração entre códigos artísticos e, ainda, processo criativo emancipatório – que engloba coletividade e autonomia – em sete meses de trabalho? Sete meses nos quais nos concerne também chegar a um novo equipamento público; conhecer a/o gestor/a e
coordenador/a de cultura; afinar os desejos e expectativas; conhecer e mapear a
comunidade; gerar demanda para os encontros; formar uma turma ou encontrar um
grupo. Todos esses meses imersos em uma sala, cindidos da cidade, claramente
inofensivos à sua rede normalizadora, presos a outra compartimentalização, à separação processo x produto, nos tornam realmente
aptos a ser uma força de resistência? Me pergunto se nossos procedimentos fossem
experienciados de forma a borrar essa dicotomia, gerando multiplicidade de
fluxos no corpo urbano, não seríamos mais potentes. Corpo em relação gerando alargamentos de experiência
nele, no outro, em mim. Exercício em arte junto ao outro. Rompimento de mais um dos nossos clichês de
que o foco dos programas são os alunos (artistas-vocacionados). E se
o foco dos programas for a cidade, o bombardeamento dessa
rede automata e disciplinadora que nos incita invisível e incessantemente à produtividade?
Penso, por fim, no nosso organograma. Nos
organizamos de forma piramidal, íngreme e estriada, compartimentalizada tanto em sua latitude quanto em sua
longitute.
Pensada do seu ápice para baixo, temos a seguinte composição: a
Secretariada da Cultura, representada pelo Departamento de Expansão
Cultural; os coordenadores das linguagens, regionais e de formação – os dois últimos, me
parece, um projeto piloto bastante positivo no sentido de transversalizar a
estrutura; os coordenadores de equipe; os artistas-orientadores (professores) e
os artistas-vocacionados (alunos). Através dessa estrutura as informações circulam sempre de cima para baixo, e passam
sempre pela subjetividade de uma pessoa para serem reencaminhadas. Esse formato
configura o programa em uma maneira de funcionar que dificulta que os olhares
sejam tangenciados, colocados em relação, complexificados de fato. Enfraquece a
contaminação real de modos de fazer e pensar as questões
artísticas e os
territórios: entre
as linguagens, entre as
diversas camadas da pirâmide, entre os agentes culturais de uma mesma região e,
ao fim e ao cabo, dificulta o diálogo com os equipamentos públicos, uma vez que cada linguagem estabelecerá
uma comunicação específica e, muitas vezes, divergente das
perspectivas do Vocacional. Esses três pontos certamente se multiplicam em muitos
mais e dizem respeito à nossa maneira institucional de ação, em que colocamos tudo em
compartimentos. Por um lado temos um material norteador profundamente contemporâneo, repleto de fissuras, possibilitando
efemeridades, formas infinitas de pensar nossas ações
artístico-pedagógicas, e, por outro, nos pensamos e
colocamos nossas ações em prática de forma estanque e estriada. Institucionalizada. Compartimentalizamos
nosso pensamento acerca das nossas funções, acerca da arte, acerca das linguagens;
colocamos muros invisíveis que dividem e engessam. A contradição em
que nos vemos muitas vezes cerceados – criar novos possíveis a partir de dentro do PODER PÚBLICO, em um mundo cada vez mais líquido – requer artistas
que estejam em um comprometimento profundo com o bombardeamento desses muros.
Artistas-bomba, que façam transbordar os limites reais e imaginários, atualizando as virtualidades emperradas nas
engrenagens da MÁQUINA. Quando a
Mesa Tempos e Espaços da Experiência foi aberta para o público surgiu a pergunta: é
realmente possível que exerçamos esse papel sendo parte da instituição?
Trata-se de uma pergunta que não me faço. Penso que desenvolvemos um trabalho que
requer coragem suficiente para acreditar.
A realidade é uma construção social e é, frequentemente, demasiado real para
ser verdadeira. Nós não temos sempre
que a levar tão a sério. Quando Ho Chi Min saiu da prisão e lhe
perguntaram como conseguiu escrever versos tão cheios de
ternura numa prisão tão desumana ele
respondeu: "Eu Desvalorizei as paredes" . [2]
COMO TORNAR O INVISÍVEL
VISÍVEL?
Em outubro e início de
novembro ressoava. Essa pergunta acontecia forte em mim e me remetia a dois
pontos de discussão:
1. O Esvaziamento e a alteridade
Roubada no meio de uma reunião
de formação, transportada para lá de um outro tempo/espaço e proposta por um coordenador de projeto do teatro que não está
mais no Vocacional - veja, eu sou da
dança -, ela é um pequeno exemplo de uma das maiores potências
que o rompimento dos muros pode desencadear: o encontro com a alteridade, o
tangenciamento e transformações das formas de ver.
Como temos restrições com
a alteridade! Entre linguagens, entre diferentes funções,
entre pensamentos divergentes. Com esse problema erguemos os muros e perdemos não só esses, mas muitos outros “entres”. Fazemos um milhão de
Programas, cada qual com seu projeto, cada artista com uma ideia involucrada em
si própria. Quanto mais
nos fechamos para o outro, mais temos certezas. E perdemos as possibilidades
das dúvidas, dos
conflitos, dos embates. Estamos muito preocupados - e sempre atrasados! - em
revolucionar os artistas-vocacionados (alunos), para sermos revolucionados.
Os espaços coletivos opcionais, - encontros de formação, seminários, encontros com outras instituições e artistas estão comumente
esvaziados. Os encontros coletivos obrigatórios, como as reuniões gerais ou de linguagem, são o núcleo mais duro do Programa Vocacional. Alguém
não soube programá-las, poderiam ter sido mais práticas, atrasou demais, mais sensoriais,
menos teóricas, mais subjetivas.
Os espaços coletivos nos
colocam em contato com as diferenças, nos obrigando ao incômodo do deslocamento das certezas e nos obrigando a pensar que o Programa
que estamos desenvolvendo não é
perfeito, ou até
mesmo, não é o único possível.
2. O invisível
Dentro do que não se
pode ver com a nossa ação, mais abaixo, mais silencioso, há
um mundo microfísico de mudanças no meu corpo, no dos
artistas-orientadores (professores), no dos artistas-vocacionados (alunos),
muito mais importante e tentador que qualquer passo de dança. Essa invisibilidade parece nos assustar
porque no dia a dia tudo é grande. É muito carro, muito barulho, de tudo muito para
ver. Por isso, exigimos das nossas ações
hipérboles. Mas e se pudermos agir a partir da
antítese desse jogo
de excessos? E se confiarmos nas pequenas marcas de ações poéticas que rompam esse grito estridente do
cotidiano?
No mais das vezes trabalhamos em lugares e com
pessoas que vivem na urgência da sobrevivência,
incluindo nós mesmos. É muito
chão, é muita falta de estrutura, é muito atraso de pouco salário. A perspectiva do embate contra tantos "muitos" através de processos criativos ultra aprofundados, ações
culturais que se multiplicam em mil, intuitos mirabolantes e expectativas utópicas nos apequenam e nos acovardam. É como se não
reconhecêssemos o gigante brutal que é a realidade para não percebermos a força estonteante de uma sonoridade que atravessa em outro
registro musical. Uma dança que se apresenta, não necessariamente em outro patamar de qualidade
daquela que vibra nas ruas da periferia, mas que apresenta o sentido da
possibilidade. Acreditar no invisível, no pequeno do instante, trataria-se de
uma tarefa delicada e minuciosa, na esteira de um dos conselhos de Ítalo Calvino para o novo milênio,
como citado por Lucia Maciel durante o seminário.
Em outubro e início de
novembro pensava que aprender a tornar o invisível visível nos requereria autenticidade de gestos, força e crença nas pequenas coisas. No micro nos tornaríamos ágeis e por dentro minaríamos nossa necessidade de eloquência e
de grandiosidade.
Vinha circundando o pequeno, colocando novas
lentes no mesmo, desvalorizando a polifonia desse real mimado que grita por
atenção a todo instante. Me apropriando dos tempos mortos e dos espaços vazios, me empoderando e buscando
propiciar relações onde o outro se empoderasse artisticamente das
estruturas, ainda que falhas. Das "grades da instituição",
como eu vinha chamando o contrato com a mediocridade ainda em junho e sigo
nomeando assim até hoje. Vinha buscando pensar todo esse quase nada
como forma de luta, como ação cultural. Naquele momento, COMO ENXERGAR O
"PRODUTO ARTÍSTICO" COMO
EFEMERIDADE/MATERIALIDADE INSTANTÂNEA, se tornava premissa, criação e brilho nos olhos.
É novembro,
final de novembro, e como muitas outras a questão
abaixo passou:
COMO FAZER DAS MOSTRAS FINAIS UM ACONTECIMENTO E NÃO UM CUMPRIMENTO DE PROTOCOLOS?
As mostras foram acontecimentos e cumprimento de protocolos.
No âmbito institucional talvez essa seja a resposta mais definitiva: a luta de
forças é acirrada e nós, artistas-bomba, perdemos e ganhamos o tempo
todo e ao mesmo tempo.
Mas, é final de novembro, e como em todos os anos nessa época,
perdemos. O “[...] movimento das coisas: das falas, dos outros,
das datas, das necessidades” são substituídos pelo silêncio.
O Programa Vocacional, como em um passe de mágica,
passa a inexistir. Somem as sementes de processos de criação, a
ideologia, o invisível e o visível, o emprego, o movimento, o salário,
os encontros, a arte, a força das transformações, o
sentido da possibilidade.
No final de novembro, sempre deixa de me aturdir a
falta do brilho nos olhos. As questões se calam, quase todas. O programa
hiberna por quatro, cinco meses. E a única
pergunta que permanece:
O QUE SERÁ FEITO
DA MEMÓRIA: DE TODOS OS LAÇOS, DE TODAS AS LUTAS QUE TRAVAMOS EM 2014?
Talvez essa seja uma daquelas sentenças que
acaba com um ponto de interrogação por puro desejo de que ela fosse passível de dúvida.
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