domingo, 23 de novembro de 2014

A Coleção de Perguntas - Tatiana Guimarães, coordenadora de equipe - Leste 4 de Dança


A Coleção de Perguntas

 Como disparador de pesquisa da equipe leste 4 de dança do Programa Vocacional, em 2014 resolvi começar o ano fazendo uma coleção de perguntas. No início do projeto elas se entrelaçavam, uma me parecia requerer a outra, não paravam de se multiplicar. A partir da minha proposição de não dar respostas, as próprias perguntas se interligavam, deflagravam novas possibilidades de aprofundamento de temas, às vezes se mostravam retóricas ou surgiam como caminho verdadeiro de novas reflexões. Muitas vezes já eram constatações irrevogáveis para mim e terminavam com um ponto de interrogação por puro equívoco de formatação, ou mais certamente, por puro desejo de que elas fossem passíveis de dúvida. Eu, sempre tão imperativa, não me dava o tempo real para de fato questionar. Veio junho, julho e em meados de agosto elas pararam. Como frutos caindo do pé, passei a ver muitas delas como sentenças vazias e passei a não enxergá-las mais. Poucas cresceram dentro de mim me impulsionando a dar respostas que não são as certas, mas são as minhas. Veio outubro e começo de novembro, e o que me parecia fato é que nosso trabalho começa e procuramos avidamente um início de rota, uma linha de pesquisa e no caminho somos atropelados pelo movimento das coisas: das falas, dos outros, das datas, das necessidades, do brilho nos olhos e da aridez dele. Sim, comumente me aturde a falta de brilho nos olhos. COMO MANTÊ-LO, SENDO PARTE DE UM PROGRAMA TODO ENFERRUJADO NO SEU MODO DE FUNCIONAR E BRILHANTE NA SUA ESSÊNCIA?

O Artista-Bomba, contemporaneidade, ação cultural e instituição

Diante da perspectiva de falar no seminário Processos artísticos, tempos e espaços ao lado da Profa. Dra. Lucia Maciel Barbosa de Oliveira tive a oportunidade de entrar em contato com seu trabalho de doutorado, intitulado Corpos indisciplinados, ação cultural em tempos de biopolítica[1], que me levou ao cerne da contradição que vivemos nos programas de formação da Secretaria da Cultura da Cidade de São Paulo: como nos mantermos em estado de subversão em tempos de biopoder e daquilo que a autora define como a perda da representatividade da política como protagonista de transformações sociais, enquanto PODER PÚBLICO que somos? Como bombardear relações de poder que tomaram os corpos de assalto e que se vigiam mutuamente de forma silenciosa e invisível, por dentro de uma máquina tão grande e pesada como o ESTADO? Como assumir a representatividade das transformações sociais através de uma arte que é exercida de dentro da INSTITUIÇÃO PÚBLICA? A caixa alta aqui dá forma ao peso da máquina, em oposição ao modo microfísico da contemporaneidade.
O primeiro ponto que me salta aos olhos é nosso instrumental de pagamento, no qual dividimos nossas funções de forma catalogada entre nossos horários como professores (artistas-orientadores), horas de reunião em equipe e horas de ação cultural. Quantos anos preenchendo esses papéis foram necessários para que esquecêssemos que ação cultural é a linha mestra das nossas ações e não um adendo para justificar as horas que "sobram" do nosso contrato de servidores públicos? Somos agentes culturais, criadores de novos possíveis, parte daqueles que acreditam e fazem da arte um caminho de afirmação e de reflexão acerca do eu no mundo, tornando-o diferente (mais rico e plural)? Ou seguiremos acreditando nos papéis e na burocracia que nos submete? Nas diferentes instâncias e separados das compartimentalizações, SOMOS ação cultural. Se sigo nessa premissa, outro aspecto do nosso trabalho me intriga: tendo os programas surgido da essência de um pensamento da esquerda, compreendo que tenha sido preciso no início das suas atividades separar processo de produto artístico. Foi necessário tirar o sentido utilitário da arte e, ao longo do tempo, chegamos à ideia de que o que fazemos é processo criativo emancipatório.
Essa resolução, tão bela quanto utópica, nos coloca novamente em choque com as questões estruturais da instituição. Como pensar em processo criativo nos moldes tradicionais, que pressupõem encontro de um tema, relações entre forma e conteúdo, exploração entre códigos artísticos e, ainda, processo criativo emancipatório que engloba coletividade e autonomia em sete meses de trabalho? Sete meses nos quais nos concerne também chegar a um novo equipamento público; conhecer a/o gestor/a e coordenador/a de cultura; afinar os desejos e expectativas; conhecer e mapear a comunidade; gerar demanda para os encontros; formar uma turma ou encontrar um grupo. Todos esses meses imersos em uma sala, cindidos da cidade, claramente inofensivos à sua rede normalizadora, presos a outra compartimentalização, à separação processo x produto, nos tornam realmente aptos a ser uma força de resistência? Me pergunto se nossos procedimentos fossem experienciados de forma a borrar essa dicotomia, gerando multiplicidade de fluxos no corpo urbano, não seríamos mais potentes. Corpo em relação gerando alargamentos de experiência nele, no outro, em mim. Exercício em arte junto ao outro. Rompimento de mais um dos nossos clichês de que o foco dos programas são os alunos (artistas-vocacionados). E se o foco dos programas for a cidade, o bombardeamento dessa rede automata e disciplinadora que nos incita invisível e incessantemente à produtividade?
Penso, por fim, no nosso organograma. Nos organizamos de forma piramidal, íngreme e estriada, compartimentalizada tanto em sua latitude quanto em sua longitute.
Pensada do seu ápice para baixo, temos a seguinte composição: a Secretariada da Cultura, representada pelo Departamento de Expansão Cultural; os coordenadores das linguagens, regionais e de formação os dois últimos, me parece, um projeto piloto bastante positivo no sentido de transversalizar a estrutura; os coordenadores de equipe; os artistas-orientadores (professores) e os artistas-vocacionados (alunos). Através dessa estrutura as informações circulam sempre de cima para baixo, e passam sempre pela subjetividade de uma pessoa para serem reencaminhadas. Esse formato configura o programa em uma maneira de funcionar que dificulta que os olhares sejam tangenciados, colocados em relação, complexificados de fato. Enfraquece a contaminação real de modos de fazer e pensar as questões artísticas e os territórios: entre as linguagens, entre as diversas camadas da pirâmide, entre os agentes culturais de uma mesma região e, ao fim e ao cabo, dificulta o diálogo com os equipamentos públicos, uma vez que cada linguagem estabelecerá uma comunicação específica e, muitas vezes, divergente das perspectivas do Vocacional. Esses três pontos certamente se multiplicam em muitos mais e dizem respeito à nossa maneira institucional de ação, em que colocamos tudo em compartimentos. Por um lado temos um material norteador profundamente contemporâneo, repleto de fissuras, possibilitando efemeridades, formas infinitas de pensar nossas ações artístico-pedagógicas, e, por outro, nos pensamos e colocamos nossas ações em prática de forma estanque e estriada. Institucionalizada. Compartimentalizamos nosso pensamento acerca das nossas funções, acerca da arte, acerca das linguagens; colocamos muros invisíveis que dividem e engessam. A contradição em que nos vemos muitas vezes cerceados criar novos possíveis a partir de dentro do PODER PÚBLICO, em um mundo cada vez mais líquido requer artistas que estejam em um comprometimento profundo com o bombardeamento desses muros. Artistas-bomba, que façam transbordar os limites reais e imaginários, atualizando as virtualidades emperradas nas engrenagens da MÁQUINA. Quando a Mesa Tempos e Espaços da Experiência foi aberta para o público surgiu a pergunta: é realmente possível que exerçamos esse papel sendo parte da instituição? Trata-se de uma pergunta que não me faço. Penso que desenvolvemos um trabalho que requer coragem suficiente para acreditar.

 A realidade é uma construção social e é, frequentemente, demasiado real para ser verdadeira. Nós não temos sempre que a levar tão a sério. Quando Ho Chi Min saiu da prisão e lhe perguntaram como conseguiu escrever versos tão cheios de ternura numa prisão tão desumana ele respondeu: "Eu Desvalorizei as paredes" . [2]

COMO TORNAR O INVISÍVEL VISÍVEL?

Em outubro e início de novembro ressoava. Essa pergunta acontecia forte em mim e me remetia a dois pontos de discussão:

1. O Esvaziamento e a alteridade

Roubada no meio de uma reunião de formação, transportada para lá de um outro tempo/espaço e proposta por um coordenador de projeto do teatro que não está mais no Vocacional - veja, eu sou da dança -, ela é um pequeno exemplo de uma das maiores potências que o rompimento dos muros pode desencadear: o encontro com a alteridade, o tangenciamento e transformações das formas de ver.
Como temos restrições com a alteridade! Entre linguagens, entre diferentes funções, entre pensamentos divergentes. Com esse problema erguemos os muros e perdemos não só esses, mas muitos outros entres. Fazemos um milhão de Programas, cada qual com seu projeto, cada artista com uma ideia involucrada em si própria. Quanto mais nos fechamos para o outro, mais temos certezas. E perdemos as possibilidades das dúvidas, dos conflitos, dos embates. Estamos muito preocupados - e sempre atrasados! - em revolucionar os artistas-vocacionados (alunos), para sermos revolucionados.
Os espaços coletivos opcionais, - encontros de formação, seminários, encontros com outras instituições e artistas estão comumente esvaziados. Os encontros coletivos obrigatórios, como as reuniões gerais ou de linguagem, são o núcleo mais duro do Programa Vocacional. Alguém não soube programá-las, poderiam ter sido mais práticas, atrasou demais, mais sensoriais, menos teóricas, mais subjetivas. Os espaços coletivos nos colocam em contato com as diferenças, nos obrigando ao incômodo do deslocamento das certezas e nos obrigando a pensar que o Programa que estamos desenvolvendo não é perfeito, ou até mesmo, não é o único possível.


2. O invisível

Dentro do que não se pode ver com a nossa ação, mais abaixo, mais silencioso, há um mundo microfísico de mudanças no meu corpo, no dos artistas-orientadores (professores), no dos artistas-vocacionados (alunos), muito mais importante e tentador que qualquer passo de dança. Essa invisibilidade parece nos assustar porque no dia a dia tudo é grande. É muito carro, muito barulho, de tudo muito para ver. Por isso, exigimos das nossas ações hipérboles. Mas e se pudermos agir a partir da antítese desse jogo de excessos? E se confiarmos nas pequenas marcas de ações poéticas que rompam esse grito estridente do cotidiano?
No mais das vezes trabalhamos em lugares e com pessoas que vivem na urgência da sobrevivência, incluindo nós mesmos. É muito chão, é muita falta de estrutura, é muito atraso de pouco salário. A perspectiva do embate contra tantos "muitos" através de processos criativos  ultra aprofundados, ações culturais que se multiplicam em mil, intuitos mirabolantes e expectativas utópicas nos apequenam e nos acovardam. É como se não reconhecêssemos o gigante brutal que é a realidade para não percebermos a força estonteante de uma sonoridade que atravessa em outro registro musical. Uma dança que se apresenta, não necessariamente em outro patamar de qualidade daquela que vibra nas ruas da periferia, mas que apresenta o sentido da possibilidade. Acreditar no invisível, no pequeno do instante, trataria-se de uma tarefa delicada e minuciosa, na esteira de um dos conselhos de  Ítalo Calvino para o novo milênio, como citado por Lucia Maciel durante o seminário.
Em outubro e início de novembro pensava que aprender a tornar o invisível visível nos requereria autenticidade de gestos, força e crença nas pequenas coisas. No micro nos tornaríamos ágeis e por dentro minaríamos nossa necessidade  de eloquência e de grandiosidade.
Vinha circundando o pequeno, colocando novas lentes no mesmo, desvalorizando a polifonia desse real mimado que grita por atenção a todo instante. Me apropriando dos tempos mortos e dos espaços vazios, me empoderando e buscando propiciar relações onde o outro se empoderasse artisticamente das estruturas, ainda que falhas. Das "grades da instituição", como eu vinha chamando o contrato com a mediocridade ainda em junho e sigo nomeando assim até hoje. Vinha buscando pensar todo esse quase nada como forma de luta, como ação cultural. Naquele momento, COMO ENXERGAR O "PRODUTO ARTÍSTICO" COMO EFEMERIDADE/MATERIALIDADE INSTANTÂNEA, se tornava premissa, criação e brilho nos olhos.

É novembro, final de novembro, e como muitas outras a questão abaixo passou:

 COMO FAZER DAS MOSTRAS FINAIS UM ACONTECIMENTO E NÃO UM CUMPRIMENTO DE PROTOCOLOS?

As mostras foram acontecimentos e cumprimento de protocolos. No âmbito institucional talvez essa seja a resposta mais definitiva: a luta de forças é acirrada e nós, artistas-bomba, perdemos e ganhamos o tempo todo e ao mesmo tempo.
Mas, é final de novembro, e como em todos os anos nessa época, perdemos. O [...] movimento das coisas: das falas, dos outros, das datas, das necessidades são substituídos pelo silêncio. O Programa Vocacional, como em um passe de mágica, passa a inexistir. Somem as sementes de processos de criação, a ideologia, o invisível e o visível, o emprego, o movimento, o salário, os encontros, a arte, a força das transformações, o sentido da possibilidade.
No final de novembro, sempre deixa de me aturdir a falta do brilho nos olhos. As questões se calam, quase todas. O programa hiberna por quatro, cinco meses. E a única  pergunta que permanece:

O QUE SERÁ FEITO DA MEMÓRIA: DE TODOS OS LAÇOS, DE TODAS AS LUTAS QUE TRAVAMOS EM 2014?

Talvez essa seja uma daquelas sentenças que acaba com um ponto de interrogação por puro desejo de que ela fosse passível de dúvida.



[1]MACIEL, Lucia. Corpos Indisciplinados, ação cultural em tempos de biopolítica. São Paulo. USP. Doutorado em Ciência da Informação.
[2] COUTO, Mia. E Se Obama Fosse Africano. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial