sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Artes Integradas - CEU Jardim Paulistano


  Ensaio

Magê Blanques
CEU Jardim Paulistano
abril a novembro de 2014

Meu primeiro ano de Vocacional: Artes Integradas. Meu interesse neste lugar dentro do Vocacional tem diretamente a ver com minha experiência anterior no PIA (Programa de Iniciação Artística), programa irmão do Vocacional. A experiência com crianças neste programa foi fundamental e define muito de minhas ações no Vocacional. Pena que haja tão pouco diálogo entre os dois programas, pois a separação adulto/criança para mim muitas vezes é desnecessária e até mesmo artificial, e os dois programas teriam muito a ganhar se houvesse algum tipo de relação entre eles.
No que concerne ao tema Artes Integradas, o trabalho no PIA foi definitivo: a criança muitas vezes sabe melhor que o adulto colocar a arte em seu devido lugar. A arte tem lugar? O que é arte? Pra que serve? Pouco importa a resposta para a criança, aliás a pergunta nem se coloca. Importa a experiência, importa ser, colocar em relação.
Muitos são os motivos que me fizeram migrar do PIA para o Vocacional, alguns deles puramente técnicos, alguns artísticos (o mais importante deles, a vontade de desenvolver um trabalho que possa ter uma reflexão um pouco mais a longo prazo junto com os participantes, o que raramente acontece com a criança, que vive num plano mais imediato.) Mas independente dos motivos para a mudança, a experiência no PIA não morre nela mesma, muito pelo contrário, ela me guia muito na experiência do Vocacional, principalmente no que concerne à questão que tanto mobilizou a equipe neste ano: o que é Artes Integradas? No PIA, isso já está dado, não existem linguagens, existem experiências artísticas com crianças, e as linguagens são caminhos, não destinos.
Por isso, a pergunta: o que é artes integradas? para mim apareceu só depois, quando apareceu em equipe. O que surge de mais interessante nesta pergunta na equipe (que não queria respondê-la, mas sim utilizá-la como objeto mobilizador de discussões e proposições) é a priorização da experiência sobre a linguagem, e a partir disso surgem referências como a performance e a noção de programa. Mas para além das referências, que são sempre motivadoras, o que continua me interessando (desde o PIA e agora no Vocacional) é esta noção de experiência. A arte que não é uma busca por um resultado, mas sim uma experiência para aquele que a realiza num primeiro momento, mas que também já pressupõe a ideia de diálogo com um possível interlocutor.
E assim, com estas questões, chego ao CEU Jardim Paulistano, onde tive dificuldades para encontrar vocacionados. No início, poucas pessoas passavam pelo Vocacional, e menos pessoas ainda permaneciam. O espaço (tanto físico quanto a administração do CEU) apresentava muitas dificuldades. Mas num determinado momento, mais precisamente em agosto, acabou formando-se uma turma com um caráter mais fixo e continuado, com uma média de 13 vocacionados, e é sobre esta turma que pretendo falar.
Em primeiro lugar, voltando à questão o que é artes integradas? Neste CEU esta é a única linguagem do Vocacional. O bairro não tem nenhum outro equipamento cultural, portanto, a princípio seria de se imaginar que o Vocacional reuniria pessoas buscando diversas linguagens. Mas, salvo poucas exceções, o que encontrei foram pessoas querendo fazer teatro. Teatro é a palavra que mais ouço por lá. E é aí que me aparece a dúvida: e agora, e as artes integradas? Teatro é uma linguagem, e talvez dentre todas a que mais possibilite a integração de outras artes, mas de qualquer jeito, é apenas uma das linguagens.
Mas para além da linguagem (isso é teatro ou não?) o que me interessava pensar é como usar os conceitos pensados, conversados em equipe, dentro daquilo que era teatro mas que poderia ser qualquer outra coisa. Ou seja, manter a noção de experiência num plano acima do resultado estético. Uma experiência criativa autônoma, que não tem limites de linguagem.
Num primeiro momento com esta turma, que tinha quase que uma obsessão pela palavra teatro, a primeira barreira a quebrar foi a da ideia pré-concebida de um teatro mais tradicional. Afinal, o que é teatro? Poderia ser muitas coisas, mas na cabeça destes vocacionados estava muito ligada à ideia de texto, roteiro, atuação em moldes televisivos, tudo muito pautado na noção de talento, sucesso pessoal, etc.
No Vocacional, e acredito que em toda experiência de orientação artística, um dos principais desafios é não dar respostas, saber ouvir e entender quem são as pessoas com quem trabalhamos para então propor problemas, desafios, questões, exercícios, que levem a uma busca de cada um por suas próprias respostas. E então, como não negar a referência mais tradicional de teatro que os vocacionados traziam, mas sim apresentar outras possibilidades, sem mostrar como se faz, sem substituir uma referência por outra, mas sim abrir possibilidades para a criação de novas referências.
Nos primeiros encontros com esta turma, percebi uma grande dificuldade de escuta, e uma vontade muito grande de realizar ideias já preconcebidas, quase trazidas prontas. Então passei a jogar com estas ideias prontas: dei espaço para que fossem realizadas, e problematizei, propondo reelaborações a partir de outros estímulos, ideias e jogos. Aos poucos, e até com certa rapidez, eles começaram a encontrar a diversão e o prazer de subverter a forma tradicional, e os exercícios teatrais acabaram tomando formas mais variadas e livres.
Já as outras experiências que não tinham necessariamente uma vertente teatral explícita encontraram muita resistência num primeiro momento. Isso é teatro? A pergunta sempre vinha, e eu devolvia a eles: não sei, isso é teatro? Alguns exercícios eram até abandonados no meio, como por exemplo quando propus que caminhassem pelo CEU olhando tudo por um pequeno cone de plástico com um olho só. Quando estavam fora do meu alcance, eles simplesmente não faziam o exercício. Mas este abandono e outras resistências a algumas propostas foram um importante estímulo para algumas conversas determinantes, onde discutimos as possibilidades e os limites da arte, a arte como experiência, as mudanças de perspectiva, entre outras coisas.
Neste momento foram importantes os procedimentos de conversa. Os vocacionados tinham uma enorme dificuldade de se escutar, e também de se colocar em questões mais complexas. A partir de alguns procedimentos simples (como por exemplo, quem fala tem que fazer uma pergunta para a próxima pessoa) as opiniões começaram a vir à tona e as discussões tornaram-se mais elaboradas e profundas, novos assuntos surgiam, e começava a aparecer um pensamento crítico sobre as experiências vividas. E então, destas conversas, as resistências às experiências foram sendo deixadas para trás .
A referência do teatro não deixou de estar presente, muito pelo contrário, toda semana eles traziam novas proposições, ideias de roteiros, questões sobre interpretação. Mas aos poucos estes vocacionados começaram a enxergar o teatro como um espaço onde todas as artes, e mais do que as artes, mas todas as experiências poderiam estar presentes.
Outra questão importante neste processo foi a relação com o espaço: por dois motivos ( um ruim: a falta de uma sala adequada para o trabalho, e um bom: o tamanho gigantesco do CEU com muitos espaços abertos diferentes) era impossível deixar esta questão de lado. Além disso, para mim a questão espaço/território é um dos eixos fundamentais do pensamento estético, artístico e político. Pensar-se parte de um lugar, reconhecê-lo, tomá-lo para si, ocupá-lo. Torná-lo espaço de convivência e de construção coletiva. As relações humanas se estabelecem no espaço, e a alienação do espaço é uma das formas mais eficazes de dominação. Milton Santos, no ensaio O Retorno do Território contrapõe a ideia de espaço banal à do espaço normatizado. O território banal é o espaço pleno de possibilidades, anterior a qualquer uso, livre. O território normatizado é o espaço hierarquizado, o espaço das regras e da alienação.
E então, como transformar, em certa medida ao menos, o espaço do CEU, que é normatizado em grandes proporções, em um espaço banal? Talvez seja possível apenas numa pequena medida, mas, sim é possível, quando o espaço se torna o espaço da experiência desconhecida, nova, que foge ao uso comum, ao uso esperado. Quando a pessoa se apropria do espaço de outra forma, ela já não mais aceita a norma sem questionar, sem problematizar. E esse questionamento gera tensões, que muitas vezes não podem ser resolvidas. Mas para que serve a arte: para resolver problemas? ou para criá-los?
Os exercícios que propunham uma relação e apropriação com o espaço eram vários: desde passeios onde um vocacionado conduzia outro, até ressignificações do espaço em narrativas ou cenas. O principal objetivo destes exercícios era criar um olhar livre, libertador e crítico para este espaço, e aos poucos a relação com o CEU foi se transformando.
Outra questão importante para mim nesta experiência é a criação de um espaço de coletividade criativa e autônoma. E isso gera um desafio imenso na proposição do encontro: como não anular-me, abster-me, mas como também não impor-me, definir os caminhos a meu bel prazer. A armadilha é fácil. Os vocacionados em geral não sabem exatamente o que querem, ou às vezes sabem de forma muito subjetiva ou confusa. Assim, seria fácil escolher um tema que me interesse, um caminho mais fácil para mim, e impor estrategicamente isso aos vocacionados. Mas isso, além de ser um tanto perverso, é também pouco estimulante artisticamente. O que me motiva a estar neste programa, assim como em qualquer outro processo artístico coletivo, é a possibilidade do encontro, da escuta, da construção de novos diálogos, de novas ideias. Não é a soma do meu conhecimento mais o deles, a soma das minhas vontades mais as deles. É uma terceira coisa, que se constrói desse encontro, no entre, entre mim e eles, e entre um e outro vocacionado. Um diálogo que só existe porque é o encontro daquelas determinadas pessoas, naquele determinado momento. Uma construção estética, a elaboração de ideias que só existem porque ali foram criadas, daquele encontro. É neste lugar da criação de algo novo, que só pode existir ali, que reside minha vontade artística no programa.
E neste encontro específico, dei muita sorte em um aspecto: a relação de grupo que se estabeleceu entre estes vocacionados. Entre várias dificuldades, uma facilidade enorme nesta turma foi a relação de coletivo que foi estabelecida já nos primeiros encontros. De uma generosidade imensa. Nenhum vocacionado excluído, nenhuma ideia desmerecida, ninguém querendo impôr sua proposta ou seu modo de pensar. É claro que outras dificuldades apareciam, mas esta característica facilitava muito o andamento do trabalho.
Das dificuldades, a maior delas talvez, a que me fica como desafio e como reflexão, é o como dar caminhos para aumentar a potência de cada voz. Vivemos num mundo em que ficar quieto é o comportamento esperado, em que quem questiona não cabe, não serve, onde o pensamento autônomo não é bem vindo. E então as vozes ainda são poucas, tímidas, quase medrosas. Nestes poucos meses, de agosto à novembro, senti vozes crescendo, opiniões se formando e desfazendo e questionando... mas ainda são pequenas as vozes. Talvez seja ansiedade de uma artista-orientadora com mania de utopias. Mas a utopia nasce também das experiências, e da crença de que todo ser humano é capaz de pensar por conta própria e de criar e recriar novas realidades. E vem então a angústia pelo processo recortado, que termina agora e quem sabe como e se voltará no próximo ano. Fica a experiência assim, no meio do caminho, e a esperança quase utópica de que os processos de alguma maneira permaneçam. Em mim, neles.




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