Artes Integradas - CEU Jardim Paulistano
Ensaio
Magê
Blanques
CEU
Jardim Paulistano
abril
a novembro de 2014
Meu
primeiro ano de Vocacional: Artes Integradas. Meu interesse neste
lugar dentro do Vocacional tem diretamente a ver com minha
experiência anterior no PIA (Programa de Iniciação Artística),
programa irmão do Vocacional. A experiência com crianças neste
programa foi fundamental e define muito de minhas ações no
Vocacional. Pena que haja tão pouco diálogo entre os dois
programas, pois a separação adulto/criança para mim muitas vezes é
desnecessária e até mesmo artificial, e os dois programas teriam
muito a ganhar se houvesse algum tipo de relação entre eles.
No
que concerne ao tema Artes Integradas, o trabalho no PIA foi
definitivo: a criança muitas vezes sabe melhor que o adulto colocar
a arte em seu devido lugar. A arte tem lugar? O que é arte? Pra que
serve? Pouco importa a resposta para a criança, aliás a pergunta
nem se coloca. Importa a experiência, importa ser, colocar em
relação.
Muitos
são os motivos que me fizeram migrar do PIA para o Vocacional,
alguns deles puramente técnicos, alguns artísticos (o mais
importante deles, a vontade de desenvolver um trabalho que possa ter
uma reflexão um pouco mais a longo prazo junto com os participantes,
o que raramente acontece com a criança, que vive num plano mais
imediato.) Mas independente dos motivos para a mudança, a
experiência no PIA não morre nela mesma, muito pelo contrário, ela
me guia muito na experiência do Vocacional, principalmente no que
concerne à questão que tanto mobilizou a equipe neste ano: o que é
Artes Integradas? No PIA, isso já está dado, não existem
linguagens, existem experiências artísticas com crianças, e as
linguagens são caminhos, não destinos.
Por
isso, a pergunta: o que é artes integradas? para mim apareceu só
depois, quando apareceu em equipe. O que surge de mais interessante
nesta pergunta na equipe (que não queria respondê-la, mas sim
utilizá-la como objeto mobilizador de discussões e proposições) é
a priorização da experiência sobre a linguagem, e a partir disso
surgem referências como a performance e a noção de programa. Mas
para além das referências, que são sempre motivadoras, o que
continua me interessando (desde o PIA e agora no Vocacional) é esta
noção de experiência. A arte que não é uma busca por um
resultado, mas sim uma experiência para aquele que a realiza num
primeiro momento, mas que também já pressupõe a ideia de diálogo
com um possível interlocutor.
E
assim, com estas questões, chego ao CEU Jardim Paulistano, onde tive
dificuldades para encontrar vocacionados. No início, poucas pessoas
passavam pelo Vocacional, e menos pessoas ainda permaneciam. O espaço
(tanto físico quanto a administração do CEU) apresentava muitas
dificuldades. Mas num determinado momento, mais precisamente em
agosto, acabou formando-se uma turma com um caráter mais fixo e
continuado, com uma média de 13 vocacionados, e é sobre esta turma
que pretendo falar.
Em
primeiro lugar, voltando à questão o que é artes integradas? Neste
CEU esta é a única linguagem do Vocacional. O bairro não tem
nenhum outro equipamento cultural, portanto, a princípio seria de se
imaginar que o Vocacional reuniria pessoas buscando diversas
linguagens. Mas, salvo poucas exceções, o que encontrei foram
pessoas querendo fazer teatro. Teatro é a palavra que mais ouço por
lá. E é aí que me aparece a dúvida: e agora, e as artes
integradas? Teatro é uma linguagem, e talvez dentre todas a que mais
possibilite a integração de outras artes, mas de qualquer jeito, é
apenas uma das linguagens.
Mas
para além da linguagem (isso é teatro ou não?) o que me
interessava pensar é como usar os conceitos pensados, conversados em
equipe, dentro daquilo que era teatro mas que poderia ser qualquer
outra coisa. Ou seja, manter a noção de experiência num plano
acima do resultado estético. Uma experiência criativa autônoma,
que não tem limites de linguagem.
Num
primeiro momento com esta turma, que tinha quase que uma obsessão
pela palavra teatro, a primeira barreira a quebrar foi a da ideia
pré-concebida de um teatro mais tradicional. Afinal, o que é
teatro? Poderia ser muitas coisas, mas na cabeça destes vocacionados
estava muito ligada à ideia de texto, roteiro, atuação em moldes
televisivos, tudo muito pautado na noção de talento, sucesso
pessoal, etc.
No
Vocacional, e acredito que em toda experiência de orientação
artística, um dos principais desafios é não dar respostas, saber
ouvir e entender quem são as pessoas com quem trabalhamos para então
propor problemas, desafios, questões, exercícios, que levem a uma
busca de cada um por suas próprias respostas. E então, como não
negar a referência mais tradicional de teatro que os vocacionados
traziam, mas sim apresentar outras possibilidades, sem mostrar como
se faz, sem substituir uma referência por outra, mas sim abrir
possibilidades para a criação de novas referências.
Nos
primeiros encontros com esta turma, percebi uma grande dificuldade de
escuta, e uma vontade muito grande de realizar ideias já
preconcebidas, quase trazidas prontas. Então passei a jogar com
estas ideias prontas: dei espaço para que fossem realizadas, e
problematizei, propondo reelaborações a partir de outros estímulos,
ideias e jogos. Aos poucos, e até com certa rapidez, eles começaram
a encontrar a diversão e o prazer de subverter a forma tradicional,
e os exercícios teatrais acabaram tomando formas mais variadas e
livres.
Já
as outras experiências que não tinham necessariamente uma vertente
teatral explícita encontraram muita resistência num primeiro
momento. Isso é teatro? A pergunta sempre vinha, e eu devolvia a
eles: não sei, isso é teatro? Alguns exercícios eram até
abandonados no meio, como por exemplo quando propus que caminhassem
pelo CEU olhando tudo por um pequeno cone de plástico com um olho
só. Quando estavam fora do meu alcance, eles simplesmente não
faziam o exercício. Mas este abandono e outras resistências a
algumas propostas foram um importante estímulo para algumas
conversas determinantes, onde discutimos as possibilidades e os
limites da arte, a arte como experiência, as mudanças de
perspectiva, entre outras coisas.
Neste
momento foram importantes os procedimentos de conversa. Os
vocacionados tinham uma enorme dificuldade de se escutar, e também
de se colocar em questões mais complexas. A partir de alguns
procedimentos simples (como por exemplo, quem fala tem que fazer uma
pergunta para a próxima pessoa) as opiniões começaram a vir à
tona e as discussões tornaram-se mais elaboradas e profundas, novos
assuntos surgiam, e começava a aparecer um pensamento crítico sobre
as experiências vividas. E então, destas conversas, as resistências
às experiências foram sendo deixadas para trás .
A
referência do teatro não deixou de estar presente, muito pelo
contrário, toda semana eles traziam novas proposições, ideias de
roteiros, questões sobre interpretação. Mas aos poucos estes
vocacionados começaram a enxergar o teatro como um espaço onde
todas as artes, e mais do que as artes, mas todas as experiências
poderiam estar presentes.
Outra
questão importante neste processo foi a relação com o espaço: por
dois motivos ( um ruim: a falta de uma sala adequada para o trabalho,
e um bom: o tamanho gigantesco do CEU com muitos espaços abertos
diferentes) era impossível deixar esta questão de lado. Além
disso, para mim a questão espaço/território é um dos eixos
fundamentais do pensamento estético, artístico e político.
Pensar-se parte de um lugar, reconhecê-lo, tomá-lo para si,
ocupá-lo. Torná-lo espaço de convivência e de construção
coletiva. As relações humanas se estabelecem no espaço, e a
alienação do espaço é uma das formas mais eficazes de dominação.
Milton Santos, no ensaio O Retorno do Território contrapõe a ideia
de espaço banal à do espaço normatizado. O território banal é o
espaço pleno de possibilidades, anterior a qualquer uso, livre. O
território normatizado é o espaço hierarquizado, o espaço das
regras e da alienação.
E
então, como transformar, em certa medida ao menos, o espaço do CEU,
que é normatizado em grandes proporções, em um espaço banal?
Talvez seja possível apenas numa pequena medida, mas, sim é
possível, quando o espaço se torna o espaço da experiência
desconhecida, nova, que foge ao uso comum, ao uso esperado. Quando a
pessoa se apropria do espaço de outra forma, ela já não mais
aceita a norma sem questionar, sem problematizar. E esse
questionamento gera tensões, que muitas vezes não podem ser
resolvidas. Mas para que serve a arte: para resolver problemas? ou
para criá-los?
Os
exercícios que propunham uma relação e apropriação com o espaço
eram vários: desde passeios onde um vocacionado conduzia outro, até
ressignificações do espaço em narrativas ou cenas. O principal
objetivo destes exercícios era criar um olhar livre, libertador e
crítico para este espaço, e aos poucos a relação com o CEU foi se
transformando.
Outra
questão importante para mim nesta experiência é a criação de um
espaço de coletividade criativa e autônoma. E isso gera um desafio
imenso na proposição do encontro: como não anular-me, abster-me,
mas como também não impor-me, definir os caminhos a meu bel prazer.
A armadilha é fácil. Os vocacionados em geral não sabem exatamente
o que querem, ou às vezes sabem de forma muito subjetiva ou confusa.
Assim, seria fácil escolher um tema que me interesse, um caminho
mais fácil para mim, e impor estrategicamente isso aos vocacionados.
Mas isso, além de ser um tanto perverso, é também pouco
estimulante artisticamente. O que me motiva a estar neste programa,
assim como em qualquer outro processo artístico coletivo, é a
possibilidade do encontro, da escuta, da construção de novos
diálogos, de novas ideias. Não é a soma do meu conhecimento mais
o deles, a soma das minhas vontades mais as deles. É uma terceira
coisa, que se constrói desse encontro, no entre, entre mim e eles, e
entre um e outro vocacionado. Um diálogo que só existe porque é o
encontro daquelas determinadas pessoas, naquele determinado momento.
Uma construção estética, a elaboração de ideias que só existem
porque ali foram criadas, daquele encontro. É neste lugar da criação
de algo novo, que só pode existir ali, que reside minha vontade
artística no programa.
E
neste encontro específico, dei muita sorte em um aspecto: a relação
de grupo que se estabeleceu entre estes vocacionados. Entre várias
dificuldades, uma facilidade enorme nesta turma foi a relação de
coletivo que foi estabelecida já nos primeiros encontros. De uma
generosidade imensa. Nenhum vocacionado excluído, nenhuma ideia
desmerecida, ninguém querendo impôr sua proposta ou seu modo de
pensar. É claro que outras dificuldades apareciam, mas esta
característica facilitava muito o andamento do trabalho.
Das
dificuldades, a maior delas talvez, a que me fica como desafio e como
reflexão, é o como dar caminhos para aumentar a potência de cada
voz. Vivemos num mundo em que ficar quieto é o comportamento
esperado, em que quem questiona não cabe, não serve, onde o
pensamento autônomo não é bem vindo. E então as vozes ainda são
poucas, tímidas, quase medrosas. Nestes poucos meses, de agosto à
novembro, senti vozes crescendo, opiniões se formando e desfazendo e
questionando... mas ainda são pequenas as vozes. Talvez seja
ansiedade de uma artista-orientadora com mania de utopias. Mas a
utopia nasce também das experiências, e da crença de que todo ser
humano é capaz de pensar por conta própria e de criar e recriar
novas realidades. E vem então a angústia pelo processo recortado,
que termina agora e quem sabe como e se voltará no próximo ano.
Fica a experiência assim, no meio do caminho, e a esperança quase
utópica de que os processos de alguma maneira permaneçam. Em mim,
neles.
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