Fragmentos
Programa Vocacional Dança 2014
Ensaio de Pesquisa-Ação por Elenita Queiroz
Coordenadora artístico-pedagógica equipe Sul 1
CEU Alvarenga
CEU Caminho do Mar
CEU Meninos
CEU Parque Bristol
FRAGMENTOS
Fragmento n. 01
20 segundos
"Essa é uma época de incontinência verbal. Não sei se as pessoas
falavam tanto assim antes. Sempre me surpreendo com a capacidade que muitos tem de preencher todo o tempo e
espaço com palavras, muitas vezes sem dizer nada. Sempre penso: o que
aconteceria se por um momento elas silenciassem? Qual é a ameaça contida no
silencio? Ou qual é o som que não
suportamos ouvir para precisar cobri-lo com o ruído ininterrupto de nossa voz?
Vivemos com muito som e pouca
fúria." (Eliane Brum)
Vivemos
com muito de tudo e pouco de nada.
Muitas
as palavras discorridas. Muitos os discursos. Poucos os olhares.Pouco.
Tempo. Pouca. Pausa.
A
experiência da criação artística pressupõe um espaço de plenitude de estado e
de tempo de experimentação. É preciso tempo para sentir. Sentir aquilo que está
soterrado, escondido, disfarçado pelo lusco fusco dos holofotes. A fruição é
tempo. Viver é tempo. Ser é estar no tempo. Tempo é vazio. Tempo é plenitude de
olhar. Tempo que se dá à ação. Contemplação.
Me
é cada vez mais caro constatar o quanto de mim mesma me escapa pelo simples
fato de não me ater ao que me passa, me toma, me acontece. O que se perde de mim, se acumula feito carcaça velha nas entranhas
de minha carne, nas profundezas de meus olhos, na viscosidade da minha língua .
Essa sensação se estende por além corpo, por além sopro, e se propaga como onda
pelas esferas de minha existência. Toca um a um. E neste trajeto as palavras,
como numa grande avalanche emudecem desejos, anseios, ações, olhares. E nunca
nos são suficientes... nem as palavras, nem o tempo.
O
que mais precisa ser dito?
O
Programa Vocacional, diz : Vocação, Voz. Me pergunto pois, como dar voz neste
turbilhão de palavras sobrepostas, como fazer-se ouvir em meio a tantos ruídos?
Como dar-se ao cuidado da escuta?
Sinto
falta do vazio que o vazio preenche, do tempo que o tempo dá, do silencio que o
silêncio cria, de ser em ser.
Em
tempos ruidosos, talvez o que nos toque e nos mova seja o olhar.
Olhar
para ver. Silenciar para ser. Calar para
ouvir... a voz.
Fragmento n. 02
Nós
Desde o começo de minha atuação como
coordenadora de equipe em 2014 no Programa Vocacional, e após ter trabalhado
dois anos na função de Artista Orientadora, venho tentando entender a grande e
complexa trama que dá forma ao Programa. Uma tessitura singular como nenhuma
outra. Uma rede que se mostra como um
emaranhado repleto de possibilidades e entraves, potências e idiossincrasias.
Segundo Cassio
Martinho, pesquisador do fenômeno da organização em rede, "Rede é um
padrão de organização constituído de elementos autônomos que, de forma
horizontal, cooperam entre si; um modo não hierárquico de colaboração; um
fenômeno organizacional capaz de autogoverno, produzido por uma dinâmica de
conectividade". Traçando livremente uma analogia à essa forma de
organização, podemos pensar que cada elemento que compõe o Programa Vocacional ou
com ele interage de alguma forma: artista orientador, coordenador, vocacionado,
coordenadores de NAC (Núcleo de Ação Cultural dos CEUs), gestores de
equipamentos, com suas especificidades e singularidades, é um agente em
potencial.
Uma rede só existe concretamente quando estes agentes tornam-se um nó
conectivo, ou seja, quando estabelece-se entre estes dois ou mais agentes uma
conexão de alguma ordem. Quando isto ocorre, este agente torna-se um nó conectivo. É neste momento que
configura-se a rede.
Agir em rede é estabelecer conexões,
e, por conexões entende-se colocar-se em relações concretas. Uma conversa, ou uma
aproximação entre agentes pode gerar uma pré conexão mas ainda não se configura
como rede. A mesma só se torna real
quando há de fato uma ação por parte dos agentes, mesmo que no campo virtual.
Entende-se por ação qualquer mecanismo que movimente algo, que gere, que
produza. Uma ideia por si só não pressupõe uma rede, ela assim o é quando lançada aos outros agentes e compartilhada
pelos mesmos em cadeia, gerando ações concretas, um fluxo de movimento.
Podemos trabalhar com agentes conhecidos,
ou não. A estrutura do Programa Vocacional é composta por pessoas que
conhecemos e outras que desconhecemos, no entanto, apesar de não as conhecermos
no sentido mais explicito da palavra, sabemos ou temos alguma suspeita da existência
das mesmas. Este conglomerado todo (de conhecidos e desconhecidos) é uma rede em potencial. É importante
frisar que, para que a rede se
concretize de fato e se faça presente, é necessário que haja seu acionamento, o
qual se dá através dos agentes. Acionar os agentes implica numa sinergia de
interesses, ideologias e afinidades em comum, direcionadas à determinado
assunto ou proposta. Assim, e só assim, é possível estabelecer a rede e potencializar seu fluxo.
O AO, quando está em ação junto aos vocacionados
propondo procedimentos e reflexões numa relação horizontal e não hierárquica (Mestre Ignorante), estabelece uma rede. Este mesmo AO é o nó conectivo que interliga estas
pessoas à uma outra rede pré-estruturada
constituída pelos demais AOs da equipe e seu respectivo coordenador
artístico-pedagógico. O Coordenador de equipe, por sua vez, é o nó conectivo
que liga esta rede àquela formada pelos
coordenadores de linguagem; e assim por diante. Podemos estender este mesmo
raciocínio às demais esferas de organização do Programa (AO+vocacionado,
vocacionado+vocacionado, coordenador+AO, coordenador+coordenador).
Como os agentes de uma rede não são estáticos e as relações
fluidas, os nós conectivos também o são, podendo migrar e estabelecer novas
conexões e assim encadear novas redes.
O que se percebe é um movimento constante, porém instável e não linear de
estabelecimento de redes, maiores
e/ou menores que variam segundo as circunstancias.
A potencia de uma rede não é necessariamente proporcional
ao seu tamanho, mas está diretamente associada à densidade do vinculo entre os
agentes em relação ao poder mobilizador do assunto ou proposta
propulsora/acionadora, a qual está intrinsecamente relacionada aos interesses, afinidades, ideologias dos
agentes e ao comprometimento de uns com os outros e com as propostas.
Quando falamos de ações
e reverberações nas instâncias do micro e do macro, estamos falando de ações
que acionam mais ou menos agentes e assim estabelecem mais ou menos nós
conectivos. Estamos falando de redes maiores e menores em escala, mas
não em potência. A qualidade de uma rede
se constrói na possibilidade do encontro, sendo que a melhor forma de
estabelecer uma rede é "olho no
olho", e é neste ponto que ressalto a importância das trocas presenciais
dentro do Programa Vocacional.
Fragmento n. 3
Gap
"...
diversas estruturas organizativas que se apresentam com o nome de rede
definitivamente não o são em função de sua arquitetura vertical, da decisão
centralizada e de seu perfil não-participativo e autoritário de gestão. " (Capra)
Apesar de inserido num
contexto institucionalizado, com uma figura central que toma as decisões
politicas/estruturais do Programa, sua base relacional me parece muito mais
vocacionada para a horizontalidade do que para uma construção hierarquizada. O
enxergo como rede pois a sua
estrutura dia a dia, na linha de frente, na ação direta no equipamento, o que
faz dele o que é, essa grande e macro estrutura de funcionamento baseado em
micro organizações que se auto organizam e se conectam livremente, a meu ver,
está mais próxima do conceito de rede,
de um padrão horizontal das relações. Uma rede móvel, viva, pulsante que tenta
se engendrar por um universo árido, solitário, seco, castrador, delimitado por
fronteiras que apesar de invisíveis, erguem-se sólidas como rocha e movem-se
com a destreza de um bagre, procurando a todo momento barrar, conter e cercear
o fluxo dessa rede de agentes,
microorganismos vivos - Vocacional.
Sob esta perspectiva, o
Vocacional é uma grande rede formada
por nós conectivos de intensa singularidade e possibilidade geradora, uma
vastidão de seres pensantes e atuantes em constante transito pela cidade. Um
transito caótico cheio de entraves, curvas perigosas, vias expressas, ruas hora
livres, hora totalmente congestionadas. Trajetos pelos quais não se sabe ao
certo para onde levam, nem quantos, ou quais serão os obstáculos a frente.
Neste transitar (de região
em região, de equipe em equipe, de CEU a CEU) mudam-se as paisagens, mudam-se
as ideias, mudam-se os modos e meios de trabalho, mudam-se os atores. E o que
fica? O que permanece?
Num primeiro momento
pode-se ter a ilusão de que a rede
foi rompida, mas não; ela esta se reorganizando através da conexão de outros
agentes. Outros nós conectivos se formam neste intervalo, e a rede flui para outras paragens. Ela se reorganiza
e se reestrutura para além de nossos olhos. Olhos estes de agentes temporários,
porem acionadores de nós tão bem atados que seus fluxos poderão ser
continuadamente alimentados por outros nós formados por agentes perenes,
chamados de Vocacionados.
Quando penso nos fundamentos
que ancoram uma organização em rede: -
Pertencimento: Participação, Vontade, Autonomia, Respeito - Organização:
Valores e objetivos compartilhados, Isonomia, Insubordinação, desconcentração
do poder, multi lideranca - Funcionamento: Coordenação, Cooperação, Democracia,
Comunicação, concluo que ao final e ao cabo suspendem-se os agentes, rompem-se
algumas conexões, vão-se alguns nós, ficam as possibilidades, permanece a
potencia.
Em se tratando de
Programa Vocacional é importante se ater ao fato de que "quem está em rede não é a instituição e sim as
pessoas que dela fazem parte". E é sobre as palavras ação, autonomia,
horizontalidade, cooperação, não hierárquico, autogoverno e conectividade que
ouso colocar luz e olhar para o Programa Vocacional; mesmo que em silêncio.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BRUM Eliane. A Vida que Ninguém vê. Editora
Arquipélago, 2006.
MARTINHO, Cássio. Redes - Uma Introdução às Dinâmicas
da Conectividade e da Auto-organização. Brasília: WWF - Brasil, 2003.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida – Uma nova compreensão
científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix/Amana-Key, 2001.
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