quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Fragmentos


Programa Vocacional Dança 2014
Ensaio de Pesquisa-Ação  por Elenita Queiroz
Coordenadora artístico-pedagógica equipe Sul 1
CEU Alvarenga
CEU Caminho do Mar
CEU Meninos
CEU Parque Bristol


FRAGMENTOS


    Fragmento n. 01

20 segundos

"Essa é uma época de incontinência verbal. Não sei se as pessoas falavam tanto assim antes. Sempre me surpreendo com a capacidade  que muitos tem de preencher todo o tempo e espaço com palavras, muitas vezes sem dizer nada. Sempre penso: o que aconteceria se por um momento elas silenciassem? Qual é a ameaça contida no silencio? Ou qual é o som  que não suportamos ouvir para precisar cobri-lo com o ruído ininterrupto de nossa voz? Vivemos com muito som  e pouca fúria."  (Eliane Brum)

      Vivemos com muito de tudo e pouco de nada.
      Muitas as palavras discorridas. Muitos os discursos. Poucos os olhares.Pouco. Tempo. Pouca. Pausa.
     A experiência da criação artística pressupõe um espaço de plenitude de estado e de tempo de experimentação. É preciso tempo para sentir. Sentir aquilo que está soterrado, escondido, disfarçado pelo lusco fusco dos holofotes. A fruição é tempo. Viver é tempo. Ser é estar no tempo. Tempo é vazio. Tempo é plenitude de olhar. Tempo que se dá à ação. Contemplação.
       Me é cada vez mais caro constatar o quanto de mim mesma me escapa pelo simples fato de não me ater ao que me passa, me toma, me acontece.  O que se perde de mim,  se acumula feito carcaça velha nas entranhas de minha carne, nas profundezas de meus olhos, na viscosidade da minha língua . Essa sensação se estende por além corpo, por além sopro, e se propaga como onda pelas esferas de minha existência. Toca um a um. E neste trajeto as palavras, como numa grande avalanche emudecem desejos, anseios, ações, olhares. E nunca nos são suficientes... nem as palavras, nem o tempo.
      O que mais precisa ser dito?
O Programa Vocacional, diz : Vocação, Voz. Me pergunto pois, como dar voz neste turbilhão de palavras sobrepostas, como fazer-se ouvir em meio a tantos ruídos? Como dar-se ao cuidado da escuta?
     Sinto falta do vazio que o vazio preenche, do tempo que o tempo dá, do silencio que o silêncio cria, de ser em ser.
      Em tempos ruidosos, talvez o que nos toque e nos mova seja o olhar.
      Olhar para ver. Silenciar para ser.  Calar para ouvir... a voz.


    Fragmento n. 02

Nós

      Desde o começo de minha atuação como coordenadora de equipe em 2014 no Programa Vocacional, e após ter trabalhado dois anos na função de Artista Orientadora, venho tentando entender a grande e complexa trama que dá forma ao Programa. Uma tessitura singular como nenhuma outra. Uma rede que se mostra como um emaranhado repleto de possibilidades e entraves, potências e idiossincrasias.
   Segundo Cassio Martinho, pesquisador do fenômeno da organização em rede, "Rede é um padrão de organização constituído de elementos autônomos que, de forma horizontal, cooperam entre si; um modo não hierárquico de colaboração; um fenômeno organizacional capaz de autogoverno, produzido por uma dinâmica de conectividade". Traçando livremente uma analogia à essa forma de organização, podemos pensar que cada elemento que compõe o Programa Vocacional ou com ele interage de alguma forma: artista orientador, coordenador, vocacionado, coordenadores de NAC (Núcleo de Ação Cultural dos CEUs), gestores de equipamentos, com suas especificidades e singularidades, é um agente em potencial.
     Uma rede só existe concretamente quando estes agentes tornam-se um nó conectivo, ou seja, quando estabelece-se entre estes dois ou mais agentes uma conexão de alguma ordem. Quando isto ocorre, este agente torna-se um  nó conectivo. É neste momento que configura-se a rede.
     Agir em rede é estabelecer conexões, e, por conexões entende-se colocar-se em relações concretas. Uma conversa, ou uma aproximação entre agentes pode gerar uma pré conexão mas ainda não se configura como rede. A mesma só se torna real quando há de fato uma ação por parte dos agentes, mesmo que no campo virtual. Entende-se por ação qualquer mecanismo que movimente algo, que gere, que produza. Uma ideia por si só não pressupõe uma rede, ela assim o é quando lançada aos outros agentes e compartilhada pelos mesmos em cadeia, gerando ações concretas, um fluxo de movimento.
     Podemos trabalhar com agentes conhecidos, ou não. A estrutura do Programa Vocacional é composta por pessoas que conhecemos e outras que desconhecemos, no entanto, apesar de não as conhecermos no sentido mais explicito da palavra, sabemos ou temos alguma suspeita da existência das mesmas. Este conglomerado todo (de conhecidos e desconhecidos) é uma rede em potencial. É importante frisar que, para que a rede se concretize de fato e se faça presente, é necessário que haja seu acionamento, o qual se dá através dos agentes. Acionar os agentes implica numa sinergia de interesses, ideologias e afinidades em comum, direcionadas à determinado assunto ou proposta. Assim, e só assim, é possível estabelecer a rede e potencializar seu fluxo.
        O AO, quando está em ação junto aos vocacionados propondo procedimentos e reflexões numa relação horizontal e não hierárquica (Mestre Ignorante),  estabelece uma rede. Este mesmo AO é o nó conectivo que interliga estas pessoas à uma outra rede pré-estruturada constituída pelos demais AOs da equipe e seu respectivo coordenador artístico-pedagógico. O Coordenador de equipe, por sua vez, é o nó conectivo que liga esta rede àquela formada pelos coordenadores de linguagem; e assim por diante. Podemos estender este mesmo raciocínio às demais esferas de organização do Programa (AO+vocacionado, vocacionado+vocacionado, coordenador+AO, coordenador+coordenador).
      Como os agentes de uma rede não são estáticos e as relações fluidas, os nós conectivos também o são, podendo migrar e estabelecer novas conexões e assim encadear novas redes. O que se percebe é um movimento constante, porém instável e não linear de estabelecimento de redes, maiores e/ou menores que variam segundo as circunstancias.
      A potencia de uma rede não é necessariamente proporcional ao seu tamanho, mas está diretamente associada à densidade do vinculo entre os agentes em relação ao poder mobilizador do assunto ou proposta propulsora/acionadora, a qual está intrinsecamente relacionada  aos interesses, afinidades, ideologias dos agentes e ao comprometimento de uns com os outros e com as propostas.
      Quando falamos de ações e reverberações nas instâncias do micro e do macro, estamos falando de ações que acionam mais ou menos agentes e assim estabelecem mais ou menos nós conectivos. Estamos falando de  redes maiores e menores em escala, mas não em potência. A qualidade de uma rede se constrói na possibilidade do encontro, sendo que a melhor forma de estabelecer uma rede é "olho no olho", e é neste ponto que ressalto a importância das trocas presenciais dentro do Programa Vocacional.


    Fragmento n. 3

Gap

"... diversas estruturas organizativas que se apresentam com o nome de rede definitivamente não o são em função de sua arquitetura vertical, da decisão centralizada e de seu perfil não-participativo e autoritário de gestão. " (Capra)

             
      Apesar de inserido num contexto institucionalizado, com uma figura central que toma as decisões politicas/estruturais do Programa, sua base relacional me parece muito mais vocacionada para a horizontalidade do que para uma construção hierarquizada. O enxergo como rede pois a sua estrutura dia a dia, na linha de frente, na ação direta no equipamento, o que faz dele o que é, essa grande e macro estrutura de funcionamento baseado em micro organizações que se auto organizam e se conectam livremente, a meu ver, está mais próxima do conceito de rede, de um padrão horizontal das relações. Uma rede móvel, viva, pulsante que tenta se engendrar por um universo árido, solitário, seco, castrador, delimitado por fronteiras que apesar de invisíveis, erguem-se sólidas como rocha e movem-se com a destreza de um bagre, procurando a todo momento barrar, conter e cercear o fluxo dessa rede de agentes, microorganismos vivos - Vocacional.
     Sob esta perspectiva, o Vocacional é uma grande rede formada por nós conectivos de intensa singularidade e possibilidade geradora, uma vastidão de seres pensantes e atuantes em constante transito pela cidade. Um transito caótico cheio de entraves, curvas perigosas, vias expressas, ruas hora livres, hora totalmente congestionadas. Trajetos pelos quais não se sabe ao certo para onde levam, nem quantos, ou quais  serão os obstáculos a frente.
      Neste transitar (de região em região, de equipe em equipe, de CEU a CEU) mudam-se as paisagens, mudam-se as ideias, mudam-se os modos e meios de trabalho, mudam-se os atores. E o que fica? O que permanece?
      Num primeiro momento pode-se ter a ilusão de que a rede foi rompida, mas não; ela esta se reorganizando através da conexão de outros agentes. Outros nós conectivos se formam neste intervalo, e a rede flui para outras paragens. Ela se reorganiza e se reestrutura para além de nossos olhos. Olhos estes de agentes temporários, porem acionadores de nós tão bem atados que seus fluxos poderão ser continuadamente alimentados por outros nós formados por agentes perenes, chamados de Vocacionados. 
      Quando penso nos fundamentos que ancoram uma organização em rede: - Pertencimento: Participação, Vontade, Autonomia, Respeito - Organização: Valores e objetivos compartilhados, Isonomia, Insubordinação, desconcentração do poder, multi lideranca - Funcionamento: Coordenação, Cooperação, Democracia, Comunicação, concluo que ao final e ao cabo suspendem-se os agentes, rompem-se algumas conexões, vão-se alguns nós, ficam as possibilidades, permanece a potencia.
      Em se tratando de Programa Vocacional é importante se ater ao fato de que "quem está em rede não é a instituição e sim as pessoas que dela fazem parte". E é sobre as palavras ação, autonomia, horizontalidade, cooperação, não hierárquico, autogoverno e conectividade que ouso colocar luz e olhar para o Programa Vocacional; mesmo que em silêncio.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRUM Eliane. A Vida que Ninguém vê. Editora Arquipélago, 2006.
MARTINHO, Cássio. Redes - Uma Introdução às Dinâmicas da Conectividade e da Auto-organização. Brasília: WWF - Brasil, 2003.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida – Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix/Amana-Key, 2001.

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