Desenhos... Pinturas... O corpo-pincel
por Igor Gasparini
Artista Orientador do CEU Formosa
Equipe Leste 1 - Coordenação: Cláudia Palma
Desenhos...
Pinturas... O corpo-pincel
Muitos são os anseios
que me trouxeram, neste ano, para o Vocacional. Embora já tenha inclusive pesquisado
o Vocacional Apresenta como estudo de
caso na monografia de Especialização em Jornalismo Cultural pela PUC-SP, com
ênfase na comunicação entre espetáculo e público, ainda não havia conseguido
abrir espaço para me dedicar ao Programa como Artista Orientador. Em 2014, interrompi
o meu trabalho como jornalista para dedicar-me exclusivamente à dança: na
prática, nas aulas, no T.F.Style Cia de Dança, na pesquisa e no Vocacional.
Não sei identificar bem
quais são os limites de cada uma dessas atuações, visto que penso em todas elas
interconectadas quando revejo minha trajetória na dança. Entretanto, consigo
perceber que há algo que interliga todas essas ações: a minha vontade comunicativa por meio da dança.
Acredito na importância de um trabalho que promova um diálogo com o público,
que o leve a refletir, pensar, questionar. Não defendo que deva haver um
entendimento completo da obra, mas eu, enquanto artista, devo apresentar
caminhos para que o público possa encontrar suas formas de interpretação. E o
meio utilizado para essa comunicação é o corpo, mídia de si mesmo, que por si
só, já apresenta um fluxo constante de troca de informações, segundo a Teoria
Corpomídia, (KATZ e GREINER, 1998).
A comunicação ocorre
permanentemente na relação entre corpo e ambiente. Todo corpo, humano ou não,
existe e pode ser chamado de corpo quando puder ser identificado por uma
coleção circunscrita de informações que não para de se transformar. “Meio e
corpo se ajustam permanentemente num fluxo inestancável de transformações e
mudanças” (KATZ e GREINER, 1998, p. 91). A comunicação é então tecida por esse
ajuste contínuo de transformações.
Sendo cada corpo uma mídia
de si mesmo, isto é, do conjunto circunstancial de informações que o torna
corpo e que nunca se completa, é possível afirmar que os processos de
comunicação no ambiente não se estancam, visto que o fluxo de trocas entre
ambos é constante. É no fluxo comunicacional que corpo e ambiente lidam com as
informações, e elas buscam a sua sobrevivência através da adaptação e da
reprodução. É neste ponto que se inscreve o meu momento profissional atual e
muito do que vejo como potencial nos Vocacionados, pois cada corpo que chega às
orientações já traz consigo toda a sua coleção de informações, de histórias, de
memórias.
E foi com o corpo, ou com vários deles, que trabalhei neste ano no CEU Formosa.
Corpos bastante distintos e com variadas potencialidades, do jovem ao idoso, Vocacionados
com e sem experiência na dança, e até portadores de necessidades especiais. Essa heterogeneidade apresentou a mim
uma paleta de muitas cores, cada
corpo com seu potencial criativo, com sua história de vida, com sua vontade comunicativa, dançando... E
pintando... E dançando.
Desenvolvi
alguns processos criativos e a pintura norteou
a investigação. Inspirados ora pela música, ora por técnicas variadas entre as
danças urbanas e contemporâneas, ora por laboratórios, ora por experiências
bastante individuais, tentamos descobrir esse corpo-pincel. E, com ele,
muitas telas foram pintadas: com e no próprio corpo, no corpo do outro; chão,
paredes, objetos e teto; dentro e fora do espaço dos encontros; no teatro; na
gestão.
O
corpo-pincel, por ser mídia de si
mesmo, desenhou sua história. E cada Vocacionado pintou suas memórias e imprimiu
nos gestos toda a sua experiência pessoal. A cada encontro foram desenvolvidas novas
iniciativas de trabalho, novos disparadores;
partes do corpo tornam-se pincéis; e cada um trouxe cada vez mais tinta
para nossa grande tela.
Formas
imaginárias ganharam contornos no papel e do papel, dança. Com pequenas
intervenções, foram interagindo nas formas um do outro, seja na “tela”,
seja no corpo-pincel. E das
intervenções, novas formas, novos desenhos, novos contornos. Esse procedimento
foi um dos escolhidos para a Mostra de
Processos, no qual os Vocacionados, em interação com o público, solicitavam
às pessoas que colocassem uma forma (ou um desenho) em um papel para, a partir
disso, disparar a última dança da Mostra.
Ainda pensando no
processo ao longo deste ano, em outro momento, a dança a partir da escolha de
imagens que compõe o material educativo da 29ª Bienal de Arte de São Paulo para,
então, resultar em reflexões múltiplas propostas e desencadeadas pelas próprias
imagens. Dentre as muitas reflexões: Será possível superar a diferença entre as
pessoas? Como a arte e a performance podem ter natureza transformadora? Como
nossos gestos revelam quem somos e o que vivemos? A diferença pode ser matéria
de interesse para a obra de arte? Um projeto de arte pode ser coletivo? O que é
arte? Para que serve a arte? Em geral, tais questionamentos refletem
diretamente o processo desenvolvido e a realidade dos Vocacionados dentro do
contexto do Programa.
Gostaria
ainda de trazer duas ações realizadas neste período que trouxeram ainda mais
tinta para essas reflexões. Com a equipe Leste
1, coordenada por Cláudia Palma, visitamos a exposição de Iberê Camargo no Centro
Cultural Banco do Brasil e muitas foram as sensações colocadas na “gaveta dos
guardados” (Iberê Camargo, 1993), além das reflexões que reverberam diretamente
no trabalho com os Vocacionados. Cada obra de Iberê, notadamente, traz muitas
camadas. E, a partir disso, veio a reflexão: Quantas camadas tem a dança?
Conseguimos ver ou identificar essas camadas quando assistimos alguém dançando?
Quais são as camadas mais profundas, aquelas que servirão de base para esses
artistas, e quais são as mais superficiais e até descartáveis?
(Exposição Iberê Camargo - Centro Cultural Banco do Brasil)
A partir do vídeo que
mostrava o “processo” desenvolvido por Iberê, uma nova potente reflexão: “A
gente passa por muitas coisas lindas para chegar nesta coisa ótima”. Quantas
vezes neste processo criativo, desenvolvido por 8 meses, atravessamos bons
momentos, mas que são modificados ou remodelados? Às vezes precisamos carcar
mais a tinta, às vezes apagar, borrar, misturar as cores. E desses vários
momentos, o resultado não pode ser outro: chegamos a essa coisa ótima. Será?
Em
um segundo momento, houve a visita com os Vocacionados à exposição Obsessão Infinita, de Yayoi Kusama, no
Instituto Tomie Ohtake. A ideia de visitar essa exposição surgiu em um encontro
no qual conversei bastante com duas Vocacionadas portadoras de necessidades
especiais. A vontade de visitarmos um espaço expositivo, tendo em vista o
processo que temos desenvolvido, já existia. Entretanto, nesta conversa, as
duas meninas contaram várias dificuldades que enfrentaram em suas vidas, sendo consideradas
loucas por muitos e excluídas de
vários contextos. O relato de uma delas, dizendo que, ao entrar na primeira
série com 13 anos de idade, sentia-se muito mal porque as meninas atiravam
papel nela e a chamava de louca, me fez refletir: o que é a loucura? De onde
surge a arte? Por que não da insanidade que todo artista traz consigo? Por que
não por meio dos excluídos? Por que não no CEU Formosa? Automaticamente pensei
no Bispo do Rosário, artista visual, mas também na exposição em questão, refletindo
sobre Yayoi Kusama que, voluntariamente, vive em uma instituição psiquiátrica
desde 1977.
(Exposição "Obsessão Infinita" - Yayoi Kusama - Instituto Tomie Ohtake)
E
entre círculos, bolas, pontos, e símbolos fálicos, o que mais nos chamou a
atenção foram as múltiplas obsessões, não da artista, mas de todos os que ali
estavam. Obsessão pela fila: parece que quanto maior, melhor. Se há fila,
lógico que é bom. Vamos nos aglomerar por quilômetros e andar passo a passo até
adentrar o grande espaço expositivo. Para que mesmo? Talvez para levar uma
recordação e gabar-se de tal “prêmio”.
E a obsessão pela #selfie; com todos os sintomas de alguém
com sérios transtornos obsessivos compulsivos. A obsessão por registrar o
momento; para levar consigo seu souvenir;
para postar sua foto nas redes sociais. Mas... E a experiência? E o olhar? E a
sinestesia? Também não era possível, pois uma voz vinha do fundo de cada sala:
“Um passo adiante, por favor!”; afinal, estava tão lotado que nem para sentir,
nem para a #selfie, havia tempo.
Fui embora um tanto
incomodado com isso, afinal, loucos poderiam ser muitos daqueles, menos minhas
Vocacionadas que motivaram tal visita. Mas, enfim, voltemos ao processo, e que tal
pesquisarmos a obsessão? Novas linhas foram desenhadas, linhas curvas, na
verdade, com movimentos circulares, redondos, contínuos...
E a partir de então,
era o momento de pensar a Mostra de
Processos. “O processo se engendra de maneira cooperativa, com a
participação de todos os artistas envolvidos, que atuam conjuntamente no
decorrer da própria pesquisa de linguagem. As opções cênicas, nesse caso, não
surgem como determinações vindas de fora,
mas de dentro das experimentações,
possibilitando uma investigação coletiva de caráter processual” (DESGRANGES,
2012, p. 205). Esse trecho extraído do livro “A Inversão da Olhadela:
alterações no ato do espectador teatral” resume bem a minha atuação com os
Artistas Vocacionados. Em nenhum momento busquei impor algo (de fora), mas eles próprios foram
encontrando caminhos (de dentro) que
surgiram a partir das várias inquietações corporais e reflexivas desenvolvidas
ao longo do ano. O que te move? Qual a busca? Quais questões lhe inquietam? E a
partir disso, trabalhamos muito pela improvisação, tentando ao máximo
diversificar os disparadores dessa dança, sempre atrelado às sensações e à
individualidade.
Aos poucos, fomos
percebendo que não era da individualidade que trataríamos, mas da
singularidade, pois é esta que nos torna únicos. Cada corpo, com suas histórias
(como já abordado neste texto), com sua coleção circunscrita de informações que
se torna mídia de si mesmo, desenhando e pintando... Trazendo à tona suas emoções,
desejos e todos os outros elementos de nosso estado criador interior. “A
definição de um roteiro prévio fornecerá as bases para a improvisação, e o
artista irá à cena, permitindo-se viajar pelo inconsciente” (STANISLAVSKI,
2005, p. 257). E nas Mostras, este
inconsciente veio à cena, interpretado pela singularidade dos Artistas
Vocacionados do CEU Formosa, com todo o seu potencial de corpo, expressando seu
interior.
DESGRANGES,
F. A Inversão da Olhadela: alterações no ato do espectador teatral. São Paulo:
Hucitec Editora, 2012.
KATZ,
H.; GREINER, C. A natureza cultural do corpo. In Lições de Dança 3. Org.:
Silvia Soter Roberto Pereira. Rio de Janeiro: Univercidade, 1998.
STANISLAVSKI,
C. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
(Vocacionados, Artista-Orientadores, Coordenadores - CEU Formosa)
Marcadores: CEU Formosa, corpo-pincel, Dança, Equipe Leste 1, Igor Gasparini, vocacional
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