Culturas tradicionais brasileiras e o Programa Vocacional Novas ferramentas para criação e ação social.
Culturas
tradicionais brasileiras e o Programa Vocacional
Novas ferramentas para criação e ação
social.
Por Andrea
Soares (Andrea Costa Soares)
“As
culturas devem aprender umas com as outras, e a orgulhosa cultura ocidental,
que se colocou como cultura docente, deve tornar-se também uma cultura
aprendiz. Compreender é também reaprender constantemente.” (MORIN, 1999, pp.
108 e 109)
Após três anos de intensos processos ligados ao
Vocacional Dança e dois anos de afastamento do Programa em busca de uma
organização teórica sobre minha pesquisa artística, voltei a atuar como Artista
Orientadora em 2014 com muitas conexões feitas e com o desejo de costurar
pontos da pesquisa com a realidade do Programa.
Na primeira reunião pedagógica de 2014, e agora sem
bem saber por que caminhos instaurou-se o comentário, falou-se sobre
manifestações tradicionais da cultura brasileira e, em meio ao debate, surgiu a
frase “é que para eles a arte é a vida mesma”. Tal afirmação encaixou-se no
constatado por mim em anos de pesquisas de campo. Algumas com focos bem
definidos e objetivos previamente planejados, outras apenas pela alegria de
poder partilhar deste “estado de arte” latente em boa parte destas comunidades.
Naquele momento, e já sabendo da oportunidade de
propor ao Programa ensaios teóricos que se relacionassem com o nosso universo
de trabalho, vislumbrei uma ponte que, de alguma forma, talvez já tivesse me
visitado a mente, mas não de maneira tão clara: se a arte, para estas
comunidades, é a vida mesma, isto só é possível porque a arte, enquanto fruto
da capacidade criadora, é inerente ao ser humano. Qualquer ser humano!
Esta reflexão, por si só, já se coloca como uma
costura com o Programa Vocacional, por estar na base de seus princípios a
crença de que todo ser humano é capaz de expressar-se através da arte, em suas
múltiplas formas de expressão.
Mas, indo mais fundo na reflexão, deparei-me com mais
uma ponte entre a cultura tradicional brasileira, a criação contemporânea e os
processos em sala de aula, conexões que venho experimentando há muitos anos, em
diferentes contextos sociais e profissionais. Olhando para os públicos que o
Programa Vocacional atende percebemos que há, nestes universos, muitas
complexidades: diferentes gêneros, faixas etárias, classes sociais, etnias, que
se misturam e multiplicam em desejos expressivos diferentes. Some-se a isto a
relação que se estabelece com as peculiaridades de cada região dentro da cidade
de São Paulo. São muitos mundos dentro de uma mesma cidade... Mas da raiz
destes mundos vem a mesma seiva que nos faz brasileiros, ricos pela mistura que
somos, que não é única, mas é díspar de qualquer outro povo.
Compreender esta mistura, e como ela reverbera na
nossa forma de nos entendermos como “ser” no mundo, é um elemento fundamental
no estabelecimento das relações horizontais entre Artistas Orientadores e
Artistas Vocacionados. Neste sentido, o princípio do “Mestre Ignorante”
(Rancière, 2007) amplia-se para um olhar crítico para nossa cultura ocidental, base
primeira de nossa educação e, em muitos casos, única na nossa formação estética
e também na nossa maneira de olhar a cultura como um todo. Perspectivas de uma
educação calcada nos valores greco-romanos que se coloca hierarquicamente acima
no diálogo que estabelece com as culturas populares, tradicionais ou não.
Segundo o princípio do Mestre Ignorante, a construção
de processos criativos são fruto da colaboração de ambas as partes envolvidas
na busca da construção de um conhecimento comum. Neste sentido tais processos
passam obrigatoriamente pela transformação do olhar dos envolvidos, e pelo
refinamento crítico embasado na contextualização dos universos em jogo,
colocando a questão do “gosto” com algo intrínseco a este contexto. Nesse
sentido, o contato com comunidades tradicionais nos ensina que há muitas
belezas que escapam ao padrão estético ocidental, mas podem dialogar com ele,
propondo novos horizontes para a criação e apreciação.
Aberta esta via de comunicação, estas manifestações
tradicionais podem servir-nos como inspiração em múltiplos âmbitos, a partir de
sua relação com os princípios e objetivos do Programa Vocacional. Em seu sítio
virtual, Blog da Divisão de Formação Artística e Cultural o Vocacional
define-se da seguinte forma::
“O Programa Vocacional tem como objetivo a instauração
de processos criativos emancipatórios por meio de práticas
artístico-pedagógicas. Nesse contexto, abrem possibilidades de o indivíduo se
tornar sujeito de seus próprios atos e seus próprios percursos. Para tanto,
essas práticas artístico-pedagógicas buscam a apropriação dos meios e dos modos
de produção ao instaurar novas formas de convivência, territórios de
aprendizado e de transformação mútua.”
Partindo deste objetivo
principal, destrincho algumas relações possíveis entre processos artísticos
deflagradores de autonomia e emancipação e a cultura popular tradicional
brasileira chamando atenção para os vários brasis que habitam a cidade de São
Paulo, em suas mais diversas regiões e classes sociais.
O processo de migração
para São Paulo deu-se, em sua maioria, numa condição que subjuga os migrantes
ao sistema que move a cidade em todos os seus âmbitos: econômico, cultural,
social, etc. Para aqueles que chegam, é preciso adaptar-se rapidamente para
garantir seu espaço mínimo de sobrevivência, mesmo que isso signifique abrir
mão de muitas coisas, entre elas o seu passado, seus costumes, suas crenças.
Após 13 anos atuando em
São Paulo como arte educadora social nas linguagens de teatro e dança, e
disseminadora dos conhecimentos colhidos junto a comunidades tradicionais do
Brasil, não foram poucas as vezes que observei o processo transformador de
jovens e adultos em sala de aula, partindo da “vergonha” de sua herança
cultural em direção ao orgulho de descobrir-se herdeiro de um legado que seus
pais e suas outras relações sociais omitiram ou precisaram esquecer para
recolocarem-se socialmente na “nova vida”.
Também foram igualmente belos os resgates sociais
deflagrados a partir da reverberação dos processos vividos em sala de aula e
levados aos seus outros ciclos sociais, fazendo que familiares destes alunos
revelassem aos mesmos o percurso vivido antes deste “esquecimento defensivo”.
O fato é que, como disse
Patrick Sériot:
“O país é a cultura. A cultura são as tradições e o
respeito que nós devemos ter em relação a ela, e não unicamente à cultura do
momento presente. Sem conhecer a cultura de uma sociedade, torna-se impossível
de nela educar um homem tendo consciência de sua própria dignidade, tendo
respeito por si próprio, seu país e seu povo. O respeito dos outros supõe em
primeiro lugar o respeito por si próprio, e por consequência, o conhecimento de
si, de seu povo e de seu próprio passado.” (TRUBACEV, in SÉRIOT, 1999, p. 34)
Sendo o Brasil um país
vasto geográfica e culturalmente, esse sentimento de pertencimento é algo
bastante complexo. Identificamo-nos, sim, enquanto brasileiros, mesmo desconhecendo
muito do que nos foi dado enquanto legado cultural. Muito do nosso gosto, dos
nossos costumes cotidianos, práticas culturais entranhadas em nós são fruto de
uma reorganização em vários âmbitos destas heranças culturais que desconhecemos
e desconsideramos, despotencializando nosso estar no mundo, enquanto
subjetividade, coletividade e enquanto sociedade civil. Enquanto Nação.
A partir desta
constatação, organizo a relevância da interação com as culturas populares
tradicionais brasileiras em dois grandes âmbitos: o político e o estético,
considerando-se aqui como político tudo que concerne à vida das pessoas em
sociedade, atuando umas sobre as outras a partir de seus próprios atos.
A construção da
autonomia do indivíduo, no sentido de muni-lo de ferramentas para a cidadania e
para a ética, passa necessariamente pelo autoconhecimento e pelo reconhecimento
de seus valores, construídos com base na alteridade. Porém, na sociedade em que
vivemos a hierarquização de valores culturais, étnicos, de gênero, etc. age de
forma opressora contra alguns cidadãos, fazendo com que os mesmos se sintam
diminuídos por sua condição, ou mesmo com que neguem ou não se reconheçam na
mesma.
Ao longo do tempo, estas
“contenções” em torno de sua subjetividade, ou mesmo o sentimento de desencaixe
dentro desta ordem rotuladora pré-estabelecida, geram choques sociais de
incompreensão mútua (MORIN, 1999) e uma despotencialização social e criativa.
Muitas vezes, existir passa a ser um simples estar, sem desejos, sem esperanças,
sem horizontes.
Nesse sentido, para além
da identificação com matrizes culturais e étnicas, as manifestações artísticas
da cultura tradicional brasileira, em especial as espetaculares, servem a programas
como o Vocacional porque são fruto da necessidade de suas comunidades originais
de interagirem socialmente; de vivenciar o lazer; de expressar e refletir sobre
questões cotidianas; de viver arte. E isto faz com que sua própria estrutura,
forma e aprendizado privilegiem a construção coletiva.
O aprendizado por
observação e repetição, a construção de estruturas uníssonas de movimento; a
ocupação espacial orientada para o coletivo; o jogo; a ludicidade são
características que, mesmo reforçando a interação grupal, está a serviço da
alteridade quando permite que cada indivíduo seja, a sua maneira e
subjetividade, parte de uma engrenagem maior que se move a partir da presença
de todos.
Com uma pesquisa séria,
onde a contextualização destas manifestações e sua fundamentação estejam claras
para o artista-orientador, elas podem se transformar em matéria prima para
procedimentos disparadores ou consolidadores de processos criativos e de
(re)construção de autonomias. A construção destes procedimentos a partir das
necessidades identificadas pelo artista-orientador – e não a simples
transposição de passos, músicas, gestos, brincadeiras, etc. – amalgama as
relações apontadas como favoráveis a construção de um conhecimento crítico, de
acordo com o que defende Paulo Freire (FREIRE, 2011) para a construção da
autonomia, tornando-se uma ferramenta potente para os objetivos do Programa
Vocacional.
Ao olharmos para estas culturas populares tradicionais
brasileiras sob o enfoque estético, desvencilhados das amarras que nos limitam
a apreciação, podemos, também, identificar preciosas ferramentas para o
trabalho criativo junto a grupos vocacionados.
Estas ‘amarras’ são, na verdade, rótulos e formatos
estéticos que reconhecemos como padrões “oficiais” ou “normais” de criação em
arte, construídos a partir das referências etnocêntricas, guiadas em sua
maioria pela cultura ocidental greco-romana ou por outras culturas já
assimiladas por esta, muitas vezes de forma pasteurizada e descontextualizada,
como é o caso de algumas culturas orientais, ou mesmo da arte africana.
Neste sentido, também o papel do artista-orientador é
fundamental no que se refere à pesquisa, pois depende de seu olhar a forma com
que estas culturas chegarão aos seus vocacionados, produzindo uma ampliação de
horizontes estéticos, ou, por outro lado, perpetuando visões hierarquizantes e
preconceituosas com relação a estas culturas e sua produção artística.
O fato é que, apesar de
elas ocuparem, no senso comum, um lugar de “coisa do passado”, de “folclore”,
muitas vezes estas culturas e sua produção artística se aproximam muito do que
para nós, artistas ditos “contemporâneos”, é vanguarda. Isso pode ser
especialmente observado quando pensamos nas artes do espetáculo.
Quando nos debruçamos na
produção cênica contemporânea percebemos que ela tem apresentado em sua busca algumas
características que podem ser identificadas nas manifestações espetaculares
tradicionais brasileiras de forma espontânea. Ou seja, sem que tenham sido
fruto de uma especulação prévia em trono da forma ou do conteúdo, mas, talvez,
pela necessidade mesma de agregar a comunidade em torno daquela vivência
artística.
Nesta confluência com a produção cênica contemporânea,
podemos observar como características comuns: a interação entre expressões
artísticas – dança, teatro, música, artes visuais – e a dissolução de
fronteiras entre elas; a estreita relação entre artistas e público, incluindo a
possibilidade de interação direta entre ambos; a utilização do espaço público
ou alternativo como local para a cena e a diversidade em relação a esta
utilização; as fronteiras tênues entre vida e arte para os artistas.
Na verdade, se pensarmos
sob um enfoque histórico-cronológico, facilmente perceberemos que, mesmo sem
comumente darmos à tradição estes créditos, estas formas espetaculares já existiam
em culturas tradicionais de diversos lugares do mundo bem antes de catalogarmos
as expressões artística como fazemos atualmente.
Isso também nos faz pensar que, em sua origem, estas
manifestações não estão necessariamente encaixadas nestes rótulos prévios,
construídos a partir daquele pressuposto estético ocidental. Sendo tantas
expressões artísticas numa mesma cena, elas não podem ser definidas em sua
totalidade como nenhuma delas.
Ao mesmo tempo, por carregarem em seu âmago a essência
de nossas matrizes étnicas, estas manifestações atuam como um eco longínquo,
que reverbera dentro de nós a cada vez que as vivenciamos, quase sempre de
forma crescente, retroalimentando uma “intimidade” estética com aquele universo
que, num primeiro momento, nos parece tão díspar e estranho.
A combinação entre estes dois perfis – político e
estético – na utilização destas referências da cultura tradicional como
ferramenta na construção de processos criativos emancipatórios traz ainda outra
vantagem: a originalidade destes processos.
A vastidão de culturas, práticas, musicas, gestos,
saberes, movimentos, mitos, etc., contidos em nossa cultura nos permite tecer
combinações múltiplas entre forma e conteúdo, capazes de gerar estados de
presença potentes diante do público que, assistindo às criações, poderá acessar
estas camadas adormecidas de ancestralidade soterrada por padrões estéticos
corriqueiros.
A tarefa, portanto, parte do artista-orientador, no
sentido de que são seu norte, perspicácia e inventividade os motores mínimos
necessários para provocar os vocacionados, fazê-los desvelar suas conexões
sócio-antropológicas, e munir-se das mesmas como ferramenta de proposição para
uma cena outra, que paira entre as necessidades expressivas do agora, e a força
expressiva deste legado ancestral, atingindo o público e – idealmente – gerando
alguma reflexão sobre estas conexões que se estabelecem entre cidadania e arte.
REFERÊNCIAS
DIVISÃO DE
FORMAÇÃO ARTÍSTIFCA E CULTURAL. Vocacional. Publicado em: http://formacaoartecultura.blogspot.com.br/p/programa-vocacional.html
Consultado em 27/10/2014.
FREIRE, Paulo.
Pedagogia da Autonomia. São Paulo:
Ed. Paz e Terra, 2011.
MORIN, Edgar.
Os sete saberes para a educação. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido
do Brasil. São Paulo: Cia.
das Letras, 1995.
SÉRIOT, Patrick. Anamnésia da língua russa e a busca de identidade na Rússia. In,
INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro (org). Os múltiplos territórios da
análise do discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999.
RANCIÈRE, Jacques.
O mestre ignorante: cinco lições sobre a
emancipação intelectual. Belo Horizonte: Ed. Autênica, 2004.
Marcadores: ação social, Andrea Soares, CEU Jaguaré, cidadania, culturas tradicionais brasileiras, Equipe Centro-Oeste, Vocacional Dança
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