domingo, 23 de novembro de 2014

Culturas tradicionais brasileiras e o Programa Vocacional Novas ferramentas para criação e ação social.


Culturas tradicionais brasileiras e o Programa Vocacional
Novas ferramentas para criação e ação social.

                                   Por Andrea Soares (Andrea Costa Soares)



“As culturas devem aprender umas com as outras, e a orgulhosa cultura ocidental, que se colocou como cultura docente, deve tornar-se também uma cultura aprendiz. Compreender é também reaprender constantemente.” (MORIN, 1999, pp. 108 e 109)

Após três anos de intensos processos ligados ao Vocacional Dança e dois anos de afastamento do Programa em busca de uma organização teórica sobre minha pesquisa artística, voltei a atuar como Artista Orientadora em 2014 com muitas conexões feitas e com o desejo de costurar pontos da pesquisa com a realidade do Programa.
Na primeira reunião pedagógica de 2014, e agora sem bem saber por que caminhos instaurou-se o comentário, falou-se sobre manifestações tradicionais da cultura brasileira e, em meio ao debate, surgiu a frase “é que para eles a arte é a vida mesma”. Tal afirmação encaixou-se no constatado por mim em anos de pesquisas de campo. Algumas com focos bem definidos e objetivos previamente planejados, outras apenas pela alegria de poder partilhar deste “estado de arte” latente em boa parte destas comunidades.
Naquele momento, e já sabendo da oportunidade de propor ao Programa ensaios teóricos que se relacionassem com o nosso universo de trabalho, vislumbrei uma ponte que, de alguma forma, talvez já tivesse me visitado a mente, mas não de maneira tão clara: se a arte, para estas comunidades, é a vida mesma, isto só é possível porque a arte, enquanto fruto da capacidade criadora, é inerente ao ser humano. Qualquer ser humano!
Esta reflexão, por si só, já se coloca como uma costura com o Programa Vocacional, por estar na base de seus princípios a crença de que todo ser humano é capaz de expressar-se através da arte, em suas múltiplas formas de expressão.
Mas, indo mais fundo na reflexão, deparei-me com mais uma ponte entre a cultura tradicional brasileira, a criação contemporânea e os processos em sala de aula, conexões que venho experimentando há muitos anos, em diferentes contextos sociais e profissionais. Olhando para os públicos que o Programa Vocacional atende percebemos que há, nestes universos, muitas complexidades: diferentes gêneros, faixas etárias, classes sociais, etnias, que se misturam e multiplicam em desejos expressivos diferentes. Some-se a isto a relação que se estabelece com as peculiaridades de cada região dentro da cidade de São Paulo. São muitos mundos dentro de uma mesma cidade... Mas da raiz destes mundos vem a mesma seiva que nos faz brasileiros, ricos pela mistura que somos, que não é única, mas é díspar de qualquer outro povo.
Compreender esta mistura, e como ela reverbera na nossa forma de nos entendermos como “ser” no mundo, é um elemento fundamental no estabelecimento das relações horizontais entre Artistas Orientadores e Artistas Vocacionados. Neste sentido, o princípio do “Mestre Ignorante” (Rancière, 2007) amplia-se para um olhar crítico para nossa cultura ocidental, base primeira de nossa educação e, em muitos casos, única na nossa formação estética e também na nossa maneira de olhar a cultura como um todo. Perspectivas de uma educação calcada nos valores greco-romanos que se coloca hierarquicamente acima no diálogo que estabelece com as culturas populares, tradicionais ou não.
Segundo o princípio do Mestre Ignorante, a construção de processos criativos são fruto da colaboração de ambas as partes envolvidas na busca da construção de um conhecimento comum. Neste sentido tais processos passam obrigatoriamente pela transformação do olhar dos envolvidos, e pelo refinamento crítico embasado na contextualização dos universos em jogo, colocando a questão do “gosto” com algo intrínseco a este contexto. Nesse sentido, o contato com comunidades tradicionais nos ensina que há muitas belezas que escapam ao padrão estético ocidental, mas podem dialogar com ele, propondo novos horizontes para a criação e apreciação.
Aberta esta via de comunicação, estas manifestações tradicionais podem servir-nos como inspiração em múltiplos âmbitos, a partir de sua relação com os princípios e objetivos do Programa Vocacional. Em seu sítio virtual, Blog da Divisão de Formação Artística e Cultural o Vocacional define-se da seguinte forma::

“O Programa Vocacional tem como objetivo a instauração de processos criativos emancipatórios por meio de práticas artístico-pedagógicas. Nesse contexto, abrem possibilidades de o indivíduo se tornar sujeito de seus próprios atos e seus próprios percursos. Para tanto, essas práticas artístico-pedagógicas buscam a apropriação dos meios e dos modos de produção ao instaurar novas formas de convivência, territórios de aprendizado e de transformação mútua.”

            Partindo deste objetivo principal, destrincho algumas relações possíveis entre processos artísticos deflagradores de autonomia e emancipação e a cultura popular tradicional brasileira chamando atenção para os vários brasis que habitam a cidade de São Paulo, em suas mais diversas regiões e classes sociais.
            O processo de migração para São Paulo deu-se, em sua maioria, numa condição que subjuga os migrantes ao sistema que move a cidade em todos os seus âmbitos: econômico, cultural, social, etc. Para aqueles que chegam, é preciso adaptar-se rapidamente para garantir seu espaço mínimo de sobrevivência, mesmo que isso signifique abrir mão de muitas coisas, entre elas o seu passado, seus costumes, suas crenças.
            Após 13 anos atuando em São Paulo como arte educadora social nas linguagens de teatro e dança, e disseminadora dos conhecimentos colhidos junto a comunidades tradicionais do Brasil, não foram poucas as vezes que observei o processo transformador de jovens e adultos em sala de aula, partindo da “vergonha” de sua herança cultural em direção ao orgulho de descobrir-se herdeiro de um legado que seus pais e suas outras relações sociais omitiram ou precisaram esquecer para recolocarem-se socialmente na “nova vida”.
Também foram igualmente belos os resgates sociais deflagrados a partir da reverberação dos processos vividos em sala de aula e levados aos seus outros ciclos sociais, fazendo que familiares destes alunos revelassem aos mesmos o percurso vivido antes deste “esquecimento defensivo”.
            O fato é que, como disse Patrick Sériot:

“O país é a cultura. A cultura são as tradições e o respeito que nós devemos ter em relação a ela, e não unicamente à cultura do momento presente. Sem conhecer a cultura de uma sociedade, torna-se impossível de nela educar um homem tendo consciência de sua própria dignidade, tendo respeito por si próprio, seu país e seu povo. O respeito dos outros supõe em primeiro lugar o respeito por si próprio, e por consequência, o conhecimento de si, de seu povo e de seu próprio passado.” (TRUBACEV, in SÉRIOT, 1999, p. 34)

            Sendo o Brasil um país vasto geográfica e culturalmente, esse sentimento de pertencimento é algo bastante complexo. Identificamo-nos, sim, enquanto brasileiros, mesmo desconhecendo muito do que nos foi dado enquanto legado cultural. Muito do nosso gosto, dos nossos costumes cotidianos, práticas culturais entranhadas em nós são fruto de uma reorganização em vários âmbitos destas heranças culturais que desconhecemos e desconsideramos, despotencializando nosso estar no mundo, enquanto subjetividade, coletividade e enquanto sociedade civil. Enquanto Nação.
            A partir desta constatação, organizo a relevância da interação com as culturas populares tradicionais brasileiras em dois grandes âmbitos: o político e o estético, considerando-se aqui como político tudo que concerne à vida das pessoas em sociedade, atuando umas sobre as outras a partir de seus próprios atos.
            A construção da autonomia do indivíduo, no sentido de muni-lo de ferramentas para a cidadania e para a ética, passa necessariamente pelo autoconhecimento e pelo reconhecimento de seus valores, construídos com base na alteridade. Porém, na sociedade em que vivemos a hierarquização de valores culturais, étnicos, de gênero, etc. age de forma opressora contra alguns cidadãos, fazendo com que os mesmos se sintam diminuídos por sua condição, ou mesmo com que neguem ou não se reconheçam na mesma.
            Ao longo do tempo, estas “contenções” em torno de sua subjetividade, ou mesmo o sentimento de desencaixe dentro desta ordem rotuladora pré-estabelecida, geram choques sociais de incompreensão mútua (MORIN, 1999) e uma despotencialização social e criativa. Muitas vezes, existir passa a ser um simples estar, sem desejos, sem esperanças, sem horizontes.
            Nesse sentido, para além da identificação com matrizes culturais e étnicas, as manifestações artísticas da cultura tradicional brasileira, em especial as espetaculares, servem a programas como o Vocacional porque são fruto da necessidade de suas comunidades originais de interagirem socialmente; de vivenciar o lazer; de expressar e refletir sobre questões cotidianas; de viver arte. E isto faz com que sua própria estrutura, forma e aprendizado privilegiem a construção coletiva.
            O aprendizado por observação e repetição, a construção de estruturas uníssonas de movimento; a ocupação espacial orientada para o coletivo; o jogo; a ludicidade são características que, mesmo reforçando a interação grupal, está a serviço da alteridade quando permite que cada indivíduo seja, a sua maneira e subjetividade, parte de uma engrenagem maior que se move a partir da presença de todos.
            Com uma pesquisa séria, onde a contextualização destas manifestações e sua fundamentação estejam claras para o artista-orientador, elas podem se transformar em matéria prima para procedimentos disparadores ou consolidadores de processos criativos e de (re)construção de autonomias. A construção destes procedimentos a partir das necessidades identificadas pelo artista-orientador – e não a simples transposição de passos, músicas, gestos, brincadeiras, etc. – amalgama as relações apontadas como favoráveis a construção de um conhecimento crítico, de acordo com o que defende Paulo Freire (FREIRE, 2011) para a construção da autonomia, tornando-se uma ferramenta potente para os objetivos do Programa Vocacional.
Ao olharmos para estas culturas populares tradicionais brasileiras sob o enfoque estético, desvencilhados das amarras que nos limitam a apreciação, podemos, também, identificar preciosas ferramentas para o trabalho criativo junto a grupos vocacionados.
Estas ‘amarras’ são, na verdade, rótulos e formatos estéticos que reconhecemos como padrões “oficiais” ou “normais” de criação em arte, construídos a partir das referências etnocêntricas, guiadas em sua maioria pela cultura ocidental greco-romana ou por outras culturas já assimiladas por esta, muitas vezes de forma pasteurizada e descontextualizada, como é o caso de algumas culturas orientais, ou mesmo da arte africana.
Neste sentido, também o papel do artista-orientador é fundamental no que se refere à pesquisa, pois depende de seu olhar a forma com que estas culturas chegarão aos seus vocacionados, produzindo uma ampliação de horizontes estéticos, ou, por outro lado, perpetuando visões hierarquizantes e preconceituosas com relação a estas culturas e sua produção artística.
            O fato é que, apesar de elas ocuparem, no senso comum, um lugar de “coisa do passado”, de “folclore”, muitas vezes estas culturas e sua produção artística se aproximam muito do que para nós, artistas ditos “contemporâneos”, é vanguarda. Isso pode ser especialmente observado quando pensamos nas artes do espetáculo.
            Quando nos debruçamos na produção cênica contemporânea percebemos que ela tem apresentado em sua busca algumas características que podem ser identificadas nas manifestações espetaculares tradicionais brasileiras de forma espontânea. Ou seja, sem que tenham sido fruto de uma especulação prévia em trono da forma ou do conteúdo, mas, talvez, pela necessidade mesma de agregar a comunidade em torno daquela vivência artística.
Nesta confluência com a produção cênica contemporânea, podemos observar como características comuns: a interação entre expressões artísticas – dança, teatro, música, artes visuais – e a dissolução de fronteiras entre elas; a estreita relação entre artistas e público, incluindo a possibilidade de interação direta entre ambos; a utilização do espaço público ou alternativo como local para a cena e a diversidade em relação a esta utilização; as fronteiras tênues entre vida e arte para os artistas.
            Na verdade, se pensarmos sob um enfoque histórico-cronológico, facilmente perceberemos que, mesmo sem comumente darmos à tradição estes créditos, estas formas espetaculares já existiam em culturas tradicionais de diversos lugares do mundo bem antes de catalogarmos as expressões artística como fazemos atualmente.
Isso também nos faz pensar que, em sua origem, estas manifestações não estão necessariamente encaixadas nestes rótulos prévios, construídos a partir daquele pressuposto estético ocidental. Sendo tantas expressões artísticas numa mesma cena, elas não podem ser definidas em sua totalidade como nenhuma delas.
Ao mesmo tempo, por carregarem em seu âmago a essência de nossas matrizes étnicas, estas manifestações atuam como um eco longínquo, que reverbera dentro de nós a cada vez que as vivenciamos, quase sempre de forma crescente, retroalimentando uma “intimidade” estética com aquele universo que, num primeiro momento, nos parece tão díspar e estranho.
A combinação entre estes dois perfis – político e estético – na utilização destas referências da cultura tradicional como ferramenta na construção de processos criativos emancipatórios traz ainda outra vantagem: a originalidade destes processos.
A vastidão de culturas, práticas, musicas, gestos, saberes, movimentos, mitos, etc., contidos em nossa cultura nos permite tecer combinações múltiplas entre forma e conteúdo, capazes de gerar estados de presença potentes diante do público que, assistindo às criações, poderá acessar estas camadas adormecidas de ancestralidade soterrada por padrões estéticos corriqueiros.
A tarefa, portanto, parte do artista-orientador, no sentido de que são seu norte, perspicácia e inventividade os motores mínimos necessários para provocar os vocacionados, fazê-los desvelar suas conexões sócio-antropológicas, e munir-se das mesmas como ferramenta de proposição para uma cena outra, que paira entre as necessidades expressivas do agora, e a força expressiva deste legado ancestral, atingindo o público e – idealmente – gerando alguma reflexão sobre estas conexões que se estabelecem entre cidadania e arte.
           
REFERÊNCIAS

DIVISÃO DE FORMAÇÃO ARTÍSTIFCA E CULTURAL. Vocacional. Publicado em: http://formacaoartecultura.blogspot.com.br/p/programa-vocacional.html Consultado em  27/10/2014.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2011.
MORIN, Edgar. Os sete saberes para a educação.  Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
SÉRIOT, Patrick. Anamnésia da língua russa e  a busca de identidade na Rússia. In, INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro (org).  Os múltiplos territórios da análise do discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Ed. Autênica, 2004.


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